A pool de bónus disponível em 2015 para recompensar os empenhados trabalhadores de Wall Street sofreu uma quebra. Para quem não está habituado a ter muitos zeros – à direita – na sua conta bancária, imaginar o que significa ganhar, num só dia, 146 mil dólares, é tarefa árdua. Razão pela qual a maioria dos americanos subestima, também e em grande escala, o rácio existente entre salários “normais” e aqueles que são auferidos pelos CEOs das 500 maiores empresas da Fortune. E é sobre “questões de perspectiva” e percepções erróneas que versa este artigo
POR
HELENA OLIVEIRA

“O valor médio dos bónus na indústria financeira declinou 9%, para 146,200 dólares em 2015, enquanto os lucros da mesma apresentaram uma quebra de 10,5%”.

“A informação disponível relativa às remunerações para as 500 maiores empresas da Fortune é 10 vezes superior ao que o americano médio acredita que estes ganham”.

As duas informações acima destacadas servem de orientação para o artigo que segue.E podem ser lidas e interpretadas de diferentes formas e de acordo com perspectivas várias. Comecemos pela primeira.

Como é habitual, Março é o mês em que o New York State Comptroller – entidade responsável, entre competências várias, pela auditoria das operações governamentais norte-americanas, liderada por Thomas P. DiNapoli, publica os dados relativos à actividade financeira do ano que passou, em conjunto com o valor dos bónus distribuídos pelos senhores de Wall Street. De acordo com o próprio DiNapoli, “esta queda reflecte um ano repleto de desafios nos mercados financeiros”, entre os quais se destacam não só as novas regulamentações para o sector (não tantas como o que seria desejável, para não variar), mas e sobretudo “as fraquezas contínuas na economia global e a volatilidade dos mercados”, sendo que a possibilidade de “abrandamento” dos lucros para 2016 se apresenta como forte.

Com o declínio dos lucros em Wall Street para valores que rondam os 14, 3 mil milhões de dólares em 2015 – uma quebra de 1,7 mil milhões – e depois dos três primeiros trimestres de 2015 terem sido animadores, o quarto trimestre acabou por “estragar as contas”, com a indústria a reportar uma perda de 177 milhões de dólares, a primeira perda trimestral desde 2011. No que respeita aos lucros totais, o centro financeiro de Nova Iorque está a sofrer também um declínio pelo terceiro ano consecutivo, atingindo o valor mais baixo também desde 2011.

Assim, e na “época tradicional” de recolha de bónus – que compreende o período entre Dezembro e Março – o montante total para pagamento desta remuneração variável no sector dos valores mobiliários declinou 6%, para 25 mil milhões de dólares, valor mesmo assim inferior à queda “real” de 9% face a 2014 nos prémios de desempenho dos trabalhadores do maior mercado accionista do mundo. Esta diferença de percentagens – 6% vs 9% – é explicada pelo facto de o bolo ter de ser repartido por um número maior de trabalhadores: o emprego em Wall Street cresceu 2,7%, com cerca de 4500 novos postos de trabalho acrescentados (face a 2400 em 2014), totalizando agora 172,400 funcionários. Desde a crise financeira, este é o segundo ano consecutivo em que Wall Street aumenta o seu número de trabalhadores, apesar de o sector ser ainda 8% “mais pequeno” comparativamente à fase anterior à Grande Recessão.

[quote_center]A pool de bónus para os 172,400 funcionários de Wall Street é o dobro dos rendimentos anuais combinados de 895 mil americanos, trabalhadores a tempo inteiro e que recebem o salário mínimo, sendo o segundo ano consecutivo que tal acontece[/quote_center]

Os números reflectem também um declínio constante no valor dos bónus desde 2008, em conjunto com a implementação de novas medidas de controlo no que respeita à forma como estas recompensas são atribuídas. Se a pool total de bónus for considerada face a 2006 – ano em que estas recompensas ascenderam a um máximo histórico de 191,360 dólares – a quebra ascende aos 27%. Todavia, e colocando os números mediante uma outra perspectiva, este valor “mais baixinho” de 2015 representa um singelo aumento de 378% nos últimos 30 anos.

