O WBCSD publicou um estudo que explora as vulnerabilidades sistémicas expostas pelo surto de coronavírus e de que forma a crise poderá configurar a próxima década através da sua interacção com divisões demográficas, políticas e culturais já existentes, bem como acelerar tendências já em curso. Certo é que a pandemia irá exacerbar tensões, mas poderá, em contrapartida, criar um contexto no qual a construção da solidariedade entre grupos cujos interesses são normalmente opostos se torne possível
POR HELENA OLIVEIRA
A pandemia de Covid-19 é, claramente, um acontecimento profundamente disruptivo que terá consequências de curto e longo prazo para a saúde global, para a política, para a economia, e não só. Apesar de estarmos, em termos de resposta de curto prazo aos seus efeitos, sob uma enorme nuvem negra, poderão existir algumas janelas de oportunidade. Em muitos países, o surto pandémico deu origem a intervenções políticas jamais imaginadas, pelo menos no curto prazo. E enfraqueceu o que Milton Friedman apelidava de “tirania do status quo”, criando um contexto no qual a mudança radical e sistémica se torna possível.
Como avança o estudo publicado a semana passada pelo World Business Council for Sustainable Devlopment (WBCSD) intitulado “The consequences of COVID-19 for the decade ahead”, estas janelas de oportunidade não são muito comuns, apesar da probabilidade de virem a ser mais prováveis no futuro, na medida em que a nossa sociedade e economia globalizadas se tornam mais propensas a choques sistémicos e crises sem precedentes. Apesar dos paralelos históricos serem imperfeitos, em termos de natureza e escala de disrupção, já é possível afirmar que a Covid-19 constitui uma das maiores crises dos últimos 100 anos, posicionando-se “lado a lado” com a pandemia da gripe pneumónica em 1918-19, com a Grande Depressão, com as duas guerras mundiais, as crises do petróleo dos anos de 1970 e, mais recentemente, com a crise financeira de 2007-2008. A verdade é que todas estas crises conduziram a alterações profundas em termos políticos, económicos e sociais, algumas positivas e outras nem tanto e muito do que acontecer dependerá da resposta que for dada a curto prazo relativamente à propagação do novo coronavírus.
Mas, e tal como todas a crises, a pandemia de Covid-19 tem potencial para ser um catalisador para a mudança positiva. Claro que, e a curto prazo, as suas consequências apresentam-se como esmagadoramente negativas – e a atenção está adequadamente focada em formas para minimizar a perda de vidas e mitigar os seus efeitos na saúde, bem-estar e na vida em geral das pessoas. Mas exactamente porque é um acontecimento disruptivo para os nossos sistemas políticos e económicos, existe a possibilidade de vir a acelerar a emergência daquilo a que John Elkinton chama de “cisnes verdes” [em oposição aos “cisnes negros” de Nassim Nicholas Taleb].
Estes “cisnes verdes” constituem mudanças de mercado profundas com consequências exponencialmente positivas para as pessoas e para o planeta. E assentam numa combinação de paradigmas em mudança, valores, mentalidades, políticas, tecnologias, modelos de negócio e outros factores – todos eles com tendência para se alterarem de uma forma mais profunda e rápida em tempos de crise. E significa muito mais do que algumas mudanças comportamentais veiculadas pela pandemia, como por exemplo a provável mudança para o trabalho remoto em algumas profissões ou indústrias. Tem sim, a ver, com a extensão mediante a qual a Covid-19 nos forçará a reavaliar profundamente aquilo que valorizamos e a forma como operamos.
Covid-19 expôs vulnerabilidades globais variadas
No momento em que vivemos, a pandemia continua a ter um impacto devastador nas vidas de milhões de pessoas em todo o mundo. E revelou igualmente algumas verdades cruas sobre a escala dos riscos sistémicos que enfrentamos e sobre a ausência de resiliência patente nos nossos modelos operativos actuais. O WBCSD sublinha cinco factores que estão a contribuir para que o impacto da Covid-19 na crise da saúde e da economia esteja a ser ainda pior do que se julgava.
