Os fantasmas do colonialismo ainda assombram a economia global mas, actualmente, assumem a forma de bilionários e monopólios empresariais. Esta é uma das conclusões do relatório anual da Oxfam sobre desigualdade, o qual expõe a forma como vastas fortunas são construídas com base em privilégios herdados, capitalismo de compadrio [uma variante da corrupção] e domínio descontrolado do mercado. O relatório traça um quadro nítido do neocolonialismo moderno – onde o poder e os recursos permanecem concentrados nas mãos de poucos, enquanto milhares de milhões lutam contra a pobreza
POR HELENA OLIVEIRA
A riqueza dos bilionários aumentou acentuadamente em 2024, com um ritmo de crescimento três vezes mais rápido do que em 2023. Estão a ser doados biliões em heranças, criando uma nova oligarquia aristocrática com um poder gigantesco na política e na economia. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que vivem na pobreza quase não se alterou desde 1990.
No último ano, a riqueza total dos bilionários aumentou 2 biliões [trillion, em inglês] de dólares e foram criados 204 novos bilionários, o que corresponde a uma média de quase quatro novos ultra-ricos por semana. Cada bilionário viu a sua fortuna aumentar, em média, 2 milhões de dólares por dia, sendo que para os 10 mais ricos, este aumento cifrou-se, em média, em 100 milhões de dólares diários. O relatório afirma também que mesmo que os 10 mais ricos do mundo perdessem 99% da sua riqueza de um dia para o outro, continuariam a ser bilionários.
Estas são algumas das conclusões do relatório anual sobre desigualdade publicado pela Oxfam, este ano intitulado “Takers Not Makers:The unjust poverty and unearned wealth of colonialism”, no qual é revelado que, contrariamente à percepção popular, a riqueza dos multimilionários não é, em grande parte, “merecida ou conquistada”, ou seja, fruto de meritocracia ou da inovação. Pelo contrário, e de acordo com a Oxfam, estamos perante a ascensão de uma nova oligarquia alimentada pela herança, pelo clientelismo e pelo poder de monopólio. A verdade é que estamos a assistir a uma acumulação de riqueza e de poder, consolidando ainda mais um sistema económico que funciona apenas para uns poucos selecionados. A análise mostra que 60% da riqueza dos bilionários provém de fontes clientelistas ou corruptas, do poder de monopólio ou que é herdada.
A riqueza não merecida e uma dinâmica de colonialismo – aqui entendido não só como uma história de extracção brutal de riqueza, mas também como uma força poderosa por detrás dos actuais níveis extremos de desigualdade – são dois dos principais motores da acumulação de riqueza dos multimilionários, pode ler-se ainda no relatório. Como afirma Amitabh Behar, Director Executivo da Oxfam International, “as empresas monopolistas controlam os mercados, ditam as condições e fixam os preços com impunidade, enriquecendo ainda mais os seus proprietários bilionários. O clientelismo e a corrupção permitem que os super-ricos garantam que o governo trabalhe para eles e não para o cidadão comum”.
Por seu turno, e embora as taxas globais de pobreza tenham diminuído em todo o mundo, o número de pessoas que vive abaixo do limiar de pobreza – com cerca de 6,85 dólares – é hoje o mesmo que em 1990: quase 3,6 mil milhões de pessoas ou 44% da humanidade. Entretanto, numa simetria perversa, o 1% mais rico detém uma proporção quase idêntica – 45% – de toda a riqueza. Uma em cada dez mulheres no mundo vive em situação de pobreza extrema (menos de 2,15 dólares por dia) e há mais 24,3 milhões de mulheres do que homens a viver nesta situação.
No seu mais recente relatório sobre a pobreza, citado pelo relatório da Oxfam, o Banco Mundial calcula que, se as actuais taxas de crescimento se mantiverem e a desigualdade não diminuir, será necessário mais de um século para acabar com a pobreza.
A investigação do Banco Mundial também demonstra que apenas 8% da humanidade vive em países com baixa desigualdade. As conclusões da Oxfam e da Development Finance International, e de acordo com o The Commitment to Reducing Inequality Index 2024 (que avalia o empenho de 164 países e regiões na luta contra a desigualdade). revelam tendências negativas na grande maioria dos países desde 2022. Quatro em cada cinco reduziram uma parte significativa dos seus orçamentos destinada à educação, saúde e/ou proteção social; quatro em cada cinco reduziram a tributação progressiva; e nove em cada dez regrediram em matéria de direitos laborais e salários mínimos. Sem acções políticas urgentes para inverter esta tendência preocupante, diz a Oxfam, é quase certo que a desigualdade económica continuará a aumentar em 90% dos países.
A ascensão da nova aristocracia
Em 2023 – pela primeira vez – mais novos bilionários enriqueceram mais por herança do que por empreendedorismo, com todos os bilionários do mundo com menos de 30 anos a herdarem a sua riqueza. A Oxfam estima que nas próximas três décadas, mais de 1.000 dos bilionários actuais transferirão mais de 5,2 biliões de dólares para os seus herdeiros. A Oxfam calcula também que 36% da riqueza dos bilionários provém de heranças.
Pior ainda, esta transferência não será, em grande parte, tributada. A análise da Oxfam mostra que dois terços dos países não tributam a herança para descendentes directos e que esta situação está a criar rapidamente uma nova aristocracia em que a riqueza extrema é transmitida de geração em geração.
