POR HELENA OLIVEIRA
Humanidade, imparcialidade, neutralidade, independência, serviço voluntário, unidade e universalidade. Estes são os sete princípios fundamentais que unem o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (fundado em 1863 pelo francês Henry Dunant e “adoptado” na América em 1881, por Clara Barton), a maior rede humanitária do mundo, presente em cerca de 190 países e reconhecida pelo seu propósito central de ajudar os que sofrem, sem qualquer tipo de discriminação, seja durante um conflito, em resposta a desastres naturais ou provocados pelo homem, ou devido a condições de pobreza crónica.
E a imagem que se segue faz parte da campanha de prevenção que a Cruz Vermelha americana lançou este ano para figurar nas suas piscinas públicas, sensibilizando as crianças (bem como os seus acompanhantes) para terem comportamentos seguros e adequados, tendo em conta as estatísticas elevadas de acidentes e afogamentos. Pedimos ao leitor que observe, durante alguns segundos, a seguinte imagem:
Sim, a campanha chama-se “Be Cool, Follow the Rules” (que, em português, seria qualquer coisa como “Sê fixe, segue as regras”) e todos os bons e maus comportamentos estão devidamente assinalados. Se não encontrou nada de errado na imagem, pedimos-lhe que perca mais uns segundos a identificar quais os meninos que são “cool” e seguem as regras e quais os meninos que não são “cool” e as transgridem. A menina – branca – que se segura ao corrimão para entrar cuidadosamente na piscina versus o menino – negro – que prefere atirar-se de cabeça para a mesma; o pai extremoso – branco – que vai para dentro de água para ajudar ou ensinar o seu filho – branco – a nadar versus o menino – negro – que grita como se estivesse a afogar porque está sem acompanhante; e ainda a menina – branca – que está a ser empurrada por outra menina – negra. Sim, poderá contrapor o leitor, mas também existem dois meninos – um brancos e outro negro – que estão a quebrar a regra de não se correr fora da piscina e, também, existem meninos e meninas brancos e negros que se comportam adequadamente dentro da mesma, nadando calmamente, sobrando ainda o rapaz branco – o mais “coolest” da piscina, como brincava o famoso humorista Stephen Colbert quando resolveu mostrar esta campanha no seu programa que, de óculos e uma cerveja na mão, se passeia, de uma forma mesmo “cool”, no recinto em causa. Para uns, o racismo na campanha é mais do que evidente, sendo que para outros não passa apenas de uma mera coincidência.
Mas atentemos ainda numa outra informação relevante: a Cruz Vermelha americana é (re)conhecida pelas suas campanhas de segurança “dentro de água”, tendo até lançado, em 2014, a denominada Aquatics Centennial Campaign, a qual serviu para assinalar 100 anos de sensibilização para esta matéria em particular. E, na verdade, este poster não seria nada estranho se tivesse sido idealizado em 1914, na medida em que faltariam ainda 41 anos para que Rosa Parks (a “mãe” dos direitos civis), a costureira negra que, voltando após um dia de trabalho, “ousou” sentar-se, em 1955, num banco da frente de um autocarro, um comportamento “errado” e proibido aos negros pelas leis segregacionistas que vigoravam nos Estados Unidos e que marcaria o início do Movimento dos Direitos Civis dos Negros, com o objectivo de assegurar reformas em todos os seus estados com vista à abolição da discriminação e da segregação racial no país, e que é cronologicamente apresentado como o período entre 1955 e 1968.
Mas a verdade é que estamos em 2016 e a Cruz Vermelha americana, por intermédio de William Fortune, especialista em comunicação regional, garante que o desenho do poster “foi mais concebido para mostrar crianças do que para ser conotado com quaisquer motivações raciais”. Fortune acrescentou ainda que o poster escolhido nunca teve intenções de ser ofensivo, que a sua organização representa a “luta pela inclusão” e que todos os materiais pensados para a campanha em causa, passaram por várias fases de escrutínio antes de serem produzidos.
Lançada há poucas semanas, a campanha “Be cool” começou a ser questionada por alguns – poucos – cidadãos, até que chegou ao Twitter, obrigando a Cruz Vermelha americana a emitir um comunicado, a 27 de Junho último, lamentando o sucedido e retirando a imagem tanto do seu website, como de uma app que tinha desenvolvido para o mesmo efeito. Como se pode ler no comunicado: “(…) removemos o poster do nosso website e da nossa Swim App e descontinuámos a produção. Notificámos também todas as nossas instalações aquáticas parceiras, pedindo-lhes que retirem o poster. A nossa organização já assegurou aos nossos parceiros, bem como aos media, que não foi absolutamente nossa intenção a de ofender ninguém, pedindo desculpas por esta acção inadvertida. Estamos presentemente a fechar um acordo formal com uma organização de defesa da diversidade para nos orientar no futuro (…).”
