POR HELENA OLIVEIRA
Na passada semana e a propósito da vinda de Joseph Stiglitz a Portugal (e sobre a qual o VER escreveu), o Nobel da Economia, alertando para os efeitos (ainda mais) perversos decorrentes da crescente desigualdade global, focou um estudo recente, publicado em Setembro último, e intitulado “Rising morbidity and mortality in midlife among white non-Hispanic Americans in the 21st century”, o qual, e como o nome indica, aponta para o aumento do número de suicídios, em paralelo com a crescente utilização de drogas e álcool, por parte da população masculina e branca, na faixa etária entre os 45 e os 54 anos, nos Estados Unidos. Para Stiglitz, este aumento está directamente relacionado com o fenómeno da desigualdade, principalmente a que afecta os norte-americanos cujo impacto da estagnação de salários, despedimentos e desemprego de longo prazo – em particular desde a Grande Recessão de 2007 – é mais violento e atinge, sobremaneira, aqueles que menores competências académicas possuem.
O fenómeno em causa despertou o interesse do VER, como rastilho para outros efeitos menos visíveis de uma era que é caracterizada pela insegurança laboral, pelo aumento dos níveis de precariedade e por uma maior desagregação das famílias, na medida em que “perder o emprego” é também perder a identidade, abandonar sonhos e colocar em causa não só o próprio futuro, como as expectativas para uma “vida melhor” que, no geral, todos os pais sonham para os filhos.
Tendo em mente estes impactos menos visíveis, o VER foi à procura de literatura recente sobre as consequências, em termos de identidade, emocionais e familiares, da denominada era da insegurança ou da incerteza e, apesar de os dados encontrados terem como universo a realidade norte-americana – diferente, em alguns patamares, da europeia – a verdade é que muitos deles se podem extrapolar para o que milhares de europeus passam e sentem na pele nos últimos anos. E se existem efeitos que não podem ser considerados surpreendentes, outros há que o são e que nos obrigam a enfrentar uma realidade que é já o “novo normal” e que coloca em causa muitos dos pilares que sustenta(ra)m a nossa sociedade tal como a conhecemos, em particular a denominada “classe média”, cujo significado se alterou também.
Do conforto e optimismo ao stress e à ansiedade
De acordo com uma pesquisa recente elaborada pelo Pew Research Center, quase nove em cada 10 norte-americanos considera fazer parte da classe média, independentemente do facto dos seus rendimentos estarem mais perto da linha da pobreza ou perto do escalão dos que auferem “rendimentos elevados”. Para os responsáveis deste estudo em particular, e mesmo que a proporção dos agregados que realmente tem acesso a rendimentos médios tenha diminuído, a identificação das pessoas com a classe média permanece elevada, na medida em que este “sentimento de pertença” tem mais a ver com aspirações do que propriamente com economia. Todavia, o que anteriormente poderia caracterizar por excelência a “classe média” a nível geral, não só nos Estados Unidos, como na Europa – a ideia de conforto e de optimismo face ao futuro – tem vindo a ser significativamente substituída por estados emocionais representados por níveis elevados de ansiedade e stress. Mas não só.
A estagnação de salários e a perda de postos de trabalho nos últimos anos – numa conjugação entre um mercado global competitivo, a “Grande Recessão” e a automatização de inúmeras tarefas – tem vindo a ser objecto de pesquisa em termos económicos e, dado que a volatilidade económica e financeira tem já uma duração considerável, começa agora a servir também como material de estudo a nível psicológico – o que sentem as pessoas perante esta insegurança e de que forma a mesma afecta as suas expectativas – e também em termos de pesquisa sociológica, ou seja, no que respeita ao impacto que a mesma tem nos relacionamentos face ao núcleo familiar, de amigos, vizinhos, colegas, entre outros. E, em ambos os casos, as pesquisas apontam para um enorme sentimento de vulnerabilidade que, tal como foi anteriormente citado, poderá transformar-se, mais cedo do que julgamos (em vário casos, é já mesmo uma realidade) no “novo normal”.