Por outro lado, grande parte da riqueza dos ultra-ricos tem a ver com quem estes conhecem: quem faz lóbi, quem entretém, que campanha de quem financia ou que pessoa suborna. Em suma, grande parte da riqueza extrema é o produto de ligações de compadrio entre os mais ricos e os governos. Para a Oxfam, existe uma ligação clara entre as áreas da economia que são propensas a este tipo de clientelismo e as concentrações de riqueza. Basicamente, há mais bilionários e pessoas ultra-ricas nas partes mais desonestas, corruptas e capturadas da economia global, e isto não é uma coincidência, estimando-se que 6% da riqueza dos bilionários do mundo provenha de fontes clientelistas.
Adicionalmente e à medida que os monopólios reforçam o seu domínio sobre as indústrias, os multimilionários vêem a sua riqueza disparar para níveis sem precedentes. O poder dos monopólios está a aumentar a riqueza e a desigualdade extremas em todo o mundo. As empresas monopolistas podem controlar os mercados, estabelecer as regras e os termos de troca com outras empresas e trabalhadores e fixar preços mais elevados sem perderem negócios. Estas estratégias aumentam a riqueza dos seus proprietários multimilionários, que são alguns dos homens mais ricos do mundo e de que são exemplo Elon Musk ou Jeff Bezos, entre vários outros.
A sombra do colonialismo histórico e o poder do neocolonialismo
Para além deste problema da riqueza não merecida, o relatório deste ano mergulha profundamente na história de colonialismo que, de acordo com a Oxfam, continua a lançar uma vasta sombra sobre o mundo. “Sabemos que o colonialismo beneficiou os países ricos do Norte Global, em detrimento do Sul Global. Mas, para além disso, o colonialismo beneficiou sobretudo os mais ricos dos países ricos. “O império coincidiu com uma enorme desigualdade entre as potências colonizadoras. Para usar um exemplo, os 10% mais ricos extraíram 50% de todo o rendimento no Reino Unido durante o auge do Império Britânico”, escreve o Director Executivo da Oxfam International num artigo publicado no Fórum Económico Mundial a propósito do lançamento do relatório.
Para Amitabh Behar, “e para aqueles que acreditam que o colonialismo, por mais terrível que seja, foi um crime histórico, eu diria que há muita coisa no nosso mundo moderno que é colonial. Um sistema que continua a extrair riqueza e poder dos trabalhadores comuns do Sul Global para os ricos do Norte Global, um fenómeno a que chamamos ‘colonialismo bilionário’”.
De acordo com o relatório, a natureza não merecida de grande parte da riqueza extrema dos ultra-ricos é, sem dúvida, um resultado do colonialismo e dos seus impactos. Actualmente, a maioria dos multimilionários (68%, que detêm 77% da riqueza total) ainda vive nos países ricos do Norte Global, apesar de estes países albergarem apenas um quinto da população mundial – um facto que é difícil de explicar sem compreender o impacto contínuo do colonialismo.
De acordo com a Oxfam, o colonialismo é, desta forma, um fenómeno histórico e moderno. Definindo o colonialismo histórico como o período de ocupação e dominação formal pelos países ricos que, em grande medida, terminou com as lutas de libertação nacional travadas nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o colonialismo moderno (também conhecido como neocolonialismo) é a designação que a Oxfam utiliza para abranger as formas mais informais através das quais, predominantemente, os países ricos do Norte Global continuam a exercer poder e controlo sobre os países do Sul Global, perpetuando os impactos do colonialismo formal e as práticas e ideias que lhe estão subjacentes.
Actualmente e de acordo com o relatório, quase sessenta anos após o fim do período colonial histórico, a economia global ainda está claramente estruturada de forma que a riqueza flua do Sul Global para o Norte Global e, mais especificamente, das pessoas comuns do Sul Global para as pessoas mais ricas do Norte Global. Para a Oxfam, estas dinâmicas reflectem assim os métodos de extracção colonial, dando assim origem ao termo anteriormente citado como “colonialismo bilionário”.
Para utilizar apenas um exemplo, as nações ricas utilizam as suas moedas fortes e a sua posição privilegiada no sistema económico para extrair uma renda constante do Sul Global, que é forçado a contrair empréstimos em moeda estrangeira a taxas exorbitantes. Como escreve Amitabh Behar no artigo acima citado, “utilizando uma nova investigação do World Inequality Lab, demonstramos que 30 milhões de dólares por hora estão a ser pagos pelo Sul Global ao 1% mais rico nos países mais ricos. Constatamos repetidamente que o fluxo de dinheiro, de recursos, é do Sul para o Norte, das nações mais pobres para as mais ricas, quando deveria ser o contrário. Por cada 1 dólar doado em ajuda pelas nações mais ricas, 4 dólares são devolvidos aos países ricos desta forma. Sabemos que estes recursos não estão a fluir igualmente para todos nos países ricos, mas que, em vez disso, estão a beneficiar esmagadoramente os já muito ricos”.
Assim, e em suma, a Oxfam afirma que a profunda desigualdade entre os mais ricos e o resto da sociedade, tanto entre as nações ricas e o Sul Global como no interior dos países do Sul Global, é o legado do colonialismo histórico, o qual explica o enorme fosso existente entre o mundo rico e o resto do mundo. Em 1820, a data mais recuada desde que há registos, o rendimento dos 10% mais ricos do mundo era 18 vezes superior ao dos 50% mais pobres; em 2020, era 38 vezes superior.
Esta desigualdade económica reflecte-se em muitas outras medidas de progresso e bem-estar. E talvez o impacto mais significativo seja na esperança de vida; actualmente, a esperança média de vida dos africanos é ainda inferior em mais de 15 anos à dos europeus.
A Oxfam desafia assim o mundo a confrontar-se com uma questão fundamental: Poderá haver prosperidade global sem um desmantelamento dos legados económicos do domínio colonial?
Editora Executiva