POR HELENA OLIVEIRA
O relatório anual sobre desigualdade que a organização sem fins lucrativos Oxfam, especializada nesta temática, divulgou no início da semana, dias antes da reunião mundial de líderes em Davos, aproveitou o poder das estatísticas para chocar – pelo menos ao longo de algumas horas – o comum dos mortais. Se a riqueza combinada de 62 super-ricos iguala a de metade da população mais pobre da humanidade – cerca de 3,6 mil milhões de pessoas – é caso para indignação.
Mas talvez maior indignação causaria saber que uma outra estatística já bem conhecida da população mundial – a de que 1% dos habitantes do planeta Terra têm tanto dinheiro como os restantes 99% – foi oficialmente “atingida”, um ano antes das previsões da própria Oxfam, que esperava que tal proeza fosse alcançada apenas neste ano de 2016. Esta oficialização foi divulgada pelo Credit Suisse, no seu 6º Relatório sobre Riqueza Global, e sobre o qual o VER escreveu em Outubro de 2015, e como o efeito de proximidade aumenta proporcionalmente os níveis de revolta face a injustiças, saber que fazemos parte desses 99% terá talvez mais impacto do que se pensarmos que, todos os dias, uma em cada nove pessoas vai para a cama com fome. Com quantidades cada vez maiores de fermento, uma boa analogia para esta realidade poderá passar por imaginarmos um bolo inteiro versus umas ínfimas migalhas que caíram para debaixo da mesa.
[pull_quote_left]Nos últimos cinco anos a riqueza de 50% da humanidade decaiu em cerca de um trilião de dólares. Dados para o mesmo período indicam que a riqueza das 62 pessoas mais ricas do mundo aumentou em mais de meio trilião de dólares, para 1,76 triliões[/pull_quote_left]
Todavia, o discurso estatístico ajuda, sem dúvida, a bem colocar esta desigualdade em perspectiva: desde 2010 (quando o mundo ainda atravessava o deserto da crise económica e financeira, com alguns oásis pelo meio), a riqueza de 50% da humanidade decaiu em cerca de um trilião de dólares, sendo que esta queda de 41% (em cinco anos) foi acompanhada pelo aumento da população mundial em cerca de 400 milhões de pessoas. Dados para o mesmo período indicam que a riqueza das 62 pessoas mais ricas do mundo aumentou em mais de meio trilião de dólares, para 1,76 triliões, com apenas nove mulheres a fazerem parte desta selecta elite (até entre os mais ricos existe desigualdade de género, sublinhe-se também).
Escavando ainda mais fundo no fosso da desigualdade, em 2010, eram 388 os multimilionários que tinham nas mãos a riqueza de metade da população mais pobre da humanidade; em 2011, o clube baixou o seu número de membros para 177 e “expulsou” mais uns quantos em 2012, passando para os 159; a tendência da redução do número de super-ricos que concentra a riqueza nos seus bolsos manteve-se estável, com 92 em 2013 e 80 em 2014. E eis que em 2015, a elite dos multimilionários encolhe mais uma vez, cifrando-se agora em 62 super-criaturas.
Banquetes de boas intenções com sobremesa de promessas falhadas
A questão da desigualdade – e do seu aumento brutal – tem sido tema obrigatório nos diversos eventos organizados pelo Fórum Económico Mundial (FEM). Se é verdade que a organização fundada por Klaus Schwab tem o seu mérito, na medida em que produz informação de qualidade sobre as grandes tendências mundiais, alerta para a necessidade de as mesmas serem debatidas em circunstâncias diversas, reúne grupos de trabalho meritórios que se esforçam por minimizar os seus impactos negativos e junta em Davos, todos os anos, mais de 2500 representantes dos mais diversos quadrantes da sociedade, e mesmo que seja impossível escapar às críticas de quem se revolta com o ambiente faustoso em que decorrem estes debates, será que deles sai alguma acção verdadeiramente positiva para se pôr cobro às divisões crescentes que grassam no mundo?