De acordo com um outro estudo realizado por vários economistas pertencentes ao Federal Reserve Bank of St. Louis, a denominada classe média pode estar a sofrer uma pressão muito maior do que aquela que se julga, em especial se a sua situação actual for comparada ao aumento/progressão dos salários face ao dos seus pais – mesmo tendo alcançado níveis académicos mais elevados -, às questões de mobilidade social, sendo que aqueles que se consideravam sociologicamente “estáveis” apenas percebem que estão cada vez mais pobres. Na verdade, a maioria dos especialistas que estuda a denominada classe média concorda (e não só agora) que existem várias, e não apenas uma, ligadas, no entanto, por um factor comum: um sentimento de segurança económica.
Ora, e na medida em que este sentimento de segurança tem vindo a sofrer uma enorme erosão, devido aos factores já enunciados, mas também devido ao facto de o valor das três maiores despesas por excelência deste escalão económico – habitação, educação e saúde – ter sofrido aumentos progressivos, um número crescente de pessoas, não só nos Estados Unidos, como também na Europa, tem vindo a aproximar-se cada vez mais da linha da pobreza, o que tem enormes implicações emocionais, em particular face às suas expectativas.
Assim e para além da discussão financeira, o que significa realmente perder um trabalho, sofrer de uma redução significativa nos rendimentos, viver em estado de “desemprego de longa duração” ou ter que abandonar qualquer expectativa outrora possível relativamente a um futuro melhor? Foi com esta premissa central, a de explorar o significado do trabalho e, em particular, do desemprego, em matérias que vão muito mais além do que a mera perda de rendimentos, que a socióloga Allison Pugh, da Universidade da Virginia, resolveu entrevistar 80 casais, todos eles com backgrounds e níveis de rendimentos diferenciados, dando origem ao livro “The Tumbleweed Society: Working and Caring in an Age of Insecurity”. A pesquisa da autora privilegia a experiência emocional que molda a forma como as pessoas passam a pensar sobre si mesmas e como se relacionam com os que lhe são mais próximos, quando os seus rendimentos são reduzidos e/ou interrompidos. E as suas conclusões no que respeita à ética do trabalho, à identidade, à forma como a insegurança laboral afecta a vida familiar, entre outros impactos, são dignas de reflexão.
Desemprego, sentimento de culpa e pressão constante
Como sabemos, o fim do “trabalho para a vida” não é de agora, mas agudizou-se substancialmente ao longo dos últimos anos. Resta-nos, actualmente, a cultura da insegurança laboral perpétua, a facilidade com que uma empresa pode despedir empregados, em conjunto com uma mobilidade de “troca de empregos” que, em muitos casos, não é negativa, antes pelo contrário, em particular para os detentores de níveis académicos mais elevados e, consequentemente, com rendimentos superiores, os quais continuam a poder dar-se ao luxo de procurar “melhor” – até encontrarem o “emprego perfeito” – , tal como Allison Pugh sublinha no seu livro.
Todavia e para uma significativa maioria de pessoas, aprender a lidar com esta incerteza “crónica” transformou-se numa obrigatoriedade, a qual provoca uma tensão permanente, na medida em que ou o desemprego acontece ou parece estar permanentemente à espreita. Este estado de pressão incessante, que determina não só as expectativas imediatas, como as de longo prazo, está a provocar alterações complexas nas vidas e nas mentes daqueles que, crescentemente, engrossam as fileiras da era da insegurança.
