Nunca tantas crianças e adolescentes estiveram tão conectados, tão cedo, por tanto tempo. Esta imersão precoce e desmesurada no mundo online está a redesenhar a infância e a adolescência, com impactos negativos variados, mas também a provocar um novo e surpreendente cansaço: um estudo recente no Reino Unido (v. Caixa) mostra que metade dos jovens gostaria de ter crescido sem internet. A vida digital, em vez de libertar, está a asfixiar. E a pergunta impõe-se: que adultos estamos a formar?
POR HELENA OLIVEIRA

A infância e a adolescência são fases críticas para o desenvolvimento cerebral. O que se vive nestes anos molda traços emocionais, relações interpessoais, capacidades cognitivas. Se os jovens de hoje crescem na companhia constante dos ecrãs, numa cultura de distracção, comparação constante, pressão para parecer perfeitos e falta de sono crónica, é lícito perguntar: Que relações adultas conseguirão construir? Que sentido darão à sua vida profissional e afectiva? Terão capacidade para escutar o outro, construir empatia, comprometer-se? Ou formarão uma geração centrada no imediato, na aparência, no like fácil?

O tema é cada vez mais discutido, objecto de estudo em diversas áreas e uma realidade que todos nós testemunhamos. A primeira geração “verdadeiramente digital” está a crescer com uma preocupante dependência quotidiana dos “ecrãs”, a qual está a comprometer, em várias frentes, o seu bem-estar, tanto físico como emocional e cognitivo. E os números que comprovam esta adição – o termo pode parecer forte, mas a verdade é que, e crescentemente, a exposição constante ao mundo digital e, em particular, às redes sociais, parece funcionar como uma droga – são, no mínimo, perturbadores.

De acordo com o estudo How’s Life for Children in the Digital Age?, publicado a 15 de Maio pela OCDE, as crianças de hoje são “apresentadas” à Internet e a dispositivos digitais cada vez cedo, muitas vezes antes dos 10 anos de idade. De facto, os dados revelam que cerca de 93% das crianças de 10 anos tinham ligação à Internet em 2021, comparativamente a 85% há uma década e aproximadamente 70% das crianças desta mesma idade já possuem o seu próprio smartphone. E existem poucas dúvidas de que esta utilização precoce e intensa pode marcar uma mudança profunda na forma como as crianças crescem, interagem e se desenvolvem.

Entre os adolescentes mais velhos, o uso de dispositivos digitais é praticamente universal. Em 2022 e em média, 96% dos jovens de 15 anos nos países da OCDE tinham acesso a um computador (de secretária, portátil ou tablet) em casa, e 98% dispunham de um smartphone com ligação à Internet.

Estes números demonstram que, ao chegar à adolescência, praticamente todas as crianças nos países desenvolvidos estão conectadas. Consequentemente, não surpreende que a maioria dos adolescentes passe uma quantidade substancial de tempo em frente aos ecrãs: em quase todos os países da OCDE, pelo menos 50% dos alunos de 15 anos utilizam dispositivos digitais durante 30 ou mais horas por semana, e uma minoria notável – desde 10% no Japão até 43% na Letónia – ultrapassa as 60 horas semanais online. Em termos práticos, isto equivale a vários horas por dia dedicadas a actividades digitais, combinando usos escolares e de lazer.

O relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico que, apesar de extenso, merece ser lido na íntegra, aborda temas como a exposição precoce e intensiva à internet e a dispositivos digitais, o tempo excessivo de ecrã e as suas implicações para a saúde física, o desenvolvimento cognitivo e, sobretudo, os efeitos na saúde mental e no bem-estar emocional: o relatório analisa ainda riscos associados ao ciberbullying, à exposição a conteúdos inadequados e à desigualdade digital, sublinhando como factores como género, idade, contexto familiar e condição socioeconómica moldam a experiência digital das crianças. Por fim, aponta a necessidade urgente de políticas públicas, literacia digital, supervisão parental e responsabilização das plataformas tecnológicas para garantir uma infância e adolescência mais seguras e saudáveis na era digital.

Vejamos algumas das consequências mais nefastas desta exposição descontrolada para a vida de crianças e jovens.

