Num mundo caracterizado por um nível sem precedentes de desenvolvimento económico, meios tecnológicos e recursos financeiros, o facto de milhões de pessoas viverem em extrema pobreza pode considerar-se um ultraje moral. A pobreza não é apenas uma questão económica, mas sim um fenómeno multidimensional que engloba a falta de rendimentos e de capacidades básicas para viver com dignidade. A propósito do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, o VER revela os principais dados sobre este flagelo em Portugal e no mundo
POR HELENA OLIVEIRA
Os lentos progressos registados nos últimos anos em matéria de redução da pobreza reflectem a situação mundial caracterizada por crises múltiplas e sobrepostas ou pelo que é denominado como uma “policrise”. A policrise (tema de um artigo publicado no VER em 2023) refere-se a crises múltiplas e interligadas que ocorrem em simultâneo e cujas interacções amplificam o impacto global. Os efeitos devastadores da pandemia, o lento crescimento económico, o aumento dos conflitos e da fragilidade e os progressos insuficientes em matéria de prosperidade partilhada, por exemplo, estão interligados e têm estado na origem da lentidão dos progressos na redução da pobreza. O risco de uma policrise está a aumentar devido à incerteza acrescida, à fragilidade global, às alterações climáticas e a outras vulnerabilidades que interligam diversos sectores e regiões.
Portugal não escapa a este cenário. No âmbito do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, assinalado pela Organização das Nações Unidades (ONU) a 17 de outubro e cujo lema este ano é “Acabar com os maus-tratos sociais e institucionais: agindo juntos por sociedades justas, pacíficas e inclusivas”, a Rede Europeia Anti-Pobreza (REAP) divulgou o relatório “Pobreza e Exclusão Social 2024” com números pouco animadores.
Em 2023, “a taxa de risco de pobreza ou exclusão social manteve o valor face a 2022 (20,1%), mas é acompanhada por um aumento efectivo de 20 mil pessoas em situação de risco de pobreza ou exclusão social face ao ano anterior, cifrando-se agora em 2.104.000 pessoas“, afirma a organização no relatório agora publicado.
Um outro dado preocupante divulgado pela REAP é o facto de 1,78 milhões de pessoas viverem com menos de 591 euros por mês, sendo que a maioria são mulheres (54%).
Por outro lado, mais de metade da população em risco de pobreza tem entre 18 e 64 anos – 24% são idosos (65 ou mais anos) e 19,5% são crianças e adolescentes -, sendo as famílias com crianças dependentes as que representam a maior parte dos agregados em situação de pobreza (56,7%).
Um outro valor importante refere-se às pessoas que estão em emprego: estar em emprego não se revela suficiente para quase metade das pessoas que vivem abaixo do limiar de pobreza (46,2%) e que se encontram a trabalhar por conta de outrem (33,6%) ou por conta própria (12,2%), refere igualmente o relatório. Também cerca de metade da população adulta, com idades compreendidas entre os 18 e os 64 anos de idade, abaixo do limiar de pobreza, encontra-se desempregada (23,6%) ou, por diferentes motivos, considerada fora do mercado trabalho (26,9%).
Adicionalmente, 30,5% das famílias não conseguem cobrir despesas inesperadas e 20,8% não conseguem manter a casa adequadamente aquecida.
De registar igualmente que “entre 2022 e 2023, os aumentos registados ao nível do risco de pobreza ou exclusão social visaram principalmente as famílias unipessoais (28,7%, representando um aumento de 7,5%) e, dentro destas, as que são compostas por pessoas com menos de 65 anos (26,3%, representando um aumento de 13,4%) e por homens sós (24,8%, representando um aumento de 27,7%).
Em termos geográficos, em 2023, nas regiões do território Continental e à semelhança de anos anteriores, as regiões do Norte e do Algarve destacam-se com as mais elevadas taxas de risco de pobreza ou exclusão social (22,0% e 22,6%, respetivamente), sendo que as regiões autónomas dos Açores (RAA) e da Madeira (RAM) continuam a apresentar em 2024 os maiores níveis de vulnerabilidade ao risco de pobreza ou exclusão social.
