Os jovens portugueses que irão participar no Encontro de Assis com o objectivo de contribuírem para a criação de uma economia mais humanizada continuam a preparar-se para o tão esperado momento. Esta semana, e fruto de mais um encontro em que se discutem as 12 “aldeias temáticas”que dão corpo à iniciativa, a discussão centrou-se no denominado “CO2 das desigualdades”, o qual remete para o paradigma de um elemento que existe naturalmente mas que, em excesso, pode causar desequilíbrios nocivos. De sublinhar igualmente que estas situações de desigualdade podem ser, em simultâneo, causa e consequência destes mesmos desequilíbrios
POR MARGARIDA PESSOA VAZ

Como é sabido, o Papa Francisco convocou jovens de todo o mundo para a criação de uma “nova economia” mais humanizada. O evento para o efeito, a Economia de Francisco, que ia ter lugar em Assis em março, foi adiado para novembro e realizar-se-á em formato online devido à pandemia. O evento está pensado por aldeias temáticas (villages) e estas arrancaram independentemente da ocorrência do encontro em Assis, através de iniciativas que os participantes têm vindo a desenvolver ao longo destes meses para maior reflexão sobre os desafios da economia atual “que mata”, como o Santo Padre alerta.

Através de um segundo módulo do curso de preparação para a Economia de Francisco organizado pela ACEGE Next, os jovens portugueses participantes das várias aldeias temáticas formam grupos para apresentar, a todos os envolvidos no curso, as respetivas aldeias. Quinzenalmente, juntamo-nos às quartas-feiras pelas 21h, abrimos a sessão com uma oração, e estamos envolvidos, seja a ouvir, seja a participar, na enorme vontade de dar passos para a construção de uma economia mais humanizada. Estas sessões permitem uma visão integral do que foi pensado para a “nova economia”, provocando a nossa reflexão, não apenas sobre a temática que escolhemos, mas sobre todas as que vão ser exploradas no evento em novembro.

O tema que escolhi aprofundar no contexto deste evento é o das desigualdades, sendo a respetiva aldeia designada por “CO2 de desigualdades” (CO2 of Inequalities).

O mundo em que vivemos atualmente é marcado por desigualdades crescentes. Estamos a par das tão discutidas e exploradas desigualdades económicas, esquecendo, no entanto, que muitas destas são fruto de outro tipo de desigualdades menos óbvias (por exemplo desigualdades no acesso a saúde, educação, rede social), sendo que estes desequilíbrios afetam a forma como vivemos. O objetivo da aldeia “CO2 de desigualdades” é sucinto, mas longe de ser simples: construir uma economia que seja regenerativa e inclusiva “por design”.

Como podemos “fugir” dos sistemas políticos e económicos vigentes que são catalisadores de segregação e exclusão social e traçar caminho para o estabelecimento de sistemas equilibrados e justos que capacitem o desenvolvimento pessoal, a comunidade e a empatia de todos os seus cidadãos?

Da reflexão do nosso grupo, surgiu a imagem do véu da ignorância como adequada ao objetivo da aldeia. John Rawls, um filósofo americano, apresentou em 1971 a sua filosofia política de “posição original” que desafia os decisores políticos a pensar e desenhar a política e a economia antes de saberem o papel que irão ter à partida na sociedade (véu da ignorância). Ou seja, a desenharem uma sociedade de forma imparcial relativamente aos próprios interesses e classe social.

Um dos eventos que marcou o arranque da aldeia de que faço parte, foi um webinar com a economista britânica Kate Raworth, no qual a convidada provoca a reflexão sobre um modelo económico que criou e publicou em 2017. Partilho convosco o modelo Doughnut Economics porque é uma referência do trabalho que pode ser realizado em prol de uma sociedade regenerativa e inclusiva. Para Kate, este equilíbrio tem a forma de um donut verde.

Ao contrário do crescimento infinito publicitado pelos tradicionais modelos económicos, Kate Raworth afirma que devemos lutar por prosperar mais do que por crescer desenfreadamente. O modelo que a economista propõe fundamenta-se exatamente na finitude: o donut é limitado por uma base social (círculo interior), que pretende que ninguém viva numa situação de privação crítica, seja ela de água, comida, educação ou de energia, e por um teto ecológico (círculo exterior), que preconiza o respeito pelos sistemas de vida que conhecemos, revelando-se urgente a inversão de trajetórias atuais como são a poluição, as perdas de biodiversidade e a destruição da camada de ozono.