No trabalho de Allison Pugh, uma das dimensões estudada foi a que une, de forma estreita, a noção de trabalho árduo com a identidade de cada um, em particular a dos homens, na medida em que à masculinidade está ainda enraizada a cultura do “ganha-pão” ou do chefe de família. No caso em particular dos americanos, assegura a autora, a noção de “trabalho árduo” é aquela que os diferencia face aos demais. Como escreve, é o que distingue os ricos dos que pertencem à classe média, como esta última se distingue face à “classe operária” e também a que “separa” os homens das mulheres, principalmente no que respeita às que ficam em casa a cuidar dos filhos. Ou, por outras palavras, “ a ética do trabalho e independentemente das formas variadas que são usadas para a definir, consiste num meio poderoso através do qual as pessoas se sentem ‘honradas’ [ou dignas] na sociedade que as acolhe”. E é por isso que perder o emprego, mais do que uma interrupção no rendimento é, ao invés, uma “grande dor”, não só por causa das aspirações que são forçosamente abandonadas, mas sim pela forma como as pessoas se sentem relativamente a si mesmas e perante os que lhe são mais próximos.
E se, em termos psicológicos, não é difícil inferir os danos que este tipo de situações causa a nível emocional, o que resulta num resultado surpreendente comprovado por uma grande parte dos 80 casais entrevistados pela socióloga Pugh, é o facto de, em vez de raiva, a autora ter encontrado um enorme sentimento de culpa por parte de quem foi despedido.
Ou seja, Allison Pugh define esta reacção como um “sistema de honra de uma só via” na medida em que os empregados – nos casos em que o sistema laboral é precário e mal pago ou que redunda mesmo em despedimento – sentem uma obrigação relativamente aos empregadores, apesar de o mesmo ter deixado de existir em “sentido contrário”. Ou seja, se são várias as pesquisas que demonstram que os norte-americanos têm uma tendência significativa para se auto-culpabilizarem pela insegurança no trabalho – mesmo que esta resulte de mudanças estruturais na economia ou de meras tácticas pouco honestas da gestão – Pugh foi capaz de confirmar esta tendência ao longo das conversas que teve com os 80 casais que dão corpo ao seu livro.
Num paper que publicou na revista Aeon, o qual foi incluído no livro, a autora escreve: “percebi que todos nós fazemos um enorme esforço para manter os mais fortes dos nossos sentimentos longe dos empregadores, que encolhemos os ombros em sinal de resignação, que falamos dos despedimentos como novas oportunidades de crescimento e que até nos esforçamos para nos convencermos a nós próprios que estamos contentes por não termos de manter ‘aquele’ trabalho em particular”. E se a culpa pode ser corrosiva tanto para os homens como para as mulheres, os primeiros tendem a senti-la de uma forma muito mais cruel, na medida em que entendem o trabalho como a primeira medida para a sua masculinidade. Todavia, não deixa de ser curioso o facto de as empresas – em particular na era em que a sua responsabilidade social é tão “falada” – terem-se demitido do mesmo “contrato de lealdade” protagonizado pelos trabalhadores os quais, no caso norte-americano, “consideram não ser ‘tarefa’ das empresas preocuparem-se com o destino dos seus colaboradores, pois já têm muito com que se ocupar face à dureza da economia e da competitividade”.
A socióloga escreve assim que, de forma até exagerada, os norte-americanos parecem ter capitulado face ao modelo da “performance elevada”, que mais não deve aos seus trabalhadores, como referiu uma das mulheres entrevistadas, do que “um cheque ao final do mês e um pouco de respeito”. Para a autora, o preocupante é as pessoas já darem como facto adquirido esta insegurança, demitindo-se do seu “direito” de se sentirem zangadas ou traídas pelas empresas que dispensaram os seus serviços. “É como se já tivessem desistido de lutar”, acrescenta ainda Pugh.
O impacto na família e nas expectativas para os filhos
Em simultâneo, esta incerteza laboral, no geral, e as situações de desemprego no particular, provocam alterações em paralelo na vida pessoal e familiar. Apesar de não existirem evidências comprovadas entre o aumento da taxa de divórcios e de separações em casais em que pelo menos uma das partes está em situação de desemprego, a verdade é “que o velho estilo de organização do trabalho encorajava um estilo particular de intimidade e de famílias”, afirma Pugh.