[pull_quote_left]Estima-se que, a nível global, o clube dos 62 mais ricos tenha “guardada” a simpática quantia de 7,6 triliões de dólares – o equivalente ao PIB combinado do Reino Unido e da Alemanha – em contas offshore[/pull_quote_left]
Pelos vistos, não. Se no ano passado a “tendência para o aprofundar da desigualdade” foi considerada como um dos problemas mais graves do estado actual da humanidade –tendo constado, aliás, como a “preocupação número 1” identificada pelo próprio FEM, poderemos recuar ainda mais atrás – três anos – e recuperar uma citação de David Cameron, na qual fala sobre o “problema” dos paraísos fiscais (em particular dos que constam do seu “território” como é o caso das Ilhas Caimão ou das Ilhas Virgens Britânicas) e do seu contributo para o agravamento da desigualdade: “Precisamos de acabar com a era dos paraísos fiscais que tem vindo a contribuir para que os indivíduos mais ricos e muitas multinacionais se escusem de cumprir com as suas responsabilidade para com a sociedade ao ‘esconderem’ quantidades crescentes de dinheiro em offshores”, afirmou, exactamente em Davos, em 2013.
“Atacar a cortina de secretismo que envolve a teia de paraísos fiscais do Reino Unido seria um grande passo no sentido de se acabar com a desigualdade extrema”, reforça Mark Goldring, presidente da “filial” britânica da Oxfam no Reino Unido, em declarações sobre os resultados deste ano.
Pois seria. Mas até agora não existem notícias que tal proeza tenha acontecido ou que esteja prestes a acontecer. E talvez esta inactividade crónica seja suficiente para explicar outras estatísticas reveladoras.
De acordo com dados publicados no mesmo relatório da Oxfam, estima-se que, a nível global, o clube dos 62 mais ricos tenha “guardada” a simpática quantia de 7,6 triliões de dólares – o equivalente ao PIB combinado do Reino Unido e da Alemanha – em contas offshore. Se os impostos relativos ao rendimento que esta riqueza geraria caso fossem pagos, os governos poderiam contar com um extra de 190 mil milhões de dólares, por ano, o que decerto daria uma ajuda para minimizar os níveis de pobreza, de fome e de falta de cuidados de saúde básicos de centenas de milhões de pessoas.
[pull_quote_left]A Oxfam estima que pelo menos 30% de toda a riqueza financeira do continente africano esteja devidamente “deslocada e bem guardada” em offshores, o que representa uma perda em receitas fiscais de 14 mil milhões de dólares todos os anos[/pull_quote_left]
A Oxfam alerta também para uma verdadeira “indústria de fuga aos impostos”, bem sistematizada num sistema global, que está a “sugar a vida” dos estados sociais pertencentes ao mundo rico, ao mesmo tempo que nega, aos países pobres, os recursos necessários para estes combaterem a pobreza, colocarem os seus filhos na escola e evitar que os seus cidadãos morram de doenças facilmente curáveis.
A organização especializada na temática da desigualdade estima igualmente que pelo menos 30% de toda a riqueza financeira do continente africano esteja devidamente “deslocada e bem guardada” em offshores, o que representa uma perda em receitas fiscais de 14 mil milhões de dólares todos os anos. Por sua vez, esta soma seria suficiente para custear as despesas de saúde de mães e filhos e para poupar a vida a 400 milhões de crianças anualmente, bem como para contratar um número suficiente de professores para ensinar toda a população em idade escolar em África.
O inferno de muitos é o paraíso (e não só fiscal) de muito poucos
A resignação ao facto de que sempre existiram ricos e pobres – na verdade, não há mesmo outro remédio – não nos impede, contudo, de reflectir sobre os motivos subjacentes a tão extremada riqueza.
E embora raramente tenham necessidade de justificar as quantias inimagináveis que fazem parte do seu portefólio, é comum que estes multimilionários se defendam com as frases feitas de que “são ricos porque trabalharam e suaram para isso” ou que “o seu mérito” é um dos principais motores que faz crescer as suas árvores do dinheiro, as quais dão frutos também à sociedade.
[pull_quote_left]Numa pesquisa que envolveu 200 grandes empresas, a Oxfam conclui que nove em cada 10 multinacionais têm presença em pelo menos um dos vários paraísos fiscais existentes[/pull_quote_left]
Ora, para os pobres mortais que também suam e trabalham – e já sem falar dos realmente pobres que não sabem o que é viver com mais de um punhado de dólares por dia – saber que em muitos casos (basta consultar a lista dos mais ricos da Forbes que foi usada neste mesmo relatório da Oxfam), a noção de meritocracia pouco ou nada tem a ver com a sua riqueza acumulada. Na verdade, e como se escreve no The Guardian, “nenhum dos 3,5 mil milhões de homens e mulheres, rapazes e raparigas teve a sorte de nascer numa fortuna como a dos Waltons, a família dona da Walmart, na qual seis elementos detêm, entre si, 149 mil milhões de dólares; nenhum deles saberá, sequer, quem é o príncipe saudita Alwaleed bin Talal, que vale 26 mil milhões de dólares”. O autor que assina o artigo sublinha que o topo da árvore do dinheiro está “infestado” de heranças e herdeiros, como a viúva do chocolateiro Michele Ferrero, Maria Franca Fissolo que, aos 98 anos, é a quinta mulher mais rica do planeta, em conjunto com os descendentes das dinastias das cadeias de supermercados Lidl e Aldi e com os três irmãos da gigantesca Mars, que “valem” 80 mil milhões de dólares.