A dependência extrema do crescimento económico
A pandemia – e as respostas governamentais à mesma – despoletou uma queda dramática e sustentada no que respeita à procura e produção globais. Um pouco por todo o mundo, milhões de empresas e milhares de milhões de vidas estão a sofrer um impacto sem precedentes. Os governos estão a tentar fornecer apoios temporários a muitos negócios e agregados que não têm almofada financeira para amortecer o embate da crise. Mas e como afirma o economista Pierre-Olivier Gourinchas, da Universidade de Berkeley, “achatar a curva da infecção fará, inevitavelmente, aumentar a curva da recessão económica”. E, como sabemos, este trade-off consistiu, sem sombra de dúvida, um factor determinante para a relutância inicial de muitos decisores políticos para implementar medidas de contenção – relutância essa que acabou por piorar tanto a crise na saúde como a económica no longo prazo.
E não existe nenhuma forma responsável para os governos estimularem a procura por parte dos consumidores – e, consequentemente, o crescimento económico – até que a crise na saúde seja ultrapassada. Contudo e como também sabemos, a recessão macroeconómica tem também um severo custo humano – especialmente nos países que não possuem redes de segurança para os milhões de trabalhadores que, de repente, se viram sem emprego, o que coloca nos ombros dos governos um problema com dupla face. O grau de acordo com o qual a estabilidade social e o bem-estar é dependente de um crescimento económico constante transformou-se numa fonte de vulnerabilidade na presença desta pandemia.
Níveis elevados de desigualdade no interior e entre países
A forma como as pessoas estão a viver esta pandemia é parcialmente determinada pelo lugar que ocupam no espectro global da riqueza e dos rendimentos. Os que estão no topo têm “amortecedores” financeiros e acesso a cuidados de saúde de elevada qualidade, sendo que os que estão na base não têm nem uma coisa nem outra. Como resultado, a desigualdade age como um “amplificador de ameaças”, interagindo com a disseminação do vírus mediante formas que aumentam a vulnerabilidade da sociedade enquanto um todo. Como notam os professores Ian Goldin e Robert Muggah, “o isolamento social simplesmente não é uma solução para famílias numerosas a viver num único espaço ou para aqueles que têm de se deslocar para colocar comida na mesa”.
Tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento, muitos trabalhadores inscrevem-se na categoria da precariedade, o que significa que enfrentam, há décadas, estagnação nos salários, pouca ou nenhuma segurança laboral e ausência de acesso a benefícios como subsídios de doença ou seguros de saúde. E o número de precários aumentou substancialmente nos anos recentes com todos aqueles que se juntaram à denominada “economia gig”. E foram também estes mesmos trabalhadores os primeiros a verem a sua subsistência ameaçada pela pandemia, sendo que nem os governos dos países mais ricos estão a saber como lidar com este fenómeno em crescimento.
A fraqueza das normas e instituições que permitem a coordenação e a colaboração
Tanto entre países como no seu interior, a ausência de coordenação na forma como governos e outros actores responderam à pandemia demonstra a deficiência e a erosão das normas e instituições concebidas para facilitar a colaboração ao longo dos últimos anos. Alguns países baniram as exportações de equipamento médico e outros fornecimentos críticos. As nações ricas foram, na sua maioria, relutantes em oferecer apoio aos países pobres. As instituições transnacionais – desde o G20 à União Europeia – foram amplamente marginalizadas. E, nos Estados Unidos, tanto os estados como os hospitais foram deixados num clima de competição entre si por suprimentos médicos escassos, o que contribuiu para uma subida generalizada dos preços.
No geral, a ausência de coordenação está a comprometer a eficácia da resposta tanto no que diz respeito à crise na saúde como na economia. E dado o elevado nível de contágio do vírus, o fracasso em combater a pandemia em todos os países dará muito provavelmente origem a surtos recorrentes logo que o confinamento económico e das viagens começar a ser levantado.
