Menos de 40% dos profissionais acreditam que a sua organização promove efectivamente o bem-estar. Apenas um terço sente que o bem-estar das equipas é uma prioridade da liderança. E quase metade dos trabalhadores relata exaustão física e mental. O novo relatório do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis (LABPATS) traça um retrato preocupante dos contextos laborais em Portugal, revelando um ecossistema marcado pela fragilidade ética, fraca comunicação interna e níveis elevados de sofrimento psicológico — com mais de um quarto dos inquiridos a reportar situações de abuso ou assédio. Em entrevista, Tânia Gaspar, coordenadora do Laboratório, comenta alguns dos principais resultados do estudo e oferece recomendações para a melhoria da saúde organizacional
POR HELENA OLIVEIRA
O Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis (LABPATS) tem vindo a desenvolver, desde 2021, um trabalho pioneiro em Portugal na análise da saúde ocupacional. Com base em recomendações da Organização Mundial da Saúde, o modelo adoptado integra sete dimensões interligadas — três nucleares (Ética e Valores, Compromisso da Liderança, Envolvimento dos Profissionais) e quatro transversais (Ambiente Físico, Psicossocial, Recursos para a Saúde e Responsabilidade Social).
O instrumento de avaliação, EATS (Ecossistemas de Ambientes de Trabalho Saudáveis), oferece uma leitura complexa e contextual da realidade laboral em Portugal. O relatório de 2024, baseado em respostas de 3822 profissionais de diversos sectores, revela um retrato preocupante do estado da saúde organizacional no país.
Assim, e num momento em que o desgaste nas organizações portuguesas se torna cada vez mais evidente, o estudo “Evolução da Saúde Ocupacional 2021 a 2024” do LABPATS funciona como um alerta — e uma oportunidade.
Para compreender melhor os resultados e caminhos de transformação possíveis, ouvimos Tânia Gaspar, coordenadora científica do estudo. Na entrevista que se segue, a também doutorada em Psicologia e Gestão sublinha a urgência de colocar a saúde mental, a qualidade das lideranças e a justiça organizacional no centro da estratégia das empresas.
Na sua perspectiva, qual é actualmente o principal bloqueio à mudança cultural nas organizações portuguesas?
O principal bloqueio à mudança cultural nas organizações portuguesas parece residir na fragilidade do compromisso das lideranças com o bem-estar dos trabalhadores, bem como na falta de coerência entre os valores organizacionais proclamados e as práticas efectivas. A evidência empírica do estudo do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis (LABPATS) revela que menos de 40% dos profissionais reconhecem que as suas organizações se focam no bem-estar dos trabalhadores com políticas e estratégias concretas. E apenas 33,4% consideram que a liderança valoriza efectivamente esse bem-estar como prioridade, o que denuncia uma dissociação crítica entre discurso e acção.
Entre as várias recomendações avançadas, que medidas considera serem mais urgentes e exequíveis a curto prazo para os líderes organizacionais?
Entre as várias recomendações avançadas, a medida mais urgente e exequível a curto prazo é o reforço da formação das lideranças em comunicação empática e gestão emocional. Esta intervenção não implica grandes recursos logísticos, mas pode ter um impacto transformador imediato. A capacitação das lideranças neste domínio poderá aumentar a confiança, melhorar a transparência e fomentar um clima organizacional mais inclusivo e participativo, criando condições para mudanças culturais sustentadas.
A transformação da liderança é essencial para mudar a cultura organizacional. Que políticas e acções podem apoiar essa mudança em direcção a um modelo mais humanizado e justo?
A liderança é um dos pilares estruturantes da saúde organizacional. A sua transformação é indissociável da criação de ambientes de trabalho saudáveis, produtivos e sustentáveis. Devem ser desenvolvidas políticas e acções como instrumentos para a mudança cultural necessária, centradas na dignidade, participação e bem-estar de todos os profissionais.
Para a valorização de lideranças competentes e humanizadas é fundamental reforçar a cultura de bem-estar nas organizações através de lideranças transformacionais, reduzir os riscos psicossociais associados à liderança tóxica e à gestão ineficaz de equipas, e aumentar a participação, envolvimento e bem-estar dos profissionais de forma a promover organizações mais justas, inclusivas e sustentáveis.
