De acordo com últimos dados resultantes de um inquérito realizado pela Intrum em 20 países europeus, tem vindo a registar-se, nos últimos meses, uma menor asfixia financeira para os consumidores. Todavia, o abrandamento das dificuldades não é ainda suficiente para se respirar de alívio, nomeadamente em Portugal onde, segundo a DECO, três em cada quatro famílias continuam a afirmar sentir muita dificuldade em pagar as suas contas mensais. Preocupante é também o alerta da Intrum para, e após vários anos a viver-se com orçamentos “estrangulados”, os níveis de stress dos consumidores serem de tal forma elevados que deveremos contar com um agravamento da já não de si famosa saúde mental na Europa
POR HELENA OLIVEIRA

Já não é notícia falar da incerteza económica em que a Europa se movimenta e na ginástica que os consumidores se habituaram a fazer para, pelo menos, conseguirem pagar as suas despesas “obrigatórias”. E, apesar de um abrandamento da inflação na maioria dos países do Velho Continente, os custos dos empréstimos continuam elevados e as perspectivas de curto e médio prazo permanecem numa incómoda ambiguidade.

Neste contexto, o novo estudo “Pulse ECPR “ [European Consumer Payment Report] da Intrum realizado junto de 20 mil consumidores de 20 países da Europa (Portugal incluído) e que retoma e actualiza alguns dos temas abordados na sua última edição, publicada em Novembro de 2023 e sobre a qual o VER escreveu , levanta algumas questões cruciais sobre a evolução das posições e atitudes financeiras dos consumidores europeus.

Se é verdade que alguns consumidores sentem claramente que as finanças do seu agregado familiar estão a melhorar, são no entanto muitos os que continuam extremamente preocupados com a forma como vão conseguir fazer face às suas despesas ao longo de 2024. Mais preocupante ainda é o facto de, e após vários anos a viver com orçamentos “estrangulados”, os níveis de stress dos consumidores serem de tal forma elevados que existe um perigo real de desenvolverem problemas de saúde mental significativos.

De acordo com as perspectivas económicas da Intrum, é possível afirmar que existe um crescimento modesto e uma perspectiva de inflação que se inclina gradualmente para as taxas-alvo dos bancos centrais. É igualmente importante e positivo referir que o desemprego deverá manter-se baixo em toda a Europa, permitindo que os consumidores mantenham as suas fontes de rendimento. Todavia, não é possível afastar totalmente cenários mais preocupantes, como uma queda abrupta para a deflação ou uma inflação teimosamente elevada, que poderão resultar numa recessão económica mais profunda, susceptível de afectar os mercados de trabalho e, consequentemente, a economia no seu todo.

De uma forma geral, a nova pesquisa da Intrum revela três temas que se afiguram como principais: no geral, os consumidores estão confiantes em cumprir os seus compromissos, apesar de sabermos que o bem-estar financeiro é bem mais do que pagar as contas; muitos europeus estão a adoptar actividades paralelas e ganhos “rápidos” para aumentar os seus orçamentos e, como já anteriormente referido, o stress financeiro a longo prazo está a contribuir para uma epidemia de saúde mental.

Vejamos, então, as principais conclusões deste inquérito.

Os níveis de confiança dos consumidores europeus no que respeita a cumprirem os seus deveres financeiros estão a aumentar

De uma forma geral, os consumidores sentem que a asfixiante crise de custo de vida que tem vindo a caracterizar os últimos anos está a sofrer um abrandamento. De acordo com os dados da Intrum, a inflação na zona euro situava-se em 2,9% no final de 2023 versus 9,2% um ano antes. Presentemente, a Comissão Europeia prevê uma taxa de inflação média de 3,5 por cento para 2024 no seu conjunto, o que poderá abrir caminho aos tão almejados e necessários cortes nas taxas de juro nos próximos meses. Na zona euro, alguns analistas prevêem até quatro reduções das taxas do Banco Central Europeu (BCE) em 2024.