Sub-investimento nos sistemas de saúde e na pesquisa científica
“Isto não deveria ter sido uma surpresa”, afirma o médico Seth Berkley, CEO da GAVI [Aliança Mundial para Vacinas e Imunização]. “Este é o terceiro coronavírus a saltar para os humanos. Tivemos a SARS no início de 2002. Depois a MERS uns anos mais tarde e agora temos este vírus”. Na verdade, entre 2011 e 2018, a Organização Mundial de Saúde rastreou 1483 eventos epidémicos em 172 países. E como fez notar Michael Liebrech, “deveríamos estar a agir como se enfrentássemos uma ameaça pandémica de três ou quatro em quatro anos, pois essa é a realidade”. Adicionalmente, o risco de epidemias e pandemias zoonóticas está a aumentar devido à desflorestação, às alterações climáticas, à urbanização e à conectividade global. Em Janeiro último, David Quammen , autor do livro Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic, escrevia no New York Times o seguinte: “cortamos as árvores; matamos os animais ou metemo-los em gaiolas para os enviar para os mercados; provocamos disrupções nos seus ecossistemas e libertamos os vírus dos seus hospedeiros naturais. E, quando isso acontece, eles precisam de um novo hospedeiro. Em muitos casos, somos nós”.
Todavia e apesar da sua previsibilidade, a Covid-19 rapidamente sobrecarregou os sistemas de saúde até de alguns dos países mais ricos do mundo, ao mesmo tempo que expôs a cruel realidade de quão longe estamos de atingir a cobertura da saúde universal tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos. E o rápido aumento do número de mortes serve para nos lembrar dos custos humanos muito reais com origem no nosso fracasso em agir antes de a crise nos bater à porta.
Demasiado enfoque na eficiência e no valor de curto prazo por parte das empresas
Tal como Roger L. Martin escrevia num artigo da Harvard Business Reviw em 2019, “os sistemas resilientes são tipicamente caracterizados pelas mesmas características – diversidade e redundância – que a eficiência procura destruir”. E este é um problema desde que grande parte do mundo empresarial foi “afinado” para maximizar a eficiência: a prevalência da produção “just-in-time” e das cadeias de abastecimento é um exemplo. Um inquérito realizado pelo Institute for Supply Chain Management conduzido entre finais de Fevereiro e inícios de Março fez saber que quase 75% das empresas estavam já a sentir algum tipo de disrupção nas suas cadeias de abastecimento devido ao coronavírus e que 44% não tinham qualquer plano para lidar com esta realidade.
Um enfoque excessivo na maximização do valor financeiro de curto prazo – e uma acumulação excessiva de dívidas empresariais em tempos de taxas de juro baixas – deu origem ao facto de muitas empresas estarem deficientemente preparadas para lidar com um choque económico, tal como o que foi despoletado pela Covid-19. Em Outubro do ano passado, o FMI alertava para que uma recessão económica com metade da severidade da crise global financeira de 2007-2008 poderia resultar em 19 triliões de dólares de dívidas das empresas. E, em Janeiro, um artigo da Harvard Buiness Review alertava que as empresas que optavam pelos programas de recompra de acções ficavam privadas da liquidez necessária para lidar com o declínio nas vendas e lucros numa recessão económica. E eis que ela nos bate à porta.
Como a Covid-19 irá moldar os anos 20 do século XXI
Os efeitos cascata da Covid-19 irão prolongar-se, e muito provavelmente, ao longo dos próximos anos. E já é possível termos uma noção da forma como a presente crise está a interagir com tendências e questões globais já existentes. Apesar de uma das “frases” da crise ser a de que estamos todos no mesmo barco, a verdade é que a Covid-19 afecta diferentes grupos de forma distinta: os idosos são mais vulneráveis que os jovens e os ricos estão mais bem protegidos do que os pobres. Em alguns casos, e de acordo com o estudo do WBCSD, a pandemia irá exacerbar tensões, mas poderá, em contrapartida, criar um contexto no qual a construção da solidariedade entre grupos cujos interesses são normalmente opostos se torna possível . Vejamos alguns exemplos do que já está a acontecer.