Estamos perante um cenário de sofrimento psicológico generalizado no trabalho. Exaustão, abuso, automedicação. Que principais dados demonstram esta realidade alarmante?
A realidade descrita nos relatórios do LABPATS evidencia um quadro preocupante de sofrimento psicológico entre os profissionais portugueses. Cerca de 76% sente que as dificuldades se acumulam de forma insuperável, 44% refere exaustão física e emocional nas últimas quatro semanas [anteriores ao inquérito], 85% revela pelo menos um sintoma de burnout. Adicionalmente, 27,7% dos profissionais foram alvo de abuso psicológico ou físico no local de trabalho, o que aponta para ambientes laborais tóxicos e disfuncionais.
Por outro lado, verificamos o aumento de consumo de substâncias, tais como, tabaco, álcool e estimulantes e 34% dos inquiridos consomem psicotrópicos. A utilização excessiva de ecrãs também se verifica ao nível laboral e no tempo de lazer.
Quais são os principais factores estruturais que ajudam a explicar o elevado sofrimento psicológico identificado no estudo?
Esta situação deve ser interpretada à luz de vários factores estruturais, nomeadamente: (1) Cargas de trabalho excessivas e falta de autonomia; (2) Défices de apoio organizacional, particularmente nas áreas da saúde e segurança mental; (3) Modelo de liderança verticalizado e pouco sensível às necessidades humanas; (4) Fraca literacia em saúde mental, com 25,6% dos profissionais a sentirem dificuldades em encontrar informação relevante sobre o tema.
Estes factores interagem e potenciam-se mutuamente, resultando num ecossistema laboral que favorece o desgaste crónico, o burnout e a desmotivação. A ausência de mecanismos institucionais eficazes para prevenção e intervenção em saúde mental agrava o problema.
“O estudo identifica diferenças relevantes entre géneros, gerações e contextos laborais. O que revela o estudo sobre estas assimetrias no mundo do trabalho em Portugal?”
São identificados profissionais em maior risco de saúde e bem-estar organizacional:
Quando comparamos os grupos em relação às dimensões dos Ambientes de Trabalho Saudáveis verificamos algumas diferenças estatisticamente significativas em relação ao género, grupo etário, escolaridade e condição de saúde.
- São as mulheres que revelam um maior risco ao nível dos ambientes de trabalho saudáveis, especialmente ao nível dos riscos psicossociais relacionados com a saúde mental;
- Os profissionais com cargo de liderança têm um ambiente de trabalho mais saudável ao nível do alinhamento com a cultura, percepção de envolvimento (engagement) e melhor ambiente psicossocial do trabalho, sendo também os que referem melhor bem-estar e mais competências de gestão de stress;
- São os profissionais das duas gerações mais novas (geração Z e Y) que referem menos envolvimento;
- São os profissionais da geração Y (millenials) que revelam um maior risco ao nível da saúde mental e é a geração babyboom que revela mais factores protectores relacionados com o ambiente de trabalho saudável;
- Os profissionais com doença crónica (cerca de 33%) apresentam um maior risco em relação a todas as dimensões quando comparados com os profissionais sem doença crónica. Apenas o teletrabalho pode surgir como um factor protector nestes profissionais;
- Os profissionais em teletrabalho ou em formato híbrido são os que revelam um ambiente de trabalho mais saudável;
- Os profissionais com contracto de trabalho mais estável são os que que revelam mais factores protectores relacionados com o ambiente de trabalho saudável;
- Os profissionais que são casados ou que vivem em união de facto revelam mais factores protectores no âmbito do ambiente de trabalho saudável quando comparados com os profissionais solteiros ou separados.
Sabemos o que está a falhar. Mas o que deve mudar? Que valores e práticas devem orientar uma organização verdadeiramente comprometida com o bem-estar dos seus profissionais?