Ou, por outras palavras, numa altura em que se vaticina um novo abrandamento da economia global, em que a recuperação volta a estar rodeada por um clima de incerteza, os bónus daqueles que acabariam por ser responsáveis pela crise que deflagrou em 2008 exactamente em Wall Street, continuam a ser impressionantes – ou vergonhosos, dependendo da perspectiva. Resta ainda acrescentar que, para além deste valor simpático de 146,200 dólares (qualquer coisa como 131 mil euros) distribuído por cada um dos elementos que contribuem para a florescente indústria financeira de Nova Iorque – e, na verdade, para o seu principal motor económico – há que adicionar também um salário base na ordem dos 405 mil dólares (o salário médio dos banqueiros e corretores atingiu, em 2014, um novo recorde, crescendo 14%, não existindo ainda dados relativos a 2015).

17032016_DigaMeO
25 mil milhões de dólares = dobro dos rendimentos de 895 mil americanos que recebem salário mínimo

É o que significa colocar as coisas em perspectiva e é o que faz, também todos os anos e por esta mesma altura, o Institute for Policy Studies, o mais antigo think tank “multi-questões” norte-americano. No estudo intitulado Off the Deep End: The Wall Street Bonus Pool and Low-Wage Workers, assinado, também como habitualmente, por Sarah Anderson, responsável pela área de Economia Global desta organização sem fins lucrativos, os valores reportados para os ganhos com bónus no sector financeiro são analisados à luz de outros números, permitindo uma melhor tradução do que significa, na realidade, 25 mil milhões de dólares oferecidos de mão beijada a 172,400 felizardos da banca num só dia.

As principais conclusões deste estudo dizem-nos que:

  • A pool de bónus para os 172,400 funcionários de Wall Street é o dobro dos rendimentos anuais combinados de 895 mil americanos, trabalhadores a tempo inteiro e que recebem o salário mínimo – 7,25 dólares por hora – sendo o segundo ano consecutivo que tal acontece;
  • Apesar do declínio de 9%, a média de 146,200 dólares por funcionário da banca está ainda 4% acima do que a média em 2009, a última vez que o Congresso aumentou o salário mínimo federal;

A boa notícia é que, face a 2013, e de acordo com dados do Bureau of Labor Statistics dos Estados Unidos, o número de americanos a ganhar o salário mínimo desceu de 1,007,000 para 895,000. E tal deveu-se, em grande parte, ao aumento da eficácia de um sem número de campanhas, realizadas em vários estados e cidades, para ajustar o salário mínimo a níveis que permitissem a cobertura dos custos de vida básicos. Contudo, 42% dos trabalhadores americanos ainda ganham menos de 15 dólares por hora, o valor estipulado para o que significa viver uma vida “digna”, de acordo com o National Employment Law Project (NELP), uma organização de defesa dos direitos dos trabalhadores, que há mais de 45 anos se dedica à luta pela melhoria dos direitos laborais e da segurança económica através do trabalho. Trabalhando em conjunto com vários movimentos activistas, com organizações sem fins lucrativos, sindicatos e decisores políticos, a NELP foi a grande responsável pelas campanhas em prol do aumento do salário mínimo para os trabalhadores da indústria da fast-food, os que a preparam e os que a servem, e por muitos empregadores terem acedido a este aumento, não só neste como em outros sectores de actividade que também praticavam o salário mínimo (como por exemplo o têxtil).

[quote_center]Mesmo que a época dos bónus possa coincidir com um crescimento pontual das vendas dos bens de luxo, a “generalização” do aumento dos salários mínimos representaria, para a economia americana, um estímulo muito mais significativo[/quote_center]

Como também refere a autora do estudo, se muitos sectores se uniram em torno do aumento do salário mínimo para 15 dólares – duplicando-o -, o que não deixa de ser um crescimento assinalável, se o compararmos, mais uma vez, com a pool de bónus, lá muda a perspectiva outra vez. Os 25 mil milhões recebidos por banqueiros e corretores de uma só assentada seria amplo o suficiente, em 2015, para aumentar para os 15 dólares/hora 2,6 milhões de trabalhadores do sector da fast-food (os que a preparam e a servem) e ainda sobrariam quatro mil milhões de dólares. Ou, a mesma pool de bónus serviria também para aumentar para 15 dólares o salário por hora de 1,6 milhões de americanos que trabalham no sector dos cuidados domiciliários ou o de 2,6 milhões de pessoas que, nos Estados Unidos, servem à mesa dos restaurantes ou servem bebidas em bares.