Desigualdade de rendimentos e de riqueza: actualmente, aqueles que se situam na base do espectro da riqueza e do rendimento são os que mais duramente atingidos estão a ser pela Covid-19, na medida em que são também aqueles com menores hipóteses de aceder a cuidados de saúde adequados. Muitos não se podem dar ao luxo de não ir trabalhar, o que os expõe, e aos outros, a um risco maior de contaminação. E se, no curto prazo, a Covid-19 poderá contribuir para reduzir a desigualdade tornando os ricos um pouco mais pobres, este será, muito provavelmente, um efeito secundário de curta duração. A verdade é que o coronavírus aumenta as probabilidades de fazer aumentar a desigualdade no interior e entre países, apesar das respostas políticas pós-pandemia serem críticas para a evolução desta matéria.
Desigualdade de género: existem indícios crescentes de que as consequências sociais e económicas estão a afectar, de forma desproporcional, as mulheres. Nos estados de confinamento, são as mulheres e raparigas que estão a carregar a maior parte do fardo da prestação de cuidados, muitas vezes às custas da sua própria saúde, carreira e educação. Por seu turno, e para se poupar dinheiro, as raparigas estão a ser retiradas das escolas em número muito superior ao dos rapazes. As profissionais que estão em regime de teletrabalho estão igualmente a chamar a si a maior parte da responsabilidade no que respeita à educação e ao entretenimento dos filhos comparativamente aos homens. E os sacrifícios realizados, memo que voluntariamente, no curto prazo terão, muito provavelmente, um efeito negativo e de longo prazo nos seus rendimentos. Trágico é também o facto de a violência doméstica parecer estar a aumentar nos agregados sob confinamento.
Nacionalismo e globalismo: a resposta inicial à Covid-19 no mundo sublinhou a força do nacionalismo em muitos países bem como a fraqueza relativa do multilateralismo. Muitos países fecharam unilateralmente as suas fronteiras e baniram as exportações de material médico. A crise aumentou também a tensão já existente mas relações entre os países do interior da Zona Euro e da União Europeia. E, como é sabido, exacerbou sem qualquer dúvida as tensões existentes entre os Estados Unidos e a China, bem como outras relações comerciais de importância similar. Existem poucos sinais – pelo menos por enquanto – de uma coordenação colaborativa multilateral eficaz para abordar a pandemia e as suas consequências, com os países mais pobres a viverem situações desesperadas devido à ausência de auxílio por parte da comunidade internacional. E se ainda é possível que os governos optem por uma solidariedade global – ou pelo menos regional – em detrimento do isolamento nacionalista, essa realidade não está ainda à vista.
Dinâmicas intergeracionais: independentemente da Covid-19, estamos a assistir a uma transferência geracional de poder político, cultural e económico, a qual continuará ao longo da década de 2020. Apesar de serem as pessoas mais idosas as que se encontram em maior risco devido à pandemia, as consequências económicas de longo prazo irão ter um impacto desproporcional nos jovens. Aqueles que estão à espera de entrar no mercado laboral pela primeira vez têm à sua frente circunstâncias profundamente adversas e muitos serão aqueles que não conseguirão arranjar emprego. E, tal como a crise financeira de 2007-2008 e o que se lhe seguiu deixou desencantados muitos millennials, a Covid-19 irá, muito provavelmente, obscurecer a visão do mundo para os membros da geração Z durante vários anos. Muitos sentirão uma enorme falta de lealdade – e, em alguns casos, um enorme ressentimento – face a um sistema que falhou em conferir-lhes alguma prosperidade. E esta realidade poderá introduzir um fosso entre as gerações no que respeita aos seus interesses económicos e políticos.
Polarização e atomização: devido às razões acima enunciadas, existe o risco de a Covid-19 vir a exacerbar a polarização política e a instabilidade. Contudo, também é verdade que em muitos locais contribuiu para unir as comunidades, estimulando um espírito de solidariedade e de responsabilidade mútuo, e criando um novo nível de consciencialização da nossa inter-relação e interdependência. Agora que a pandemia forçou as pessoas a estarem em isolamento, são muito mais os que estão a valorizar a comunidade e os relacionamentos. Não sendo, de todo, um fenómeno universal e não se sabendo ainda se poderá perdurar depois de a crise terminar, aumenta pelo menos a esperança de um fortalecimento do tecido social.
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