No alto dos seus 82 anos, o mundialmente reconhecido biólogo Edward E. Wilson pode dar-se ao luxo de provocar desconforto e até muitos nervos aos seus colegas cientistas. Desafiando um dos pilares centrais da biologia evolucionária moderna, a sua nova obra tem como tema central o facto de o altruísmo ser, afinal, a força condutora que favorece comportamentos de auto-sacrifício nos indivíduos quando os seus comportamentos beneficiam todos os membros do grupo, mesmo aqueles que não têm qualquer relação de parentesco entre si. Tal como acontece com as formigas e as abelhas
POR HELENA OLIVEIRA

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Em 1897, o pintor francês Paul Gauguin colocaria numa tela as três perguntas cujas respostas buscou ao longo de toda a sua vida: De onde vimos? O que somos? Para onde vamos? As perguntas não são originais e têm vindo a ser formuladas ao longo de toda a nossa História pelos mais distintos “curiosos” da origem da condição humana. E, apesar de imortalizadas numa pintura que se encontra agora exposta em Boston, continuam a pairar sobre inúmeras cabeças que teimam em lhes querer dar resposta. Com os inimagináveis avanços na área das ciências – naturais, biológicas, físicas, sociais e humanas – o puzzle continua a intrigar especialistas de todas as áreas e, ao longo de séculos, várias teorias foram sendo formuladas sem, contudo, oferecerem uma resposta que satisfaça, pelo menos, os mais exigentes buscadores de lógica.

Na mesma cruzada encontra-se o reconhecido biólogo Edward O. Wilson, professor em Harvard, vencedor do Pullitzer e considerado, aos 82 anos, como um gigante da ciência: reconhecido como a maior sumidade mundial na pesquisa das formigas (que, como o leitor irá perceber, em muito se assemelham à espécie humana), autor e co-autor de dois livros vencedores do Pullitzer – com On Human Nature e The Ants – e galardoado com o Crafoord Prize, concedido pela Royal Swedish Academy em áreas não cobertas pelo Prémio Nobel, Wilson é igualmente coleccionador de polémicas. E, o seu último livro, The Social Conquest of Earth, não é excepção, bem pelo contrário: não é todos os dias que uma obra é precedida por uma carta pública de críticas, assinada por cerca de 130 cientistas seus pares e enviada à revista Nature, o ano passado, para registar a sua crença de que o pensamento actual de Wilson está errado.

E porquê? A controvérsia deve-se ao facto de Wilson estar a desafiar um dos pilares centrais da biologia evolucionária moderna: a de que a selecção natural tem efeitos muito mais fortes nos indivíduos e nos seus aparentados genéticos do que em grupos sociais mais alargados. E, mais ainda, a nova obra de Wilson constitui uma inversão da sua própria visão de que a evolução do altruísmo – central a este livro – seria conduzida pela selecção do parentesco e não pela selecção de grupo.

Em termos muito gerais, a nova premissa de Wilson aceita na ideia, agressivamente contestada, de que a selecção de grupo – ou seja, a competição de um grupo relativamente a outros – é a força condutora que favorece comportamentos de auto-sacrifício nos indivíduos quando os seus comportamentos beneficiam todos os membros do grupo, mesmo aqueles que não têm qualquer relação de parentesco entre si.

E, para construir o seu novo argumento, começa por desconstruir o que anteriormente defendia: a chave para se compreender a condição humana passa por perceber de que forma é que a nossa espécie desenvolveu vidas sociais avançadas a par dos comportamentos altruístas que estas exigem. Se a evolução é comandada pela sobrevivência dos mais aptos – a selecção individual – como é que se explica o auto-sacrifício observado entre as formigas trabalhadoras de uma colónia ou a que existe numa colmeia de abelhas ou, mais importante para a condição humana, o facto de alguém correr para dentro de uma casa a arder para salvar um estranho? A explicação corrente – a da selecção do parentesco ou da adaptabilidade inclusiva – é a de que o altruísmo evoluiu entre indivíduos intimamente relacionados como forma de assegurar a sobrevivência das porções partilhadas da sua herança genética.

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O bem e o mal, o pecado e a virtude
Todavia, Wilson descreve em detalhe de que forma os estudos levados cabo com insectos e mediante os quais foi construída esta teoria se mostraram, entretanto, incorrectos. O biólogo insiste agora que o altruísmo é resultado não da selecção individual ou de parentesco, mas da selecção de grupo. E, se recordarmos Darwin, também ele propunha que uma tribo que tivesse o maior número possível de membros dispostos a contribuir para ou a sacrificarem-se a si mesmos pelo bem comum “seria vitoriosa relativamente a outras tribos”. E, com base nas mais recentes descobertas da psicologia social, da arqueologia e da biologia evolucionária, Wilson constrói um argumento coeso o suficiente para demonstrar que, neste caso, Darwin tinha razão. Espécies que desenvolveram vidas sociais avançadas – o conceito de eussocialidade – termo conferido aos animais que apresentam as sociedades mais complexas, ou seja, aqueles que partilham três características: uma sobreposição de gerações num mesmo ninho, o cuidado cooperativo com a prole e uma divisão de tarefas (reprodutores e operários) – de que são exemplo as formigas, as abelhas e nós mesmos – têm sido significativamente bem-sucedidas e extremamente raras.