Para Sarah Anderson, a questão do pagamento de bónus em Wall Street (e não só) não viola apenas as normas básicas da justiça, como encoraja os comportamentos de alto risco que conduziram à crise financeira de 2008. E sim, o susto parece não ter sido suficientemente grande para que a banca tenha mudado de atitude. Adicionalmente, e como alertava já o estudo do ano passado (sobre o qual o VER escreveu), o valor astronómico destes bónus não representa o mesmo estímulo económico caso fosse “transferido” para os que servem os demais americanos à mesa e para os que cuidam dos mais vulneráveis. E a questão nem sequer é posta em causa nos mais básicos livros de economia. Para ir ao encontro das suas necessidades mais básicas, os trabalhadores de baixo rendimento tendem a gastar cada um de todos os dólares que ganham, criando o denominado e benéfico “ripple effect” (efeito “cascata”) económico. Dados publicados pelo Departamento do Comércio americano comprovam que tanto os trabalhadores com baixos rendimentos, como aqueles que auferem salários considerados “médios”, são responsáveis por 70% da economia.

Por seu turno, os mais endinheirados podem dar-se literalmente ao luxo de “acumular” este rendimento extra (não o injectando de imediato na economia). E, mesmo que a época dos bónus possa coincidir com um crescimento pontual das vendas dos bens de luxo, a “generalização” do aumento dos salários mínimos representaria, para a economia americana, um estímulo muito mais significativo.

O montante de dinheiro ganho pelos banqueiros em bónus em 2015 poderá parecer, aos seus próprios olhos, “pouco”, mesmo que represente o triplo do rendimento auferido por um agregado pertencente à decrescente classe média nos Estados Unidos. Mas não são eles os únicos a contribuir para o fosso da desigualdade que, apesar de crescente em todo o mundo, tem afectado particularmente os Estados Unidos. E, mesmo sabendo que “existem muitos que ganham quantias exorbitantes”, são poucos os americanos “comuns” que têm realmente ideia de quão largo é o fosso entre “eles” e os “outros”. Basta ler os dados que se seguem.

17032016_DigaMeO2
Americanos acreditam que CEOs ganham apenas um décimo do que efectivamente auferem

De acordo com um estudo publicado a 17 de Fevereiro último, pelo Rock Center for Corporate Governance da Universidade de Stanford, para a maioria dos americanos entrevistados, os CEOs são excessivamente bem pagos e, caso as houvesse, reduções drásticas nas suas remunerações seriam bem-vindas.

Com um universo de 1,202 indivíduos entrevistados por todo o país, representados por género, raça, idade, filiação política, rendimento do agregado e estado em que residem, o estudo em causa teve como objectivo aferir a percepção pública dos níveis salariais dos CEOs pertencentes às 500 maiores empresas cotadas em bolsa.

Existe um sentimento claro entre os americanos de que os CEOs estão a levar para casa compensações muito maiores do que as que efectivamente merecem”, afirma o Professor David F. Larcker, da Stanford Graduate School of Business”. E mesmo que não saibam exactamente os astronómicos valores que os mesmos recebem, o sentimento de fúria e indignação é dominante. A questão está, novamente, na ordem do dia, suficientemente estimulada pelo ambiente político que se vive actualmente, com republicanos e democratas a digladiarem-se na escolha dos candidatos para as presidenciais de Novembro e com o tema a ser alimentado, mais por uns do que por outros, na verdade, nas campanhas de ambos os partidos. Para Nick Donatiello, docente de Corporate Governance na mesma escola de negócios, “ as empresas e os seus conselhos de administração têm de fazer um trabalho muito melhor a explicar e a justificar os acordos remuneratórios que fazem com os seus presidentes executivos”.

[quote_center]De acordo com o estudo de Stanford, um americano típico pensa que um CEO ganha 1 milhão de dólares, quando, na verdade, as compensações médias divulgadas para os presidentes executivos destas empresas são de aproximadamente 10,3 milhões de dólares[/quote_center]

A controvérsia em torno das compensações dos CEOs atingiu novos recordes depois dos sindicatos, os media e os candidatos políticos de ambos os partidos expressarem, publicamente, o seu descontentamento face aos “montantes escandalosos” por estes recebidos e a aumentarem o nível das críticas aos visados. Como refere o documento introdutório ao estudo, de acordo com a candidata democrata Hillary Clinton, o CEO médio “está agora a ganhar 200 vezes mais do que o salário médio por hora auferido por um trabalhador ‘normal’. Há 20 anos o rácio não ultrapassava as 40 vezes mais”. Já o candidato republicano Donald Trump afirma que a compensação dos CEOs é “uma total e completa anedota… pois eles ganham o que bem quiserem e entenderem”. Por outro lado, e se consultarmos um estudo publicado no website da AFL-CIO (sigla, em inglês, para Federação Americana do Trabalho e Congresso das Organizações Industriais) ficaremos a saber que o rácio de remunerações CEO-trabalhador é de 331:1. Ou recorrendo ainda a outra fonte, um relatório publicado pela Bloomberg afirma que “o fosso existente entre os pagamentos dos CEOs e dos que para eles trabalham aumentou sete vezes”, ao que se adiciona a inevitável, apesar de irónica, pergunta: “isso quer dizer que os patrões ficaram sete vezes mais espertos?”. “Pelos vistos, os conselhos de administração pensam que sim”.

