Hawa Adbi tem um coração que “alberga”, literalmente, 90 mil refugiados. Nas terras que rodeiam a clínica que construiu há mais de 20 anos, garante comida, abrigo e saúde a todos os somalis que fogem da guerra civil que se instalou no país desde 1991. Mas também lhes oferece educação, formação e, sobretudo, dignidade. “Um misto de Madre Teresa e Rambo” é uma descrição que lhe assenta na perfeição. Uma história de amor e bravura de leitura obrigatória Em 2010, a revista Glamour distinguiu a Doutora Hawa Abdi, em conjunto com as suas duas filhas, Deqa e Amina, também médicas, com o prémio “Mulher(es) do Ano”. Na cerimónia de entrega deste prémio anual, Hawa Abdi foi descrita como “uma mistura, em partes iguais, de Rambo e Madre Teresa”. E a descrição assenta-lhe que nem uma luva. Numa altura em que o mundo assiste, incrédulo e, por estranhas razões, impotente, à maior situação de fome de que há memória desde a tragédia na Etiópia, nos anos 80 do século passado, Hawa Abdi tenta, com todas as suas super-forças, prover às necessidades básicas de alimento, abrigo e cuidados médicos de cerca de 90 mil refugiados somalis. Que vivem nas terras herdadas de Hawa.
Hawa Abdi Diblaawe nasceu em 1947, em Mogadíscio, na capital da Somália. Enquanto filha mais velha, deveria ter sido forçada a cuidar das quatro irmãs quando a mãe morreu, ainda nova. Mas o pai, funcionário no porto da cidade, defendia que a educação não tem sexo e tudo fez para que Hawa perseguisse e concretizasse o seu sonho de infância: ser médica. Hawa foi a primeira ginecologista mulher da Somália e, não contente com o feito, formou-se mais tarde em Direito. Decidiu então usar as suas próprias terras para nelas construir uma pequena clínica. Corria o ano de 1991 e a Somália, conhecida pela divisão de inúmeros clãs, entra numa espiral de conflitos armados que duram até hoje. Logo no início da guerra civil, vários empregados de Hawa pediram-lhe abrigo nas terras que circundavam a clínica. Mais tarde, juntaram-se-lhes familiares e amigos. E os amigos dos amigos. Hoje, são 90 mil os refugiados que ali comem, dormem, trabalham, estudam, ajudam. E que tentam esquecer os horrores que há muito afectam a mais do que fustigada região do Corno de África. “Todos somos somalis aqui” Não é de todo normal que, numa sociedade [islâmica] em que a mulher pouco ou nada vale, Hawa esteja a subverter por completo as regras: “estamos a fazer uma experiência”, afirmou a um jornalista do New York Times, acrescentando que “nós, mulheres na Somália, estamos a tentar ser líderes da nossa comunidade”. E mediante um conjunto de iniciativas muito variadas. Na “aldeia” de Hawa Abdi, dois em cada três refugiados são mulheres e crianças. Para além da clínica que, entretanto, se transformou num pequeno hospital, apesar de destruído há pouco tempo pelas milícias (v.Caixa), existe uma escola que consegue instruir, para já, 850, entre os 7 e os 18 anos, das 27 mil crianças que residem no campo. No hospital e apesar da ausência de equipamento moderno ou de funcionários qualificados suficientes para lidarem com todos os doentes, dá-se prioridade às crianças subnutridas e às mulheres grávidas. Mas também se investe na educação, com um centro para mulheres, que não só as ensina a ler e a escrever – incluindo a formação em línguas estrangeiras – como também dá aulas de cuidados de saúde. Por exemplo, a questão da mutilação genital feminina – cerca de 99% das mulheres na Somália são sobreviventes desta prática – é colocada não como uma negação das suas tradições, mas de forma a que as mulheres percebam os perigos para a sua saúde que daí possam resultar. Ainda no que respeita às crianças, o hospital iniciou recentemente uma formação para antigos meninos-soldados, que visa transformá-los em assistentes de enfermagem, afastando-as da guerra. O oásis no deserto da violência Apesar de Hawa Abdi ter uma fundação com o seu nome – que foi uma das primeiras organizações sem fins lucrativos da Somália – as ajudas não abundam. Apesar de contar com a ajuda de algumas ONG, só o facto de ter sido reconhecida como “Mulher do Ano” pela revista Glamour, cuja cerimónia de entrega de prémios conta com personalidades tão distintas como Hillary Clinton ou as actrizes Cher ou Julia Roberts, despertou alguma curiosidade na comunidade internacional. Por outro lado, as milícias também tudo fazem para que a Somália permaneça uma incógnita fora das suas fronteiras, pois não se ensaiam em matar jornalistas ou activistas dos direitos humanos que tenham a coragem de pisar o solo árido da Somália.
Todavia, é a própria Hawa Abdi que afirma, desta feita numa entrevista que concedeu ao portal The Daily Beast, que “depois de 20 anos a serem alimentados pela comunidade internacional, os somalis tornaram-se dependentes dessas ajuda”. E é esta “acomodação” que ela tenta contrariar. E de várias maneiras. Todas estas iniciativas permitem dar alguma esperança aos habitantes da aldeia de Hawa Adbi. Com a ajuda das suas duas filhas, que cresceram a alimentar os refugiados que se iam concentrando nas terras da mãe, esta mulher, que sobreviveu recentemente a um tumor na cabeça, afirma com orgulho: “construímos uma ilha de esperança num mar de violência”. Mas será necessária toda a ajuda possível para que a ilha não afunde.
Nota: Se pretender ajudar à terrível situação de fome que assola a Somália, poderá contribuir aqui. A título de exemplo, se contribuir com 25 dólares (cerca de 17 euros), está a dar o suficiente para alimentar 62 pessoas num dia. |
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Editora Executiva