Apesar de o feito não ser inédito, ninguém ficou indiferente à divulgação da notícia por parte de Elon Musk e da sua empresa Neuralink no que respeita à implantação de um chip no cérebro de um ser humano. Com um mundo de promessas, que poderão transformar a própria essência da humanidade, multiplicam-se as questões médicas e éticas sobre as interfaces “cérebro-computador”. Mas, dado a polémicas e considerado pouco transparente nos anúncios que faz, o homem mais rico do mundo conseguiu o que queria e o que sempre deseja: ocupar o espaço mediático com apenas um tweet, o que lhe tem valido um coro de críticas por parte da comunidade científica. A verdade, contudo, é que um dos temas que tem animado a ficção científica passou a ser uma realidade, sem se saber quais as consequências que daí podem advir
POR HELENA OLIVEIRA
Como foi amplamente noticiado, o multimilionário Elon Musk anunciou a 29 de Janeiro último que a sua empresa Neuralink implantou pela primeira vez a sua interface “cérebro-computador” num ser humano. O receptor estava “a recuperar bem”, escreveu Musk na X (antigo Twitter) na segunda-feira à noite da passada semana, acrescentando que os resultados iniciais mostravam “uma detecção promissora de picos de neurónios” – uma referência à actividade eléctrica das células cerebrais.
No domínio da inovação científica, poucos desenvolvimentos têm capturado tanto a imaginação como o chip da Neuralink – uma tecnologia inovadora que promete revolucionar a interface entre o cérebro humano e os computadores. Com o seu potencial para melhorar as capacidades cognitivas, tratar doenças neurológicas e abrir caminho para uma série de outras aplicações, a implantação do chip Neuralink num ser humano representa um momento decisivo na evolução da humanidade e na trajectória do nosso futuro.
Mas e na verdade, este feito não é inédito, na medida em que existem várias outras empresas e instituições de investigação que estão a explorar activamente tecnologias destinadas a “aumentar” as funções cognitivas humanas. Algumas dessas iniciativas centram-se em interfaces cérebro-computador (BCI, na sigla em inglês) semelhantes às da Neuralink, enquanto outras procuram abordagens alternativas para melhorar a cognição.
Porém, também é sabido que são poucas as pessoas que gozam de um mediatismo tão grande quanto o do homem mais rico do mundo, conhecido não só pelo seu império empresarial, que inclui não só a rede social X, como também o fabricante de automóveis eléctricos Tesla, o produtor de foguetões SpaceX e a empresa de construção de túneis Boring Company , mas também por ser uma espécie de íman que atrai com muita facilidade um conjunto significativo de polémicas. Para além da Neuralink, a mais recente empresa de Elon Musk é a xAI, criada em Julho de 2023 como rival da OpenAI, criadora do ChatGPT e da qual foi igualmente fundador, tendo demitindo-se do seu conselho de administração em 2018.
Adicionalmente, Musk é igualmente conhecido por não dever muito à ética, sendo esta de escrutínio obrigatório numa área em que as decisões tomadas hoje irão moldar a trajectória da humanidade para as gerações vindouras, influenciando o próprio tecido da nossa sociedade e a essência do que significa ser humano. Aliás, como afirma o director de investigação do Physicians Committee for Responsible Medicine, Ryan Merkley, “Musk tem o hábito de sugerir grandes coisas, mas fornecer poucos detalhes”, acrescentando ainda que “este é talvez o maior exemplo disso”, porque não existem informações disponíveis sobre a pessoa que recebeu o implante nem sobre a sua condição médica. Ou seja, “dependendo da doença ou do distúrbio do paciente, o sucesso pode ser muito diferente”, atesta ainda.
Por outro lado, e antes de serem iniciados os ensaios em humanos, já a Neuralink suscitava profundas preocupações éticas e não só no que respeita a implicações mais amplas da sua interface cérebro-computador.
Em primeiro lugar, o momento da aprovação da Neuralink pela FDA, em Maio de 2023, coincidiu com o crescente escrutínio das suas práticas de ensaio e com alegações perturbadoras de crueldade contra os animais. A Reuters noticiou que mais de 1500 animais morreram durante as experiências realizadas pela empresa desde o seu início em 2018.
A taxa de mortalidade, alegaram os funcionários, excedeu o que poderia ser considerado como normal e foi atribuída às exigências de velocidade de investigação impostas por Elon Musk, resultando em mais erros e procedimentos falhados. Alguns ex-funcionários chegaram mesmo a descrever certas experiências como “trabalhos de hackers”, citando casos como o dimensionamento incorrecto de dispositivos em numerosos porcos testados e a implantação acidental do dispositivo da Neuralink na vértebra errada, levando à eutanásia dos animais afectados devido a dores e sofrimentos graves. Alguns destes mesmos funcionários acabaram mesmo por abandonar a empresa.
Por outro lado, embora o consentimento informado seja obtido por parte dos participantes clínicos, o impacto a longo prazo da tecnologia de interface cérebro-computador no corpo humano permanece incerto. Por conseguinte, para os académicos que estudam esta área, é imperativo estabelecer directrizes éticas para que os envolvidos neste domínio assegurem o seu compromisso com práticas responsáveis. E é preciso sublinhar que à medida que os avanços na tecnologia do cérebro se aceleram, as normas éticas devem acompanhar de muito perto esse progresso.
