O termo “policrise” tem vindo a ser crescentemente utilizado face ao conjunto de eventos negativos e globalmente entrelaçados que parecem ter agora maior expressão e gravidade. Os exemplos são muitos, mas é possível destacar-se a emergência climática, a Covid-19, a guerra na Ucrânia, a inteligência artificial, o número recorde de migrantes, aos que se junta mais um, horrendo e muito imprevisível em termos de consequências, e que é, naturalmente, o conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas. Os especialistas não são consensuais, mas são muitos os que defendem que estamos perante um “fenómeno” novo – a policrise – em termos do número e da intensidade de forças que se intersectam e que conduzem o mundo para o caos. Mas será mesmo assim ou é “apenas a História a acontecer”, como ironizou Niall Ferguson, historiador e professor na Universidade de Harvard?
POR HELENA OLIVEIRA

No relatório anual sobre os riscos globais publicado no início deste ano pelo Fórum Económico Mundial (FEM), sobre o qual o VER escreveu, alertava-se com maior gravidade – face a anos anteriores -, para um conjunto de riscos, de ordem variada, que crescentemente se entrelaçavam entre si e com um enorme potencial de condução a uma das décadas mais incertas, singulares e turbulentas dos últimos anos no mundo globalizado.

Como se podia ler no relatório “estamos a assistir ao regresso de riscos “mais antigos” – inflação elevada, aumento do custo de vida, guerras comerciais, saídas de capital dos mercados emergentes, agitação social generalizada, confrontos geopolíticos e o espectro da guerra nuclear”, depois de uma pandemia que, entre muitas baixas, testou a resiliência mundial e à qual, quando acreditávamos que poderíamos respirar um pouco de alívio, se seguiu a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. E como é sublinhado igualmente no Global Risks Report, todos estes eventos “estão a ser ampliados por desenvolvimentos relativamente novos no panorama global de riscos, incluindo níveis insustentáveis de dívida pública, uma nova era de baixo crescimento, com investimentos globais reduzidos, “desglobalização”, um declínio no desenvolvimento humano após décadas de progresso, desenvolvimento rápido e sem restrições de tecnologias de dupla utilização (civil e militar) e a crescente pressão dos impactos das alterações climáticas numa janela cada vez mais estreita para a transição para um mundo a 1,5°C.”

Passados cerca de 10 meses sobre a publicação deste relatório – e de tudo o que nele constar estar realmente a manifestar-se – mais uma vez a Humanidade seguiu em frente acreditando ou tendo fé que os riscos que o mundo sofria iriam, pelo menos, ter um período de acalmia. Na altura, o Fórum Económico Mundial chamava a atenção para que “os vocabulários colectivos armazenados nos grandes dicionários do mundo não pareciam conter uma única palavra para resumir toda esta contenda”. E eis que o termo “policrise” acabou por se tornar numa nova buzzword, comummente utilizada ao longo de todo este ano. Numa definição simplista, o termo era traduzido pelo FEM como “um conjunto de riscos globais relacionados com efeitos combinados, de tal forma que o impacto global excede a soma de cada parte”. E acabou mesmo por ser adoptado no relatório em causa, que salientava que “os choques actuais, os riscos profundamente interligados e a erosão da resistência estão a dar origem ao risco de policrises”. Ao explorar a inter-relação dos riscos geopolíticos, ambientais e sociopolíticos, o FEM utilizou também o termo para publicitar o relatório, com títulos como “Estamos à beira de uma policrise – quão preocupados devemos estar?” ou “Bem-vindos à Era da Policrise”.

Um dos principais “defensores” da palavra e do que ela significa tem sido o historiador britânico Adam Tooze, professor na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, cujos esforços para a definir são, sem dúvida, uma razão importante para esta explosão de utilização. E de facto, em Outubro de 2022, Tooze lançou a sua coluna mensal no Financial Times com o título “Welcome to the World of Polycrisis”.

Todavia e como o professor de História Contemporânea tem vindo a observar repetidamente, a “policrise” não surgiu do nada (e muito menos é um termo cunhado pelo FEM). No documento de discussão “What Is a Global Polycrisis?” (2022) do Cascade Institute, Scott Janzwood e Thomas Homer-Dixon localizaram as suas origens no livro Homeland Earth: Um Manifesto para o Novo Milénio, publicado em 1999 por Edgar Morin e Anne Brigitte Kern.

De acordo com o website polycrisis.org – o qual se dedica a compreender melhor e abordar as crises que se intersectam e afectam a humanidade –  este livro contém a primeira utilização do termo policrise. O reconhecido antropólogo, sociólogo e filósofo Edgar Morin e Anne Brigitte Kern, crítica literária e científica, e também escritora e jornalista, argumentam que “não é possível identificar um problema número um ao qual todos os outros estariam subordinados. Não existe um problema vital único, mas muitos problemas vitais, e é esta complexa ‘intersolidariedade’ de problemas, antagonismos, crises, processos descontrolados e a crise geral do planeta que constitui o problema vital número um”. Adicionalmente, os autores destacam a importância da complexidade, da incerteza e da ambiguidade no mundo como fontes potenciais de criatividade e transformação.

