No dia 21 de Novembro, o sultão Al Jaber afirmou que esperava uma conversa «sensata e madura» quando interpelado por Mary Robinson, antiga enviada especial da ONU para as alterações climáticas. O sultão disse ainda que a eliminação total da combustão fóssil iria recambiar a humanidade de regresso à idade das cavernas. É uma frase que se podia ouvir na mesa de café dita por alguém pouco informado, mas a Al Jaber coube a presidência da COP 28. Ninguém ficou indiferente
POR PEDRO COTRIM

Al Jaber é também o presidente-executivo da empresa petrolífera estatal dos Emirados Árabes Unidos, a Adnoc, pelo que muitos observadores consideram haver um grave conflito de interesses relativamente ao papel para que foi convocado na COP 28.

Assistimos a estas declarações e ficamos com pena do sucesso do Mundial do Qatar. Pensamos no que poderia ter representado uma recusa das grandes estrelas do futebol em participar no torneio do ano passado. Lembramo-nos da recusa de Cruyff em jogar o campeonato de 1978 na Argentina em forma de protesto contra a ditadura militar que subjugava o país. Das coisas sem importância, o futebol é a coisa mais importante do mundo, afirmou celebremente Arrigo Sachi. Se quem joga o jogo mais popular do mundo não comparecesse no torneio mais importante do mundo, as questões das alterações climáticas e dos direitos humanos teriam merecido outros ouvidos?

É apenas uma especulação, uma nota de pensamento contrafactual – e se?

A história está repleta de «e ses». No próprio caso do motor de combustão interna, alguns historiadores sugerem que o desenvolvimento inicial do motor a gasolina e de toda a investigação subsequente teve a ver com o facto de as senhoras preferirem os modelos eléctricos, muito menos ruidosos, enquanto os homens, principais compradores dos carros de há cento e poucos anos, apreciaram o barulho dos motores a gasolina. Podemos pensar no que quisermos, mas nada é líquido numa realidade alternativa, nem sequer a nossa própria existência.

Temos então a COP. Sabemos das metas e dos números. Sobretudo, sabemos dos anos em que é necessário obedecer às ordens que nos podem salvar. Sabemos que a partir do dia 1 de Janeiro de 2035 não poderemos comprar um carro novo a combustão na Europa. As outras métricas são de percepção mais difícil e os líderes mundiais reúnem-se para as decidir neste petro-estado, que, juntamente com outros países do Golfo, parece pouco disposto a reduzir a produção de petróleo.

A COP 28 decorre no final de 2023. Será o ano mais quente de sempre, mas contas definitivas apenas no começo de 2024, quando se coligir toda a informação. Contudo, há muitos dados que se podem avançar:

– Nunca lançámos tanto CO2 para a atmosfera;

– A China emite quase cinco vezes mais que a totalidade dos países da EU, mas em termos per capita, os EUA e a Rússia levam a palma;

– O limite dos «1,5°C», mais que badalado há vários anos, está à beira de ser ultrapassado;

– As emissões de gases com efeito de estufa terão de atingir o seu máximo antes de 2025, o mais tardar, e diminuir 43% até 2030 para limitar o aquecimento global a 1,5°C;

– Os efeitos directos das alterações climáticas na saúde foram avaliados – morrem por ano 7 milhões de pessoas por causa da poluição atmosférica e da propagação de doenças. Nesta COP 28 foram elaboradas «cápsulas de poluição» em que se pretende simular o ar que se respira em três grandes metrópoles. Quem as experimentou diz que foi uma experiência pouco agradável.

A COP 28 será encerrada no dia 12. Durante o evento, estamos a viver um dos começos de Dezembro mais nevosos na Europa. Bem sabemos que o «aquecimento global» não impede recordes de frio. No fundo, cai neve nos sítios onde é habitual cair. Uma Alemanha ou uma Dinamarca jamais pintadas de branco será a concretização da calamidade, pois no dia em que tal suceder, os ecossistemas mundiais terão colapsado.

António Costa, no seu discurso na COP 28, afirmou: «Muitas vezes ouvimos dizer que não há um planeta B. A verdade da história é que o planeta já existia antes da humanidade e provavelmente pode sobreviver à humanidade. O que sabemos, de certeza, é que a humanidade não sobreviverá a si própria e que não há uma Humanidade B». Alguns líderes alertam o mesmo, outros continuam a fazer orelhas moucas à ciência.

Os observadores internacionais não esperam grandes novidades, mas convém acompanhar o evento. No Dubai a realidade é muito dinâmica, com arranha-céus, hotéis e enormes shopping centers construídos quase da noite para o dia. Porém, tal fachada chamativa esconde um pátio das traseiras que permanece eternamente na obscuridade.

Já sabemos que os trabalhadores dos grandes estaleiros de construção vêm de outros países, nomeadamente do sudeste asiático, poupam cada cêntimo que ganham. Partilham quartos de várias pessoas cedidos pelos seus empregadores e jantam no chão em cima de jornais que exibem anúncios dos Rolex vendidos nas lojas duty-free.

O prato habitual consiste num prato de arroz com molho de tomate, cebola e pimenta, sem carne nem peixe. Têm de apertar o cinto para poderem enviar para casa 80 ou 100 euros por mês. Em proporção à sua população, os Emirados Árabes Unidos têm a quinta maior proporção mundial de trabalhadores imigrantes: 8 milhões de pessoas de 200 nacionalidades para 9,6 milhões de habitantes – em termos de área e população, os EAU são praticamente equivalentes a Portugal. Só no Dubai há 3,5 milhões de estrangeiros. Esta imigração pretende permanecer temporária, sem reencontros familiares e com contratos a termo, habitualmente de três anos, mas na realidade os trabalhadores acabam por ficar mais tempo.

Os primeiros trabalhadores migrantes chegaram na década de 1950, com o início da exploração petrolífera nos países do Golfo. Os fluxos intensificaram-se na década de 1970 com a ascensão do porto do Dubai e explodiram com o boom da construção na década de 2000. Permitiram que o Dubai acumulasse superlativos: o maior arranha-céus do mundo, o maior shopping center do mundo, hotéis 7 estrelas em forma de vela e ilhas artificiais a lembrar palmeiras ou representações do mundo. Na maior parte, esses trabalhadores falam apenas um inglês elementar. São difíceis de se fazerem entender e são poucos os que conseguem e ousam exprimir-se neste país onde os sindicatos e as greves são proibidos.

As condições de vida dos trabalhadores imigrantes são tais que os suicídios são frequentes. De acordo com o consulado indiano em Dubai, mais de 100 indianos se mataram todos os anos entre 2009 e 2011, um número que desceu entretanto para 80 suicídios anuais desde 2012, longe do pico de 147 mortes durante a crise financeira de 2008, que bloqueou muitos estaleiros. Alguns atiram-se do cimo de arranha-céus porque ficam presos no sobre-endividamento – é impossível, por orgulho ou por sentido de honra, dizer a verdade aos pais que ficaram no país e que estão aflitos por uma coisa: dinheiro.

Há muitas histórias de desgraça humana nesta zona do planeta que não cabem neste artigo. Haverá muitas mais histórias de desgraça humana se não se ouvirem os cientistas neste país do tudo ou nada em que se desenrola esta COP. As vozes internacionais têm o palco perfeito para se fazerem ouvir. Que assim seja e que haja ouvintes atentos; senão, daqui a uns anos, nem ouvidos haverá para escutar vozes que também deixarão para sempre de se ouvir.