De forma a tornar o bem-estar organizacional e pessoal central, as organizações devem ter os seguintes princípios: (1) Humanismo organizacional: colocação da dignidade humana no centro da gestão; (2) Liderança servidora e empática: orientada para o cuidado, escuta activa e partilha de poder; (3) Participação e co-construção: promoção da voz dos trabalhadores na vida organizacional e (4) Avaliação e melhoria contínua: utilização de indicadores de percepção e bem-estar como critérios de gestão.
A percepção negativa da liderança surge como um dos aspectos mais críticos. Que tipo de transformação será necessária para formar e sustentar lideranças mais humanizadas e conscientes?
A transformação necessária exige uma mudança paradigmática na formação, recrutamento e avaliação das lideranças. O modelo de liderança tradicional, centrado no controlo e na eficiência técnica, deve dar lugar a um modelo de liderança humanizada, ancorado na empatia, escuta activa e co-construção de soluções com as equipas.
A transição para modelos de liderança mais empáticos e conscientes exige mudanças profundas. Que políticas e práticas organizacionais são essenciais para sustentar essa mudança?
Esta transição implica políticas e acções organizacionais tais como: (1) Revisão dos critérios de selecção de líderes, priorizando competências relacionais, inteligência emocional e sensibilidade ética; (2) Programas de formação contínua em gestão de pessoas e bem-estar organizacional; Coaching e supervisão das lideranças, promovendo um espaço de desenvolvimento reflexivo; (3) Avaliação regular da liderança, não apenas com base em indicadores de desempenho técnico, mas também pela percepção das equipas quanto ao apoio, justiça e valorização recebidos.
Sustentar este novo tipo de liderança exige também uma cultura organizacional que valorize o cuidado, a equidade e o propósito, e que legitime os líderes que adoptam práticas mais inclusivas e éticas.
Insistindo neste ponto, os dados revelam uma perceção fraca de apoio por parte das lideranças. O que é necessário mudar para que as chefias deixem de ser parte do problema e passem a ser parte da solução?
Os resultados do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis (LABPATS) evidenciam um ambiente organizacional marcado por fraca percepção de apoio da liderança, elevado risco psicossocial e indicadores preocupantes de sofrimento mental nos contextos laborais portugueses. Neste contexto, torna-se urgente desenvolver e implementar políticas que promovam a emergência de lideranças humanizadas, conscientes e capacitadas para a gestão empática de equipas.
Um roteiro para organizações comprometidas com a mudança
Como referido na entrevista a Tânia Gaspar, o LABPATS propõe um conjunto de medidas prioritárias para transformar os ambientes de trabalho. A cultura organizacional e as lideranças devem ser reforçadas através de políticas claras de valorização do bem-estar, monitorização contínua dos resultados, formação em comunicação empática e promoção da confiança e do propósito colectivo. A saúde mental exige atenção urgente, com a criação de programas de prevenção do burnout, apoio psicológico acessível e campanhas internas para combater o estigma.
A promoção de estilos de vida saudáveis também deve ser uma prioridade, com iniciativas regulares de exercício físico, alimentação equilibrada, pausas tecnológicas e educação para o autocuidado. A valorização do trabalho passa por maior reconhecimento, modelos de trabalho flexíveis, feedback construtivo e transparência nos critérios de progressão e remuneração. As relações laborais devem ser humanizadas, com investimento em trabalho em equipa, convivência entre colegas e fortalecimento da empatia nas lideranças. Por fim, as organizações devem garantir espaços confortáveis, ergonómicos e seguros, promovendo também a responsabilidade social interna através do apoio a trabalhadores em situação de fragilidade e do estímulo ao voluntariado.
O relatório do LABPATS lança um apelo claro: a saúde mental, a qualidade das lideranças, a justiça organizacional e a valorização do indivíduo devem passar para o centro da estratégia das organizações. A saúde no trabalho não é um luxo, mas uma condição indispensável para o bem comum, a produtividade e a sustentabilidade humana. Escutar os trabalhadores e integrá-los activamente na construção das soluções é o primeiro passo para que o local de trabalho seja também um espaço de realização pessoal e de compromisso social.
Editora Executiva