As perspectivas de crescimento económico na Europa estão também a melhorar. O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê para este ano um crescimento de 0,9% na zona euro e de 0,6% no Reino Unido, em comparação com as estimativas de 0,5% para ambos em 2023. Apesar de não serem muito animadoras, estas projecções oferecem alguma esperança de recuperação. Quase três quartos dos inquiridos estão confiantes quanto à sua capacidade de pagar as contas todos os meses, com 68% dos portugueses a confirmar essa tendência, apesar de apenas se encontrarem à frente apenas da República Checa e da Grécia, respectivamente. Todavia, e de de acordo com o Barómetro DECO PROTeste, divulgado esta semana, 3 em cada 4 famílias portuguesas têm dificuldade em pagar as contas actualmente (v. Caixa).

De qualquer das formas, e segundo os resultados do inquérito realizado pela Intrum, e apesar da incerteza persistente, o optimismo geral está a aumentar, com os indicadores prospectivos a apontarem para uma melhoria das condições económicas.

De facto, a maioria dos europeus inquiridos sente-se relativamente optimista em relação às finanças do seu agregado familiar. Quase três quartos (74%) estão muito ou bastante confiantes quanto à sua capacidade de pagar as suas contas todos os meses – com apenas 11% a manifestarem-se preocupados em manter esses pagamentos em dia. Os consumidores também beneficiaram com a adopção de uma maior disciplina financeira: como resultado, sete em cada 10 estão confiantes de que conseguem controlar as suas despesas mensais.

Seguiar a regra 50-30-20

Apesar da melhoria manifesta no que respeita à capacidade de os agregados conseguirem pagar as suas contas, este alívio não constitui, e como sabemos, o único factor que influencia o bem-estar financeiro. Tal como a Intrum alerta, persistem os indícios de tensões subjacentes nos orçamentos familiares, com as necessidades “primárias” a poderem ser cobertas, mas potencialmente à custa de despesas discricionárias e de poupanças para o futuro.

A boa notícia é que o número de consumidores que está a conseguir poupar dinheiro aumentou. No inquérito agora publicado pela Intrum, os consumidores afirmam que estão agora a poupar, em média, 19% do seu rendimento mensal (ou a utilizar esse dinheiro para reduzir as suas dívidas), o que é superior à média oficial da UE de 13%. Os jovens europeus estão a fazer ainda melhor, com uma média de poupança de 24% do rendimento entre os participantes da Geração Z neste estudo. No entanto, muitos consumidores sentem ainda dificuldade em ter dinheiro para pagar produtos e serviços não essenciais, actividades sociais e de lazer, ou mimos para si próprios e para os outros.

Como faz saber a Intrum, os consultores de finanças pessoais e outros organismos especializados aconselham frequentemente as pessoas a seguirem a regra dos 50%-30%-20% para as despesas – atribuindo estas percentagens do seu rendimento, respectivamente, a despesas essenciais, despesas discricionárias e poupanças. No entanto, com as despesas essenciais a representarem actualmente 56% do rendimento mensal do europeu médio – o que reflecte os preços elevados e os custos dos empréstimos – as despesas com produtos e serviços “agradáveis de ter” caíram para apenas 25%.

Viver ou sobreviver?

A Intrum alerta também para o facto de, e apesar de os consumidores europeus estarem a gastar dentro das suas possibilidades, não conseguirem “viver plenamente”, mas antes sobreviver. Este factor tem implicações para o bem-estar e para a saúde mental, bem como para as perspectivas a curto e médio prazo das empresas expostas aos padrões de despesa discricionária dos consumidores.

Para alguns subgrupos, as dificuldades relativas são ainda mais pronunciadas. As disparidades entre os sexos são evidentes: em média, as mulheres afirmam que 59% do seu rendimento é consagrado a despesas essenciais todos os meses. Para os homens, essa média é de 54%.

O estudo da Intrum refere também o facto de que muitos consumidores europeus estarem a sentir fortemente os efeitos da crise do custo de vida, mesmo tendo conta a melhoria verificada, o que explica a necessidade de um número significativo dos mesmos tomarem medidas para aliviar essa pressão. Assim, cerca de metade dos consumidores considera a possibilidade de procurar um “trabalho suplementar” ou uma fonte de rendimento adicional com 46% dos portugueses a confirmarem esta necessidade. Outra reacção comum à pressão financeira consiste em reduzir os compromissos de despesas. Em particular, as assinaturas (muitas vezes subscritas durante a pandemia, quando o entretenimento em casa era o único disponível) são uma das primeiras despesas que os consumidores sem dinheiro optam por cortar. Mais de metade dos consumidores europeus (56%) está agora a reduzir as suas subscrições, incluindo aplicações e plataformas de streaming. A Netflix, por exemplo, já começou a registar um abrandamento do crescimento em mercados como o Reino Unido. Adicionalmente, as despesas com ginásios estão também entre aquelas que os consumidores mais facilmente cortam.