Sedentarismo, insónias e maus hábitos alimentares:

O tempo excessivo de ecrã interfere com ritmos biológicos essenciais. A luz azul dos dispositivos perturba o sono, dificultando o adormecer e comprometendo a regulação emocional, a concentração e o rendimento escolar. O sedentarismo associado reduz o tempo em movimento e o convívio presencial, elevando os riscos de obesidade e hábitos alimentares desordenados. Segundo dados internacionais, 16% das crianças de 11 anos e 20% das de 15 afirmam já ter deixado de praticar actividades físicas ou hobbies para estar nas redes sociais.

A OCDE alerta para a chamada “hipótese da deslocação”: quanto mais tempo no digital, menos tempo disponível para outras actividades benéficas como o sono adequado, o exercício físico e a socialização. Há ainda o impacto indireto na alimentação — refeições apressadas, distraídas ou substituídas por snacks pouco saudáveis, muitas vezes diante do ecrã.

Scroll, filtro, tirania da perfeição: o ciclo tóxico da validação digital

Como sabemos, as redes sociais impõem padrões inalcançáveis de beleza e sucesso, afectando sobretudo as raparigas, mais vulneráveis à ansiedade e à dismorfia distúrbios de auto-imagem). Ferramentas com inteligência artificial amplificam a distorção da auto-imagem e os algoritmos promovem conteúdos tóxicos que alimentam inseguranças, enquanto o medo de exclusão (FOMO – Fear of missing out) intensifica a pressão para se estar sempre ligado. Em alguns países, metade dos adolescentes dizem sentir-se pior consigo próprios depois de usarem as redes sociais.

As redes sociais são espaços de performance constante. Mesmo interacções informais são filtradas, editadas e sujeitas a validação pública. Isto gera ansiedade, baixa auto-estima e um ciclo de comparação incessante. A OCDE destaca que a exposição a conteúdos irreais — seja de corpos perfeitos, estilos de vida luxuosos ou relações idealizadas — tem impacto directo na saúde mental, sobretudo entre os jovens mais vulneráveis.

Do uso à dependência: quando o digital consome o real

São cada vez mais os jovens que perdem controlo do tempo online, demonstrando sinais preocupantes de dependência. Essa utilização compulsiva está associada a sintomas de depressão, ansiedade, solidão e insónias. O relatório da OCDE mostra que há uma relação bidireccional: jovens com perturbações emocionais refugiam-se nas redes, ao mesmo tempo que o seu uso excessivo contribui para agravar esses mesmos estados. Um número crescente de adolescentes apresenta sinais de exaustão digital, com dificuldades em parar e uma sensação de obrigação em manter a presença online.

A utilização problemática de ecrãs tem sido comparada a outros vícios comportamentais. A necessidade de estar ligado, de obter likes ou de não perder nada “do que se está a passar” leva a padrões de comportamento que perturbam a vida quotidiana — desde a escola ao sono, passando pela vida familiar. Muitos adolescentes reconhecem que gostariam de estar menos dependentes, mas sentem que não conseguem fazê-lo.

O lado negro do ecrã: cyberbullying e conteúdos nocivos

O ciberbullying é um dos maiores riscos da vida digital. As agressões online não conhecem fronteiras nem horários, aumentando o sofrimento psicológico. A exposição precoce à pornografia, violência e conteúdos que promovem distúrbios alimentares ou automutilação distorce a percepção da realidade e compromete o desenvolvimento psicossocial. Estima-se que 93% dos rapazes e 63% das raparigas entre os 13 e 17 anos já tenham sido expostos a pornografia online antes dos 18 anos.

As redes sociais, fóruns e jogos online são terrenos férteis para comportamentos abusivos, discursos de ódio e desafios perigosos. Os mais jovens nem sempre têm maturidade para distinguir ironia de agressão, conteúdo educativo de manipulação ou influência de exploração. Sem supervisão, tornam-se presas fáceis de dinâmicas tóxicas e perigosas.

Cérebros em formação, atenção em erosão

A hiper-conectividade compromete também funções executivas fundamentais: autocontrolo, memória e atenção. O multitasking digital fragmenta o pensamento e impede a aprendizagem profunda. Estudos de neuroimagem sugerem que o tempo de ecrã excessivo está associado a um menor desenvolvimento da substância branca do cérebro — crucial para a linguagem e o raciocínio lógico. Os jovens habituam-se a estímulos curtos e a recompensas imediatas, com impacto na sua capacidade de concentração e resiliência cognitiva.