Ou, como sublinha, “a insegurança laboral conduz mais facilmente à disrupção familiar, enquanto a estabilidade no trabalho origina famílias mais estáveis”, o que apesar de não constituir uma “norma”, é fácil de compreender: não é difícil imaginar o quão complicado pode ser manter uma família unida quando a mesma se tem de desdobrar, procurar incessantemente e reinventar-se para prover às necessidades de quem dela depende.
Obviamente que, e tendo em conta que entre os entrevistados de Allison Pugh, vários eram os casais com rendimentos elevados e “empregos estáveis” com aspirações para encontrar o “trabalho perfeito”, o grau de impacto no caso de um dos membros do casal ser despedido é muito menor comparativamente aos membros da classe “média” ou “operária”. “As pessoas mais afluentes”, afirma a socióloga, “têm a capacidade de proteger a sua vida privada – erigindo uma espécie de muro moral – face à agitação ou insegurança que poderão estar a sentir no local de trabalho”.
Mas a forma como a insegurança atinge os agregados de menores rendimentos faz do “compromisso” uma questão a ter em conta. Para estes, não existe qualquer muro entre o trabalho e a vida pessoal/familiar, na medida em que a insegurança no trabalho e a instabilidade nos rendimentos os força a terem um conjunto de relacionamentos instáveis tanto no trabalho (quando o têm), como nas suas vidas privadas.
E, entre estas vítimas da cultura de insegurança, Allison Pugh encontrou duas respostas distintas: uma espécie de “declaração de independência” na qual nenhum tipo de compromisso é esperado, a não ser no que respeita aos filhos de cada um; e um “hiper-compromisso” relativamente aos deveres que se tem relativamente aos outros, começando pelos filhos, mas estendendo-se a outros membros da família, especialmente aos ascendentes. A explicação para esta diferença reside, na visão da socióloga, nas expectativas em crescente declínio no que respeita a apoios sociais ou de segurança económica básica que qualquer sociedade “digna” deveria proporcionar.
Tanto os “independentes” como os que assumem os mais pesados dos fardos, sublinha a autora, ostentam “níveis irrealistas de ‘responsabilidade individual’, não esperando nada nem dos empregadores, nem dos governos ou de qualquer outra instituição”, na medida em que a sociedade actual está também a perder a “eficácia colectiva” outrora oferecida pela Igreja, pelos sindicatos ou por um Estado Social “generoso”.
No que respeita aos filhos – e aos valores que lhes são incutidos – a cultura da insegurança está já a ter também impactos diferentes. A boa notícia é que, de todos os 80 casais entrevistados, Pugh afirma que a preocupação, amor e cuidados relativamente aos filhos, está sempre em primeiro lugar, independentemente dos rendimentos que as famílias auferem.
Todavia, também não é surpreendente que, para os que tem menores rendimentos, educar um filho consiste numa tarefa muito mais complexa. Um dos efeitos mais visíveis para estas famílias reside no facto de os adolescentes deixarem de acreditar que o trabalho árduo tem as suas recompensas e que somos nós que controlamos o nosso destino e não o contrário. Em comum, tanto os pais mais afluentes, como os de menores rendimentos, pretendem preparar os filhos para um futuro incerto e inseguro encorajando-os a serem flexíveis. Os seus objectivos não diferem na medida em que todos pretendem que as crianças se concentrem no seu próprio desenvolvimento, que mantenham alguma independência, que antecipem a insegurança no trabalho e que se protejam a si mesmos de “más companhias”.
A diferença reside, no entanto, no significado de “flexibilidade”. Os pais mais afluentes educam os seus filhos para estes serem flexíveis no sentido de retirarem vantagem das oportunidades que lhes são oferecidas. Os pais com menores rendimentos educam os seus filhos para que se preparem para más notícias e para tempos de adversidade inevitável.
Ou, como tão bem escreve Allison Pugh, “um grupo está a ser preparado para a oportunidade e o outro para a catástrofe”. E é também isso que significa desigualdade.
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