Assim e inevitavelmente, os consumidores estão a olhar com atenção para as suas despesas quotidianas. Com os artigos essenciais a representarem uma proporção substancial dos orçamentos dos consumidores, as despesas discricionárias estão a ser reduzidas. Mais de metade dos consumidores (55%) afirma estar a tentar reduzir as despesas com “artigos de luxo”. Um número semelhante de pessoas está a mudar os seus hábitos de compra, com 56% dos consumidores a procurarem gastar mais em lojas de desconto. Com efeito, os retalhistas de desconto em toda a Europa registam um aumento das suas receitas e da quota de mercado.

Um outro dado importante resultante do inquérito da Intrum prende-se com o facto de um número significativo de consumidores admitir também que pode falhar pagamentos com consequências mais gravosas. Quase seis em cada 10 (58%) afirmam que o pagamento de uma prestação de um bem de grande valor, como um automóvel ou um bem de consumo doméstico, está entre as principais facturas que não pagarão se necessário for, o que pode ser problemático para os fornecedores de crédito que financiaram essas compras.

Apesar de a maioria dos consumidores afirmar que em 2024 não irá falhar facturas, uma pequena mas significativa minoria receia que algumas das suas facturas tenham de ficar por pagar: 11% prevêem ter de falhar um ou mais pagamentos este ano. Na Dinamarca e na Suíça, quase um quinto dos consumidores (18%) encontra-se nesta situação, o que demonstra que os países ricos também se debatem com o aumento do custo de vida.

O stress financeiro a longo prazo está a contribuir para um agravamento da saúde mental

A pressão financeira sobre alguns consumidores pode ter diminuído, mas um período prolongado de ansiedade está a afectar muitos outros. Menos de metade dos consumidores europeus (46%) descreve a sua vida financeira como livre de stress, com particular relevo para os portugueses, só ultrapassados pela negativa pela Grécia (29%).Na verdade, apenas 38% dos portugueses afirmam não preverem sofrer de stress financeiro este ano. Os demais confessam não dispor de rendimentos que lhes permitam gerir o seu dinheiro com confiança, sem correrem o risco de incumprimento ou de se endividarem ainda mais.

A este stress acresce a dificuldade em encontrar dinheiro para os “luxos” que permitem descansar do trabalho árduo e da incerteza. Com uma parte tão grande do rendimento dos consumidores absorvida por despesas essenciais, as compras discricionárias podem parecer fora de alcance.

Por exemplo, menos de metade dos consumidores (48%) está confiante de que poderá pagar umas boas férias de Verão este ano. Muitos sentem-se também bloqueados e incapazes de efectuar mudanças nas suas vidas que poderiam gerar uma situação financeira mais favorável. Apenas um em cada três consumidores considera, por exemplo, que poderia mudar para um emprego mais bem remunerado a fim de aliviar as suas preocupações financeiras. Isto dá origem a um sentimento de impotência, que pode aumentar o stress e a ansiedade.

Por outro lado, também não existem grandes perspectivas de um aumento significativo dos rendimentos actuais em 2024. Embora os economistas prevejam que os aumentos salariais na Europa ultrapassem a inflação dos preços este ano, isso só anulará parcialmente os danos causados pela inflação elevada em 2022 e 2023. E, mais uma vez, há indícios de uma divisão entre géneros. Apenas 34% das mulheres da Geração X afirmam que a sua situação financeira actual lhes permite viver uma vida sem stress. A percentagem para os homens da Geração X é de 49%.