Um outro momento chave para a utilização do termo apontado por Adam Tooze é o discurso de 2018 do antigo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, apesar de este já ter feito uma tentativa de definição num discurso anterior, em 2016, quando explicou como várias ameaças à segurança não só eram coincidentes como se alimentavam mutuamente, “criando um sentimento de dúvida e incerteza nas mentes dos nossos cidadãos”.

Assim, estudiosos de várias disciplinas têm vindo a escrever sobre a policrise, e tanto o já referido Instituto Cascade como o Omega Institute publicaram documentos e relatórios sobre este conceito. O Cascade Institute refere que “uma policrise global ocorre quando as crises em múltiplos sistemas globais se tornam causalmente emaranhadas de forma a degradar significativamente as perspectivas da humanidade”. E acrescenta que estas crises em interacção “produzem danos maiores do que a soma do que as crises produziriam isoladamente, se os seus sistemas anfitriões não estivessem tão profundamente interligados”.

Já o Omega Institute apela, na sua página de entrada, a que se leia a sua missão e de acordo com a seguinte mensagem: “Muitos factores de stress globais – ambientais, sociais, tecnológicos, financeiros e económicos – estão a causar choques de frequência e força crescentes. O que é que podemos fazer? Estaremos a assistir ao declínio da civilização ou ao início de uma nova etapa na evolução humana – ou talvez a ambas?”

Como lidamos com a sensação de estarmos a perder o sentido da realidade?

Actualizando os riscos globais correctamente apontados pelo Global Risks Report de 2023, e sendo caso para afirmar “não nos faltava mais nada”, eis que surge o horrendo conflito entre o grupo terrorista Hamas e Israel na Faixa de Gaza, constituindo este mais um exemplo a justificar os que defendem que o estado do mundo é uma policrise em crescimento. E, na verdade, apesar dos demais riscos que não estão solucionados, mas já estudados e identificados, o que vai acontecer nos próximos tempos nesta guerra no Médio Oriente, bem como as suas repercussões no mundo inteiro, é algo que, de momento, se afigura como extremamente imprevisível. A verdade é que em Outubro de 2023, são tantos os eventos que assustam os humanos, que por vezes temos a sensação de estarmos a perder o sentido da realidade.

Embora as implicações económicas e políticas da denominada policrise tenham sido muito debatidas, há menos atenção à forma como esta tem impacto nas pessoas e na forma como pensamos, sentimos e nos comportamos. Para a empresa de estudos de mercado Ipsos, que tem também vindo a debater o fenómeno da policrise, o grande desafio reside no facto de termos poucos ou nenhuns precedentes nos quais nos possamos basear para melhor a compreender e agir sobre ela.

E tudo isto aponta para o facto de termos de nos habituar a viver de uma forma nova, descrita como “Tempos Líquidos”, em que pensar, planear e agir já não nos ajudam da mesma forma do que no passado. [O conceito de modernidade líquida foi cunhado pelo sociólogo e filósofo polaco Zygmunt Bauman, que morreu em 2017, como uma metáfora para descrever a condição de constante mobilidade e mudança que ele assistia nas relações, identidades e na economia global na sociedade contemporânea].

Assim, o facto de o impacto do nosso ambiente estar num estado de mudança constante, de estarmos a funcionar sem padrões fixos e sólidos, de não podermos confiar nas crenças que caracterizavam o nosso passado relativamente estável e mais seguro (em comparação com a situação em que nos encontramos hoje e em particular para as gerações mais recentes), obriga-nos a termos de aprender a viver uma vida de “andar sobre areias movediças”, adaptando-nos constantemente a mudanças rápidas.

Ainda de acordo com a pesquisa que tem vindo a ser realizada pela Ipsos, uma das implicações mais vastas do ambiente de policrise em que (supostamente) vivemos é o facto de os princípios que utilizámos para categorizar e compreender o mundo parecerem muito menos eficazes para explicar a tal “modernidade líquida” de Bauman e que foi o título escolhido para um dos seus livros publicado em 1999. A historiadora Mary Poovey, professora de Humanidades na Universidade de Nova York e directora do  Instituto para a História da Produção do Conhecimento sugere que a presente situação põe em causa a nossa noção de “factos”, desligando as nossas observações específicas dos princípios “mais profundos” que as explicam. Num ambiente complexo de policrise,” é provável que estejamos a ver o mundo como algo em que só podemos especular sobre as causas subjacentes, em vez de afirmar explicações a partir de princípios mais amplos”.

Esta mudança subtil na nossa cognição colectiva pode ajudar a explicar o aumento das notícias falsas, da desinformação e das teorias da conspiração, à medida que as pessoas se tornam mais dispostas a oferecer explicações alternativas que podem estar fora do conhecimento convencional.

Adicionalmente, e como conclui a pesquisa da Ipsos, estas mudanças significativas podem sugerir que nos encontramos no meio de tempos potencialmente revolucionários. Não necessariamente da forma que poderíamos esperar na utilização deste termo, com pessoas nas ruas a derrubar as autoridades, mas na forma como pensamos, sentimos e nos comportamos e, de facto, nos vemos a nós próprios como seres humanos. “Estamos a chegar a um ponto em que aquilo em que acreditamos sobre nós próprios é uma versão mais pluralista e colectiva do que poderíamos esperar. Mas também podemos ver-nos mais claramente como seres que estão inseridos num mundo complexo e que já não ocupam a posição de primazia a que pensávamos ter direito”.

Foto: Pascal van de Vendel / Unsplash.com

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