Sim, é verdade, estes senhores e senhoras não têm culpa de serem milionários, mas e se pensarmos nas multinacionais que, de forma crescente, correm cada vez mais rápido na grande fuga aos impostos?
[pull_quote_left]Desde o início do século, a metade mais pobre da humanidade “recebeu” apenas 1% do aumento total da riqueza global, ao mesmo tempo que 50% deste aumento foi canalizado direitinho para os bolsos do 1% mais rico do mundo[/pull_quote_left]
Foi o que fez a Oxfam ao analisar 200 empresas, incluindo as maiores do mundo e que são, em simultâneo, parceiras estratégicas do Fórum Económico Mundial, concluindo que nove em cada 10 – sim, leu bem – têm presença em pelo menos um dos vários paraísos fiscais existentes. Um outro dado indica que, em 2014, o investimento corporativo nestes paraísos fiscais foi quatro vezes mais elevado comparativamente a 2001. E, pegando nesta data de viragem de século, a organização estima também que, desde então, a metade mais pobre da humanidade “recebeu” apenas 1% do aumento total da riqueza global, ao mesmo tempo que 50% deste aumento foi canalizado direitinho para os bolsos do 1% mais rico do mundo.
Adicionalmente, o rendimento anual médio dos 10% mais pobres do mundo cresceu menos de 3 dólares por ano, ao longo do último quarto de século, o que significa que o aumento do seu rendimento diário ronda uma quantia inferior a um cêntimo.
Para além do aumento da desigualdade económica, outras desigualdades existem e persistem, contribuindo para que este fosso seja crescentemente intransponível. A Oxfam cita um estudo recente do Fundo Monetário Internacional que conclui que os países com uma desigualdade de rendimentos mais elevada tendem a ter gaps mais pronunciados entre géneros no que respeita à saúde, à educação, à participação no mercado laboral e à representação em instituições. Como seria de esperar, a discrepância de rendimentos entre géneros é também mais acentuada em sociedades mais desiguais.
[pull_quote_left]O rendimento anual médio dos 10% mais pobres do mundo cresceu menos de 3 dólares por ano, ao longo do último quarto de século, o que significa que o aumento do seu rendimento diário ronda uma quantia inferior a um cêntimo[/pull_quote_left]
E, cereja no topo do bolo, enquanto a maioria dos trabalhadores “normais” aprende a viver com a estagnação persistente dos seus ordenados, os salários dos executivos e afins têm registado aumentos avassaladores, como demonstram os seguintes exemplos: os CEOs das empresas de topo norte-americanas têm vindo a assistir, desde 2009 (um ano depois da crise financeira, recorde-se) a aumentos nos seus salários superiores a 50% (54,3%) e o CEO da maior empresa tecnológica da Índia ganha 416 vezes mais do que um “trabalhador comum” no seu país.
Por último, outro dado ao qual é impossível fechar os olhos: a Oxfam demonstrou também recentemente que, enquanto os mais pobres vivem nas áreas mais vulneráveis às alterações climáticas, a metade da população mundial com índices de pobreza mais elevados é responsável por cerca de 10% da totalidade das emissões globais. Por seu turno, a pegada de carbono média dos mais ricos do 1% poderá ser 175 vezes superior a este valor.
É-nos ensinado a aceitar as desigualdades – e as injustiças que delas emanam – como factos consumados e inalteráveis. Mas há limites para tudo. Ainda para mais – e como poderemos ler no artigo seguinte* que integra a newsletter desta semana – quando o poder e os privilégios de um grupo restrito podem ser, efectivamente, travados. Basta que haja vontade, recurso igualmente escasso neste mundo inacreditavelmente desigual.
*Leia também: É possível inverter a “economia para o 1%”?
Editora Executiva