Lido o comunicado, duas questões emergem de imediato: como é possível que uma organização centenária, que tem nos seus fundamentos centrais ajudar populações “diversificadas” em todo o mundo, “sem qualquer tipo de discriminação”, ter levado a cabo esta “acção inadvertida” e, sendo “inadvertida”, por que motivo tem de contratar uma organização especialista em diversidade para a “guiar” no futuro?
Como tantas outras, existem muitas questões que não têm resposta. Mas numa altura em que a América está, novamente, a ferro e fogo, depois de mais dois cidadãos negros terem sido mortos, em apenas 48 horas, a tiro pela polícia – no seguimento de muitas outras “acções inadvertidas” similares nos últimos anos e que tiveram início com a morte de Michael Brown, em Ferguson – e com a resposta em Dallas, obviamente sem justificação possível, sob a forma de emboscada, que acabaria por matar cinco polícias (brancos) e ferido mais sete durante a marcha pacífica de protesto contra a violência policial sobre a comunidade afro-americana, talvez não fosse má ideia pensar de que forma é que uma simples campanha inadvertida de prevenção e segurança infantil pode contribuir para aumentar o fosso entre negros e brancos naquele que é considerado o país mais multicultural do mundo.
Afinal, a ideia de que o racismo continua profundamente enraizado em muitos americanos “brancos” está a assumir contornos cada vez mais reais e são muitos os observadores que alertam para uma potencial explosão “inter-racial” à medida que o mandato de Barack Obama se aproxima do fim. Assombrada com a possibilidade de o próximo presidente poder ser um homem que assume alegremente a sua xenofobia em público, que não vê nada de errado no apoio à sua candidatura manifestado pelo antigo líder do Ku Klux Klan, recusando-se a repudiar a organização racista, que utiliza citações de Mussolini nos seus discursos, entre outras pérolas inimagináveis há pouco mais de um ano, a América poderá estar a brincar com o fogo e, pior que isso, poderá mesmo vir a pegar fogo (infelizmente e como sabemos, a Europa não está também muito longe de um cenário similar e a piorar continuamente, em particular desde o Brexit, como demonstra o aumento substancial de crimes de ódio, inclusivamente contra portugueses, uma matéria, contudo, que não cabe neste artigo).
Mas se dúvidas existem sobre a capacidade da América garantir a igualdade racial, vejamos a mais recente sondagem, divulgada pelo Pew Research Center, a 27 de Junho último, sobre as visões que têm os americanos, brancos e negros, sobre “as questões raciais” na outrora Terra das Oportunidades.
No que respeita a raça e desigualdade, há todo um mundo que separa os negros dos brancos
“Cerca de quatro em cada dez negros têm dúvidas de que os Estados Unidos alcancem, algum dia, a igualdade racial”. Este é o resultado destacado pelo Pew Research Center que divulgou recentemente um extenso relatório que avalia, entre inúmeros itens, a visão que negros e brancos têm sobre as questões raciais na América.
Quase oito anos depois da eleição do primeiro presidente negro da nação – um acontecimento que aumentou os níveis de optimismo entre muitos americanos sobre o futuro dos relacionamentos “entre raças” – os Estados Unidos têm vindo a ser palco de uma série de focos de conflito que não só confirmam as profundas divisões raciais existentes, como parecem indiciar que a discriminação racial está em perigoso crescendo na América, reacendendo o debate nacional sobre o tema.
Na extensa pesquisa efectuada pelo Pew, são claramente visíveis as profundas diferenças entre adultos negros e brancos no que respeita à discriminação racial, às barreiras existentes ao progresso dos primeiros, bem como a potenciais perspectivas para que algo mude efectivamente.
Não sendo surpreendente, são muito mais negros que brancos que afirmam ser tratados injustamente em domínios diferentes da vida, seja no que respeita às relações com as forças policiais, seja no acesso a um empréstimo para comprar uma casa. Ou, em suma, para uma esmagadora maioria dos afro-americanos, a igualdade racial permanece, e permanecerá, uma meta completamente ilusória. A este respeito, 88% dos entrevistados negros afirmam que o país terá de continuar a fazer alterações profundas para que a igualdade racial seja atingida, sendo que destes, 43% manifestam um enorme cepticismo face a este objectivo. Mas e mesmo assim, 42% dos negros acreditam ainda ser possível ao país levar a cabo essas mudanças necessárias para a tão almejada igualdade, com cerca de 8% a considerar que as mesmas já foram efectuadas.