Por fim e em termos de enquadramento a nível europeu, as notícias são menos más: “Entre 2015 e 2023, Portugal apresentou uma redução significativa do risco de pobreza ou exclusão social, enquadrando-se no grupo de países que mais progrediram neste indicador na união Europeia. Nesse período, enquanto a UE 27 registou uma diminuição média de 11,3%, Portugal alcançou uma redução de 23,9%, ficando atrás de países como Hungria, Bulgária, Roménia, Chipre e Irlanda. Em 2023, a taxa de risco de pobreza ou exclusão social em Portugal (20,1%) situou-se abaixo da média europeia (21,3%), mas mais de 2 milhões de pessoas continuam a viver nesta situação de vulnerabilidade”. [pode consultar a infografia Pobreza e Exclusão Social 2024 aqui]
Assim e apresentados os “grandes números” a nível nacional, como está a pobreza a nível global? O Banco Mundial apresentou, na mesma altura, o relatório “Poverty, Prosperity, and Planet Report 2024”, que relembra que o seu objetivo global de reduzir a taxa de pobreza extrema para 3 por cento até 2030 está fora de alcance e que, ao ritmo actual, tal valor só será atingido daqui a três décadas.
A segunda década do século XXI é já considerada como “perdida”
Durante um quarto de século, as economias de todo o mundo reduziram a pobreza a um ritmo extraordinário. A partir de 1990, o rápido crescimento económico – especialmente na China e na Índia – libertou mais de mil milhões de pessoas do flagelo da pobreza extrema. Nos 25 anos seguintes, à medida que os rendimentos das nações mais pobres começaram a convergir com os das mais ricas, o mundo aproximou-se mais do que nunca da extinção total da pobreza extrema. Mas depois, a partir de 2020, com a pandemia de COVID-19, teve início uma grande inversão: a redução da pobreza abrandou consideravelmente. Os países mais pobres saíram-se pior do que as economias mais ricas na resposta à pandemia, enquanto os conflitos na Europa e no Médio Oriente perturbaram o abastecimento de géneros alimentícios e de combustível. Há dois anos, o relatório do Banco Mundial “Pobreza e Prosperidade Partilhada 2022” fez um balanço e chegou a uma conclusão desanimadora: a pobreza tinha aumentado pela primeira vez em décadas.
De acordo com o relatório do Banco Mundial, em 2024 cerca de 8,5 por cento da população mundial vive em situação de pobreza extrema. Isto significa que 692 milhões de pessoas em todo o mundo vivem com menos de 2,15 dólares por pessoa e por dia. Embora a taxa de pobreza extrema tenha descido de 38% em 1990 para 8,5% em 2024, estagnou mais recentemente graças a um menor crescimento económico e a múltiplos choques, como a já falada pandemia de COVID-19, os elevados níveis de inflação e o aumento dos conflitos e da fragilidade global.
Actualmente, a pobreza extrema é apenas ligeiramente inferior à taxa observada antes da pandemia em 2019 e, em muitos contextos pobres, as taxas de pobreza continuam mais elevadas do que eram há cinco anos. A pobreza extrema está cada vez mais concentrada na África Subsariana ou em locais afectados por conflitos e fragilidades várias.
Utilizando o limiar de pobreza ligeiramente mais elevado de 3,65 dólares por dia por pessoa (representativo dos limiares de pobreza nacionais utilizados nos países de rendimento médio-baixo), cerca de 1,7 mil milhões de pessoas vivem na pobreza em 2024 (21,4 por cento, ou cerca de um quinto da população mundial). Com o padrão ainda mais elevado de 6,85 dólares por pessoa e por dia, que é mais típico dos países de rendimento médio-alto, quase metade da população mundial (43,6 por cento) está a viver na pobreza.
Isto significa que o nível de vida de 3,5 mil milhões de pessoas está abaixo deste limiar de pobreza mais elevado em 2024. Embora a percentagem de pessoas com menos de 6,85 dólares tenha diminuído de 70 por cento para 43,6 por cento desde a década de 1990, o número efectivo de pessoas que vivem com menos de 6,85 dólares por dia quase não se alterou desde 1990 devido ao crescimento da população.
Mais grave ainda, até ao final da presente década, 7,3% da população mundial viverá em situação de pobreza extrema – mais do dobro do objetivo global do Banco Mundial de 3% e ainda mais longe do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de acabar com a pobreza extrema em todos os países até 2030. Com o limiar de pobreza mais elevado, de 6,85 dólares, as reduções na taxa de pobreza deverão continuar de forma mais notória, com um pouco menos de 40% da população mundial a viver com menos de 6,85 dólares por pessoa e por dia em 2030 (mais de 3 mil milhões de pessoas). Adicionalmente, com a actual previsão de crescimento, será necessário mais de um século para se atingir uma taxa de pobreza inferior a 3 por cento a 6,85 dólares por pessoa e por dia.