A constante interrupção — notificações, alertas, scroll constante — cria um estado de alerta permanente que esgota a atenção. As crianças e adolescentes tornam-se menos capazes de se focar em tarefas prolongadas, resolver problemas complexos ou reflectir criticamente. Isto compromete não só a aprendizagem formal, mas também a formação de um pensamento estruturado e independente.

Desenvolvimento cognitivo: menos leitura, menos vocabulário, menos foco

Um outro alerta presente no estudo da OCDE é o de que a conectividade constante está a transformar o cérebro em desenvolvimento. Estudos em neurociência mostram que o uso excessivo de ecrãs na infância e adolescência pode afectar negativamente a plasticidade cerebral, com impacto nas funções executivas — como o autocontrolo, a memória de trabalho e a capacidade de planear ou manter a atenção. Crianças e jovens habituados a estímulos rápidos e recompensas imediatas demonstram menor tolerância à frustração e mais dificuldades em manter o foco em tarefas exigentes ou prolongadas.

O excesso de multitarefa digital — como por exemplo alternar constantemente entre mensagens, vídeos e tarefas escolares — fragmenta o pensamento e interfere na consolidação da memória. Em vez de fortalecer as competências cognitivas, este padrão promove uma aprendizagem mais superficial e dispersa. Além disso e como já acima enunciado, há indícios preocupantes de que o tempo excessivo em actividades digitais passivas está associado a menor desenvolvimento de substância branca no cérebro — região responsável por transmitir informação entre áreas cerebrais e essencial ao raciocínio e linguagem.

Adicionalmente, a exposição prolongada a conteúdos digitais pobres, repetitivos ou sensacionalistas pode limitar a capacidade de pensamento abstracto, imaginação simbólica e desenvolvimento de estruturas narrativas — competências essenciais para o sucesso escolar e a maturidade intelectual.

Outro impacto reportado é o declínio da atenção sustentada. As crianças habituadas a estímulos digitais intensos e interacções breves (como vídeos curtos, jogos com feedback instantâneo e scroll infinito) têm mais dificuldade em manter o foco em actividades como a leitura contínua, a escrita reflexiva ou o estudo disciplinado. Isto levanta sérias preocupações sobre a formação de leitores críticos e pensadores analíticos — competências centrais na vida adulta, tanto pessoal quanto profissional.

O empobrecimento do vocabulário, a redução do tempo dedicado à leitura profunda e a diminuição da capacidade de concentração são sintomas recorrentes identificados por professores e pais. A longo prazo, o desenvolvimento cognitivo condicionado por uma “dieta digital” pobre pode comprometer a autonomia, a criatividade e a capacidade crítica dos futuros adultos.

O feed não pode substituir pais e educadores

A OCDE alerta para a urgência de uma literacia digital abrangente. Ainda que a tecnologia ofereça oportunidades educativas, o seu uso passivo, solitário ou desregulado empobrece o desenvolvimento. É vital que as crianças tenham adultos presentes — pais, professores, cuidadores — que orientem, questionem, participem. Sem isso, quem educa é o feed do TikTok ou o algoritmo do YouTube. A ausência de mediação adulta favorece o consumo acrítico e os riscos a ele associados.

A educação digital não pode ser apenas técnica — é também ética, relacional e emocional. As crianças e jovens precisam de aprender a distinguir entre publicidade e informação, influência e manipulação, liberdade e exposição. Precisam de ferramentas para proteger a sua privacidade, reconhecer comportamentos abusivos e gerir o seu tempo de forma autónoma.

E qual o papel dos adultos que, muitas vezes, são os primeiros a estarem colados aos ecrãs, indiferentes ao que se passa em seu redor, nomeadamente no que respeita aos seus próprios filhos?

A OCDE é clara: os adultos não podem demitir-se. Famílias, escolas, profissionais de saúde, decisores e próprias plataformas têm um papel na construção de um ecossistema digital mais seguro e consciente. As crianças precisam de regras, conversa, acompanhamento, literacia digital. E de alternativas reais: tempo de qualidade, convívio, actividades que cultivem o corpo, a mente e a relação.