O cenário muda de figura quando a questão é colocada aos respondentes brancos, com 53% destes a reconhecer que existe ainda muito trabalho a fazer para que os negros atinjam os mesmos direitos, mas com apenas 11% a expressarem dúvidas sobre se essas mudanças algum dia serão uma realidade. Quatro em cada 10 brancos acreditam que o país tem de trabalhar nesse sentido, ao mesmo tempo que uma percentagem similar (38%) afirma serem suficientes as alterações já efectuadas.
Para a pesquisa do Pew, foram entrevistados 3,769 adultos (1,799 brancos, 1,004 negros e 654 hispânicos), cujas respostas demonstraram claramente que os adultos negros e brancos têm percepções substancialmente diferentes sobre o que significa a vida, nos Estados Unidos, para os afro-americanos. Essa percepção tão díspar é evidenciada por margens alargadas entre ambos os grupos inquiridos em diversos domínios da vida quotidiana: por exemplo, no que respeita a um tratamento injusto no local de trabalha a diferença cifra-se em 42 pontos percentuais, para um pedido de empréstimo ou hipoteca nos 41 pontos, no relacionamento com a polícia, 34 pontos, no tratamento por parte do sistema judicial, 32 pontos, no atendimento em lojas ou restaurantes, 28 pontos e no voto em eleições, 23 pontos.
Adicionalmente e por uma margem de pelo menos 20 pontos percentuais, os negros apresentam uma tendência muito maior face aos brancos para afirmar que a discriminação racial (70% vs 36%), a menor qualidade no ensino (75% vs. 53%) e a inexistência de trabalho (66% vs 45%) constituem razões primordiais para que as suas vidas “não andem para a frente” face aos seus concidadãos brancos.
As opiniões de negros e brancos diferem ainda significativamente no que respeita à melhor abordagem para melhorar as relações inter-raciais. Entre os entrevistados brancos, a melhor forma de atingir esta melhoria passa por um enfoque no que as raças diferentes e os grupos étnicos têm em comum (57%), ou seja, no que torna cada grupo único, enquanto para os entrevistados negros, percentagens similares consideram que o enfoque deveria ser colocado naquilo que têm em comum (45%).
A pesquisa do Pew abordou igualmente as visões dos americanos face à importância do movimento Black Lives Matter, co-fundado por Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi, e sobre o qual o VER já escreveu. Apesar de ter sido criado como resposta a um “momento” em particular – após o assassinato do jovem negro Trayvon Martin, de 17 anos, desarmado e que seguia calmamente para a casa do pai em Sanford, no estado da Florida, pelo “vigilante” George Zimmerman – como se pode ler no próprio website “não somos um momento, mas um movimento”. O Black Lives Matter tem uma rede que cobre já todos os Estados Unidos, a qual luta pelo “valor da vida dos negros”, não só no que respeita aos permanentes abusos perpetrados pela polícia e pelos vigilantes, mas pelos mais básicos direitos humanos, ainda negados num ambiente em que o racismo continua a permear toda a sociedade. Mais de dois terços (65%) dos respondentes negros expressam o seu apoio ao movimento activista, com 41% destes a evidenciar “um forte apoio”. Entre os brancos, quatro em cada 10 afirmam apoiar o movimento, pelo menos “de alguma forma”, com os democratas menores de 30 anos a constituírem o grupo que maior apoio expressa.
As diferenças de respostas entre democratas e republicanos brancos no que respeita às questões raciais são significativamente reveladoras, o que mais uma vez faz soar o alerta caso Donald Trump venha a ser eleito presidente.
Cerca de seis em cada 10 republicanos brancos (59%) afirmam que é dada “demasiada importância” à raça e às questões raciais na actualidade, com apenas 21% dos democratas brancos a concordarem com esta declaração e cerca de 49% a contrariarem a mesma afirmação, sublinhando, ao invés, que pouca atenção tem sido dada aos problemas raciais comparativamente a apenas 11% dos republicanos.
E, mais gritantes ainda são as disparidades de opinião no que respeita à necessidade do país continuar a lutar por reformas que garantam a igualdade racial. Enquanto cerca de oito em cada 10 (78%) democratas brancos afirmam serem prementes alterações com vista a alcançar a igualdade entre negros e brancos, apenas 36% dos republicanos brancos concordam com esta afirmação, sendo ainda de 54% a percentagem destes últimos a acreditar que todas as mudanças possíveis já foram efectuadas.
E talvez esta crença consiga explicar por que motivo a Cruz Vermelha americana, depois de “várias fases de escrutínio” no que respeita à produção da sua campanha, a tenha colocado nas ruas. Uma mera “acção inadvertida”, sem dúvida.
Editora Executiva