A pobreza é muito mais do que apenas a falta de dinheiro ou de rendimentos
Actualmente, milhões de pessoas estão também privadas de bens essenciais, como uma nutrição adequada, cuidados de saúde, educação, segurança e abrigo.
As desigualdades de rendimento e de oportunidades continuam a ser elevadas em muitos países, especialmente na América Latina e na África Subsariana, o que constitui um grande obstáculo à melhoria da vida das pessoas. Mesmo quando os países registaram um forte crescimento económico, este nem sempre se traduziu em oportunidades para os mais pobres ou para os que são mais vulneráveis a cair na pobreza.
Enquanto comunidade mundial, e de acordo com o Banco Mundial, há que trabalhar mais arduamente, mais estreitamente e com maior urgência para reduzir a pobreza e melhorar a prosperidade. Soluções arrojadas e uma acção internacional coordenada são fundamentais para se sair da actual policrise rumo a um mundo mais justo, mais seguro e mais próspero.
E para avançar neste sentido, há que impulsionar o crescimento inclusivo e a resiliência. A pobreza pode ser reduzida muito mais rapidamente quando os países criam mais e melhores empregos e ajudam as pessoas a adquirir mais activos a longo prazo. O emprego estável oferece não só um rendimento para cobrir as necessidades essenciais da vida, mas também oportunidades para subir na escada socioeconómica.
Igualmente importante é a atenuação e a adaptação às alterações climáticas. Cerca de 1 em cada 5 pessoas está na iminência de sofrer riscos relacionados com o clima a nível mundial, o que significa que é provável que sofram um choque climático grave durante a sua vida, do qual terão dificuldade em recuperar. Embora as prioridades políticas sejam diferentes consoante os países e as regiões, é essencial envidar esforços para combater as alterações climáticas.
Mais especificamente, os países de baixo rendimento devem promover o investimento em capital humano, físico e financeiro. Precisam de criar oportunidades de emprego e de realizar um crescimento mais elevado que seja também inclusivo para verem o máximo impacto na redução da pobreza. Embora os países de baixo rendimento sejam os que menos contribuem para as emissões globais de gases com efeito de estufa, são os que mais sofrem com as mesmas e devem trabalhar para melhorar a sua resistência aos choques climáticos.
Por seu turno, os países de rendimento médio têm de acelerar o crescimento económico e reforçar a capacidade produtiva das famílias mais pobres, investindo na educação, nas infra-estruturas e nos serviços básicos. Ao mesmo tempo, as emissões de gases com efeito de estufa destes países não podem ser negligenciadas: se não forem tomadas medidas, as suas emissões aumentarão nas próximas décadas, acabando por ultrapassar as dos países mais ricos, tendo assim de assegurar que o seu crescimento reduza a vulnerabilidade e seja menos intensivo em carbono.
As emissões de carbono continuam a ser mais elevadas nos países de rendimento elevado e médio-alto. Embora se preveja que estas emissões venham a diminuir, a actual taxa de progresso não é suficientemente rápida para limitar o aquecimento global. Estes países precisam de acelerar a transição para economias de baixo carbono, gerindo simultaneamente os potenciais custos a curto prazo.
O reforço da cooperação internacional e o aumento do financiamento para o desenvolvimento são também fundamentais para uma transição bem-sucedida para economias mais sustentáveis, inclusivas e resilientes.
É importante não esquecer que não iremos muito longe sem um aumento significativo do financiamento para o desenvolvimento sustentável. Muitos países em desenvolvimento não têm acesso a financiamento a preços acessíveis e enfrentam elevados encargos com a dívida, o que dificulta a sua capacidade de investir em áreas essenciais como a educação, os cuidados de saúde e as infra-estruturas – todas elas fundamentais para uma redução sustentada da pobreza.
De acordo com o relatório do Banco Mundial e embora os progressos tenham estagnado, ainda há esperança. Existem caminhos que podem acelerar o ritmo da redução da pobreza, aumentar a prosperidade partilhada e proteger o nosso planeta. O futuro depende de mantermos a esperança, mas também de tomarmos medidas conjuntas e urgentes. Mas ao que parece, essas medidas não constam da lista das prioridades globais.
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