De acordo com a Intrum, o perigo é que os desafios financeiros pessoais dos europeus conduzam a um aumento dos problemas de saúde mental. Trata-se de algo que a Europa não pode (ou não deve) permitir-se, dada a deterioração significativa da saúde mental pública desde a pandemia, com dados que apontam para que 46% da população da UE tenha tido problemas emocionais ou psicossociais nos últimos 12 meses.

Quatro em cada 10 (38%) consumidores afirmam que as ansiedades financeiras estão a ter um efeito prejudicial na sua saúde mental e a dar origem a um sentimento de pessimismo em relação ao futuro. As mulheres são particularmente susceptíveis a este sofrimento. Das pessoas que afirmam que a sua saúde mental diminuiu devido à sua situação financeira, seis em cada 10 são mulheres.

Dada a estreita ligação entre a saúde física e a saúde mental, existe uma forte possibilidade de se desenvolver um ciclo destrutivo que prejudique ambas. O facto de tantos consumidores sentirem que terão de reduzir o número de inscrições nos ginásios, por exemplo, é também motivo de preocupação. Privados desta oportunidade de praticar um exercício regular organizado e semi-sociabilizado, a motivação para manter o bem-estar físico pode diminuir. Além disso, em alguns casos, os consumidores estão a comprar alimentos mais baratos e de menor qualidade, que provavelmente serão menos saudáveis.

De um modo geral, há cada vez mais provas de que a situação financeira precária de muitos europeus está a provocar um sentimento de alienação. Quase metade (46%) acredita que, ao longo da sua vida, estará menos bem financeiramente do que os seus pais. A sua capacidade para comprar bens imobiliários, poupar para o futuro e gozar uma reforma confortável está ameaçada. Em  suma, o abrandamento da asfixia financeira está longe de ser suficiente para que os europeus possam respirar de verdadeiro alívio.


Apesar de uma ligeira melhoria, 75% dos portugueses esperam um aumento das suas dificuldades financeiras em 2024, afirma a DECO

De acordo com o Barómetro anual da DECO PROteste e apesar de algumas melhorias face a 2023 nas despesas com mobilidade, saúde e alimentação, as perspectivas para 2024 apontam para um aumento das dificuldades financeiras dos portugueses, com 3 em cada 4 famílias a admitir ter dificuldades em pagar as suas contas mensais. O barómetro em causa, cujos dados resultam de um inquérito a sete mil portugueses, visa medir a capacidade de as famílias portuguesas pagarem as despesas do dia-a-dia em seis áreas: alimentação, educação, habitação, lazer, mobilidade e saúde.

Como seria de esperar, a crise habitacional continua a manter-se no topo da asfixia financeira, sem qualquer tipo de melhoria visível face à descida da inflação. Como se pode ler no barómetro em causa, “o aumento das taxas de juro é uma das razões pelas quais quase 28% das famílias enfrentam dificuldades para pagar os seus empréstimos bancários. Também o valor das rendas contribuiu para as dificuldades sentidas: 23% dos inquilinos lutam para cumprir o pagamento das rendas das suas habitações”.

No que respeita às despesas com mobilidade, saúde e alimentação, apenas 6% das famílias admite não sentir o impacto da subida dos preços dos bens. Se para 31% é com “muito mais” dificuldades que conseguem pagar as despesas essenciais, para 4% esta capacidade assume-se como uma “missão impossível”.

Como divulgado pela DECO, e no que diz respeito ao tipo de famílias em causa, “são as famílias monoparentais e numerosas, assim como as famílias em que um dos membros está desempregado”, que mais dificuldades têm em cumprir com as suas obrigações financeiras e acompanharem o custo de vida. “No caso das famílias monoparentais, segundo os dados disponíveis, são cerca de 75 mil as que em Portugal enfrentam uma situação de pobreza extrema”, afirma ainda a DECO.

Dos resultados do inquérito, a DECO PROteste interpreta “que as perspectivas dos portugueses para os demais meses de 2024 não são optimistas, prevendo um aumento das dificuldades financeiras no actual contexto de inflação e  de incerteza sobre a evolução das taxas de juro do crédito à habitação. Alimentação (carne, peixe, vegetais e fruta, etc.),  contas da casa (gás, electricidade e água, etc.) e a saúde são as despesas onde se esperam maiores aumentos”.

Imagem: © Andre Taissin/Unsplash.com


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