Algumas cidades têm vindo a adotar este modelo, formando a rede das Doughnut Cities. O primeiro passo é a realização de análises quantitativas e qualitativas a todas as dimensões representadas no interior e exterior do donut, e, posteriormente, com base nos resultados dos estudos efetuados, começam a ser criadas propostas de aproximação ao donut verde. É, principalmente, um instrumento de diálogo que desafia a reflexão conjunta (estado, sociedade civil, empresas, instituições, …) das problemáticas associadas às desigualdades, e combate, aos poucos, a grande doença que é a indiferença face à nossa realidade de desigualdades crescentes.

Para um exercício mais interativo no contexto da apresentação da aldeia, optámos por aprofundar a realidade dos migrantes em Portugal. Este momento dinâmico, começou por um quiz que criámos com base num estudo publicado em 2019 pelo Observatório das Migrações, permitindo-nos evidenciar números que revelam que o trabalho a ser desenvolvido para diminuir as desigualdades socioeconómicas entre a população local e migrante em Portugal é insuficiente.

Depois, apresentámos o caso fictício de uma família ucraniana, pais e filho de 10 anos, que chegam a Portugal com o sonho de uma vida melhor, deixando a família e amigos para trás. Com qualificações, a mãe professora e o pai médico, falam inglês, mas não têm qualquer conhecimento da língua portuguesa. Perante este contexto, e dividindo o grupo de participantes em quatro, por diferentes agentes económicos da sociedade, propusemos a seguinte reflexão: enquanto decisores políticos, sociedade civil, empresas e setor social, como podemos mudar a realidade atual de desequilíbrio e construir uma sociedade acolhedora perante famílias como esta?

Foram inúmeras as ideias que surgiram deste exercício com pouco mais de meia hora, e que tocaram aspetos como a educação, a habitação, as redes informais de apoio e a desburocratização de processos. Ficou claro para todos que o desenvolvimento de uma sociedade mais humana exige a escolha e esforço de cada um de nós. A convocatória para fazer caminho no combate às desigualdades é para todos os cidadãos e não apenas para os políticos, economistas e empreendedores.

Por um lado, fazer caminho nas nossas próprias casas e meios que frequentamos. Como é que a minha vivência quotidiana contribui para a existência de desigualdades socioeconómicas? Temos verdadeira consciência do impacto das pequenas ações? Desafiamos a discussão de temas como este nos nossos núcleos de amigos e família? Temos a humildade para reconhecer o pouco que somos e fazemos, sem que isso nos desmotive mas, e pelo contrário, nos dê mais força para, aos poucos, transformarmos a forma como vivemos? A sociedade precisa de pessoas humildes com a coragem para fazer perguntas e procurar respostas com sentido de fraternidade.

Por outro, fazer caminho nos núcleos em que desempenhamos um papel de liderança. Que líderes queremos ser? E se não escolhermos o caminho fácil que encaixa nos sistemas atuais? E se formos motores de mudança para uma sociedade mais regenerativa e inclusiva? A sociedade precisa de líderes com empatia e com a coragem de agir contra as marés.

Sejamos capazes de olhar o mundo com verdade, de encarar as suas tristezas e injustiças e depois tenhamos a coragem de escolher fazer parte da solução. Escolhamos agir. Um dia de cada vez, nas pequenas e grandes ações.

Termino como também terminámos a nossa sessão, com um excerto da nova encíclica do Papa Francisco “Fratelli Tutti” (2020): “[235] Aqueles que pretendem pacificar uma sociedade não devem esquecer que a desigualdade e a falta de desenvolvimento humano integral impedem que se gere a paz. Na verdade, «sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há de provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade». Se se trata de recomeçar, há de ser sempre a partir dos últimos.”

Licenciada e mestre em Economia pela Nova School of Business and Economics, trabalha na equipa de desenvolvimento territorial da consultora EY-Parthenon e é autora do livro “Quando se Acredita”. Contribui também para o portal dos jesuítas em Portugal, Ponto SJ, na equipa da secção da Justiça