A intervenção precoce é crucial. As crianças mais novas devem ter um uso digital supervisionado, com horários e conteúdos adequados. Os adolescentes precisam de espaço para autonomia, mas também de ferramentas para pensar criticamente, gerir emoções e reconhecer os limites do mundo virtual.

Não se trata de demonizar a tecnologia. Trata-se de recuperar o equilíbrio. Saber quando estar online e quando parar. Saber distinguir o que é real do que é encenado. Reconhecer os sinais de alerta. E formar uma geração capaz de usar a tecnologia com sentido crítico, sem se perder nela.

Cabe aos pais, educadores e decisores garantir que o futuro se constrói com presença, vínculo e humanidade. Porque um ecrã pode entreter, mas só uma relação salva.

O que fazemos hoje vai determinar quem serão os adultos de amanhã. Continuar a permitir uma infância e adolescência fragmentada por notificações, influenciadores e algoritmos é hipotecar a autonomia, a saúde mental e a qualidade relacional das próximas gerações. O tempo para agir é agora. Com coragem, consciência e compromisso colectivo, podemos ainda ajudar esta geração a crescer com tecnologia — mas não à mercê dela.


“Preferíamos ter crescido sem internet”: o grito da geração cansada

Eles são os primeiros a viver a adolescência com um telemóvel na mão desde a infância, mas muitos começam agora a pôr em causa esse legado digital. Nascidos no coração da conectividade, os jovens da geração Z estão a confrontar-se com o lado sombrio da vida online — e a dar sinais claros de saturação. Um novo estudo realizado no Reino Unido revela o mal-estar silencioso de uma geração que, longe de celebrar o mundo virtual, começa a desejar ter crescido longe dele

Os alertas da OCDE sobre os riscos da vida digital precoce e excessiva têm vindo a ser corroborados por muitos outros estudos. Um exemplo é o inquérito recente do British Standards Institute, realizado com 1.293 jovens no Reino Unido, que confirma que os impactos emocionais da exposição às redes sociais são profundos e duradouros: 70% dos jovens entre os 16 e os 21 anos dizem sentir-se pior consigo próprios após usarem redes como o TikTok ou o Instagram.

Todavia e dada a utilização crescente e incessante destas redes, não deixa de ser surpreendente que 46% dos inquiridos afirmem que preferiam ter crescido num mundo sem internet — e que metade apoie a criação de um “toque de recolher digital” para cortar o acesso a certas apps após as 22h.

O estudo, centrado na segurança online e no bem-estar digital, revela também que um quarto dos jovens passa mais de quatro horas por dia em redes sociais, e que muitos descrevem sentimentos de exaustão, pressão para manter uma imagem perfeita e dificuldade em desligar-se dos ecrãs. A chamada “fadiga digital” está a transformar-se num fenómeno geracional. Especialistas britânicos falam numa “epidemia silenciosa de comparação social” que afecta profundamente a auto-estima e as relações interpessoais dos jovens.

O estudo revela ainda um elevado grau de ocultação do comportamento digital: 42% dos jovens já mentiram aos pais sobre o que fazem online; 40% criaram contas falsas e 43% começaram a usar redes sociais antes dos 13 anos. A desinformação dos pais e a ausência de limites efectivos tornam o ecossistema digital ainda mais vulnerável.

A maioria dos jovens (79%) defende que as empresas tecnológicas devem ser legalmente obrigadas a garantir maior privacidade e segurança para menores, incluindo verificação de idade e limites de uso. Para muitos, as plataformas digitais tornaram-se espaços de pressão constante e de baixa auto-estima — não lugares de expressão saudável.

Como sublinhou Daisy Greenwell, fundadora da campanha “Smartphone Free Childhood“, este estudo é um alerta: “Criámos um mundo onde é normal as crianças e jovens passarem horas em ambientes digitais desenhados para as manter viciadas. Agora são os próprios jovens a pedir limites, protecção e mudança. É hora de os adultos responderem.”

Neste cenário, crescem os apelos a uma regulação mais activa por parte das plataformas, a limites claros de idade e tempo de utilização, e a uma educação digital robusta desde o ensino básico. A mensagem de muitos destes jovens — hoje com idade para votar, trabalhar e influenciar — é clara: a liberdade online pode estar a ter um custo demasiado elevado.

Editora Executiva

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