“Os nossos ancestrais foram uma de apenas cerca de duas dúzias de linhas animais que conseguiram evoluir até à eussocialidade”, escreve Wilson. “E, neste nível de organização biológica, os membros pertencentes a duas ou mais gerações mantêm-se juntos, cooperam, tomam conta dos mais novos e dividem o trabalho como forma de favorecer a reprodução de alguns indivíduos em detrimento de outros”.

A competição evolucionária entre as formigas é mais fácil de compreender não ao nível individual mas ao nível da colónia, agindo como um superorganismo. O mesmo acontece com as abelhas, que agem como uma extensão do genoma da rainha, lutando na batalha dos mais aptos contra outras colmeias. Para os humanos e de acordo com Wilson, a situação é, obviamente, mais complexa. Fomos geneticamente seleccionados para nos juntarmos a grupos. “Os nossos grupos – tribos, sociedades, nações – competem entre si pelo domínio mas, enquanto indivíduos, também competimos pela sobrevivência e reprodução dentro do mesmo grupo através da selecção individual. Os indivíduos egoístas podem vencer os mais altruístas, mas os grupos de altruístas vencem os grupos de egoístas”, escreve. E, conclui, a “condição humana é, largamente, um produto de tensão entre estes dois impulsos”.

É possível então afirmar que a espécie humana resulta de uma selecção multi-nível, a nível individual e grupal, o que conduz a mais uma interpretação interessante e polémica de Wilson. “O dilema entre o bem e o mal foi criado pela selecção multi-nível, no qual a selecção individual e a selecção de grupo actuam em conjunto para o mesmo individuo, mas largamente em oposição entre si”, pode-se ler. “A selecção individual molda os instintos fundamentalmente egoístas em cada um dos membros (…). A selecção de grupo molda os instintos que tendem a tornar os indivíduos altruístas em relação aos membros do mesmo grupo, mas não relativamente aos membros de outros grupos. A selecção individual é, assim responsável, por muito do que apelidamos de pecado, ao passo que a selecção de grupo é responsável pela maior parte do que apelidamos de virtude. Em conjunto, criaram o conflito entre os piores e melhores anjos da nossa natureza”.

Ou, por outras palavras, a selecção individual pode ser considerada como aquilo que a ética rotula como uma conduta moralmente repreensível, ao passo que a selecção de grupo é responsável pela maior parte da ética e da boa conduta. Ou seja, somos parte santos – com base no gene altruísta – e parte pecadores – graças ao gene do egoísmo.

E, no que respeita a responder à trilogia das questões “De onde vimos? O que somos? Para onde vamos?, a resposta de Wilson é a seguinte: “Vimos da biologia, somos o mais fantástico animal de todos e, devido às nossas competências sociais largamente desenvolvidas – a nossa eussocialidade especial humana – vamos a caminho de uma maior cooperação e, em conjunto, iremos derrubar todos os males do mundo. E, apesar de todas as controvérsias, esta parece ser uma conclusão muito optimista.

As implicações para a gestão
No seguimento de uma recensão sobre o livro de Wilson, a revista Forbes analisou de que forma esta nova teoria poderá ter implicações na gestão das organizações da actualidade.De uma forma óbvia, como refere o artigo, seria expectável que as organizações que encorajam o gene altruísta através de uma cultura colaborativa teriam a tendência para prevalecer em detrimento das outras em que o gene egoísta seria dominante. Ora, a conclusão não é surpreendente e aparece como algo básico em qualquer manual de gestão.

Mas e o que dizer dos clientes? A selecção de grupo determina os instintos que encorajam a colaboração no interior do grupo, mas não no que respeita a membros de outros grupos. Se os clientes são vistos como outsiders, então existe o risco de estes serem tratados tão mal quanto os concorrentes, o que levará a uma performance pobre por parte da organização em causa.

E, como exemplifica a Forbes, tal ajudará a explicar o motivo devido ao qual nas reuniões feitas na Amazon, o fundador Jeff Bezos, que continua a ser um dos mais bem-sucedidos executivos da actualidade, assegura sempre a existência de uma cadeira extra para representar o cliente, que é denominado como “a mais importante pessoa na sala”. Esse enfoque no cliente confere à Amazon a confiança necessária para inovar livremente e sem se preocupar com os resultados de curto prazo. E, como afirma Bezos, “nós não nos concentramos na óptica do próximo trimestre, mas sim no que vai ser bom para os clientes. E esse, penso, é um aspecto da nossa cultura que é raro”.

A teoria de Wilson pode ainda explicar por que motivo a Apple tem sido tão bem-sucedida na sua inovação ao manter as equipas separadas umas das outras e proibindo-as, até, de discutir o seu trabalho com as demais equipas. Por outro lado, poder-se-ia pensar que existe um custo de oportunidade em termos de possibilidades perdidas de uma “fertilização cruzada” entre as equipas. Será, assim, possível que os ganhos relativos a uma supressão de competição, dos conflitos e das politiquices internos dentro da organização mais do que compensam esta perda de “fertilização cruzada”?

Ou, mais importante ainda, será possível que uma organização possa ser ainda mais eficaz se conseguir os benefícios de ambas as equações – a fertilização cruzada e o enfoque nos clientes – desenvolvendo uma cultura forte na qual a colaboração é a norma e os clientes sejam encarados como parte do grupo?
Ficam as perguntas.

Nota: Aceda ao resumo alargado do livro de Edwatd E. Wilson

 

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