Mas vejamos, em maior detalhe, os resultados do inquérito.

A informação disponível relativa às remunerações para as 500 maiores empresas da Fortune é 10 vezes superior ao que o americano médio acredita que estes ganham. De acordo com o estudo de Stanford, um americano típico pensa que um CEO ganha 1 milhão de dólares, quando, na verdade, as compensações médias divulgadas para os presidentes executivos destas empresas são de aproximadamente 10,3 milhões de dólares (ascendendo, em média, a 12,2 milhões). Apesar de as respostas variarem de acordo com o rendimento do agregado do respondente – quanto mais baixo, menor é o valor percepcionado – todos os grupos subestimam consideravelmente os valores reais das compensações.

[quote_center]”O fosso existente entre os pagamentos dos CEOs e dos que para eles trabalham aumentou sete vezes. Isso quer dizer que os patrões ficaram sete vezes mais espertos?”[/quote_center]

No que respeita ao valor “adequado” que estes deveriam receber relativamente a um trabalhador “normal”, 74% dos inquiridos afirmam não ser justa a discrepância, com apenas 16% a concordarem que os presidentes executivos recebem o montante apropriado. As respostas apresentam uma maior variação de acordo com a orientação política, mas no geral são amplamente negativas. Apenas 25% dos republicanos acreditam que os CEOs são pagos de forma correcta, comparativamente a 16% dos democratas e a 11% dos independentes.

Quase dois terços (62%) dos americanos defendem que deveria existir um montante máximo de remunerações para os CEOs relativamente aos trabalhadores médios, independentemente da empresa em causa e da sua performance. Interessante é também o facto de a maioria de todos os grupos políticos considerarem que as compensações dos CEOs devem ser limitadas de alguma forma, apesar de serem os republicanos aqueles que menos defendem essa opinião (52%) comparativamente aos democratas (66%) e aos independentes (64%). Adicionalmente, os que defendem esse limite, reduzem-no a um “múltiplo baixo”. O americano comum limitaria o valor das compensações a um máximo de seis vezes superior ao auferido por um trabalhador médio. Mas e na verdade, estes números estão substancialmente abaixo da realidade: em média e de acordo com dados recentes, as remunerações dos CEOs são cerca de 210 vezes superiores às dos trabalhadores “normais”.

Quando questionado relativamente a esta discrepância entre a percepção e a realidade, o Professor Larcker responde: “em muitas partes do país, é incompreensível que alguém possa ganhar tanto dinheiro”, o que acaba por explicar também por que motivo qualquer limite de compensação para os CEOs seja manifestamente baixo para a maioria dos cidadãos.

[quote_center]O americano comum limitaria o valor das compensações a um máximo de seis vezes superior ao auferido por um trabalhador médio. Mas e na verdade, estes números estão substancialmente abaixo da realidade: em média e de acordo com dados recentes, as remunerações dos CEOs são cerca de 210 vezes superiores às dos trabalhadores “normais”.[/quote_center]

Em termos de grandes divergências, é no grau de acordo com o qual os executivos deveriam partilhar o valor criado para a empresa que estas são mais visíveis. Por exemplo, numa situação hipotética colocada aos respondentes na qual o valor de uma empresa aumenta em 100 milhões ao longo de um ano, a resposta “mínima” é a de que estes deveriam receber apenas 0,5% (500 mil dólares) de recompensa, enquanto a “máxima” é de 3,2% (3,2 milhões de dólares). E, neste caso, a variação das respostas de acordo com a filiação partidária é quase inexistente. Para Donatiello, “este facto vai de encontro ao centro da questão do ‘pagamento de acordo com a performance”. Como afirma o professor de Corporate Governance, “ou o público não compra a ideia de que os CEOs deveriam ter participação nos lucros ou não acreditam que estes tenham um papel relevante no que respeita à criação de valor”. E é por isso que as empresas precisam, claramente, de ter argumentos mais convincentes sobre de que forma é que as remunerações dos seus executivos de topo são indexadas à performance das empresas que gerem e lideram.

Editora Executiva