A fusão entre neurociência e inteligência artificial
A Neuralink surgiu de um desejo de colmatar o fosso entre os seres humanos e a inteligência artificial (IA). Concebido como uma solução para a disparidade crescente entre o rápido avanço da IA e a evolução relativamente lenta das capacidades cognitivas humanas – apesar de estar ainda longe desse desígnio – o chip da Neuralink representa também uma fusão da neurociência de ponta com proezas da engenharia.
Na sua essência, o chip é uma interface sofisticada que permite a comunicação bidireccional entre o cérebro e dispositivos externos. Ao implantar eléctrodos minúsculos directamente no cérebro, o chip da Neuralink poderá registar a actividade neural com uma precisão sem precedentes e estimular os neurónios a produzirem as respostas desejadas.
Todavia, o chip agora divulgado não serve ainda para aumentar a cognição humana, como explica a revista Scientific American: “cada dispositivo Neuralink sem fios contém um chip e um conjuntos de eléctrodos com mais de 1000 condutores extremamente finos e flexíveis que um robot cirúrgico introduz no córtex cerebral. Aí, os eléctrodos são concebidos para registar pensamentos relacionados com o movimento”. Na visão de Musk, uma aplicação acabará por traduzir estes sinais para mover um cursor ou produzir texto, permitindo, em suma, o controlo do computador através do pensamento. “Imagine se Stephen Hawking pudesse comunicar mais rapidamente do que um dactilógrafo ou um leiloeiro. É esse o objectivo”, escreveu Musk sobre o primeiro produto da Neuralink, baptizado Telepathy.
Como já escrito acima, a U.S. Food and Drug Administration (FDA) aprovou ensaios clínicos em humanos para o chip da Neuralink em Maio de 2023. E, em Setembro último, a empresa anunciou que estava a abrir as inscrições para o seu primeiro estudo indicado para pessoas com tetraplegia. Se tudo der certo e apesar desta inovação sem precedentes, a visão de Musk no que respeita aos produtos da Neuralink vai muito mais longe (bem como a das empresas concorrentes) .
Desta forma, o que pode ser alcançado com esta fusão entre a neurociência e a inteligência artificial, cujas potenciais aplicações são tão diversas quanto profundas e que prometem transformar não só vidas individuais como a própria humanidade?
Melhoria das capacidades cognitivas
- Uma das perspectivas mais tentadoras do chip da Neuralink é a sua capacidade de aumentar a cognição humana. Ao interagir directamente com o cérebro, o chip poderá melhorar a memória, a aprendizagem e a capacidade de resolução de problemas, expandindo efectivamente os limites da inteligência humana.
Tratamento de perturbações neurológicas
- Para milhões de pessoas em todo o mundo que sofrem de doenças neurológicas, como a doença de Parkinson, a epilepsia ou lesões da espinal medula, o chip da Neuralink oferece um raio de esperança. Ao modular com precisão a actividade neural, o chip poderá aliviar os sintomas, restaurar a funcionalidade perdida e melhorar a qualidade de vida em geral.
Revolucionar a interacção homem-computador
- Com o chip da Neuralink, a distinção entre a mente humana e a tecnologia digital fica perto de desaparecer. Imagine controlar dispositivos electrónicos com meros pensamentos, navegar em ambientes virtuais com uma fluidez sem paralelo, ou mesmo partilhar experiências directamente de uma mente para outra – uma visão que outrora parecia relegada apenas para o domínio da ficção científica mas que pode estar agora perto da realidade.
Acessibilidade
- Se for amplamente disponibilizado, o chip da Neurolink poderá democratizar o acesso a melhorias cognitivas avançadas, nivelando o campo de acção para indivíduos com diferentes capacidades cognitivas.
Redefinir os limites da humanidade
- A integração da tecnologia no corpo humano levanta questões filosóficas e éticas profundas sobre a natureza da identidade, da consciência e do que significa ser humano. À medida que aumentamos o nosso ser biológico com melhoramentos artificiais, aventuramo-nos em território desconhecido, desafiando tudo o que conhecemos ou julgamos conhecer sobre a essência da humanidade. E é por isso que as questões éticas são extremamente importantes.
Ética e transparência
Por outro lado, e em termos gerais, o advento do chip da Neuralink (bem como das empresas concorrentes) traz consigo uma série de considerações éticas que exigem uma análise e deliberação cuidadosas. Por exemplo:
Privacidade e segurança
- A capacidade de aceder e manipular dados neurais suscita preocupações significativas em matéria de privacidade e segurança. Quem terá acesso aos pensamentos e memórias dos indivíduos e como é que esses dados serão protegidos contra a utilização ou exploração indevidas?
Desigualdade e acesso
- Como acontece com qualquer tecnologia transformadora, existe o risco de o chip da Neuralink agravar as desigualdades sociais existentes. Quem terá acesso a esta tecnologia e como é que os seus benefícios serão distribuídos de forma equitativa pelos diferentes segmentos da sociedade?
Autonomia e consentimento
- A decisão de se submeter a um implante neural está repleta de implicações éticas no que respeita à autonomia e ao consentimento informado. Como podemos garantir que os indivíduos compreendem plenamente os riscos e as implicações da integração de tecnologia nos seus corpos?
Supervisão regulamentar
- Dadas as profundas implicações do chip da Neuralink, serão essenciais quadros regulamentares sólidos para garantir o seu desenvolvimento e implantação seguros e responsáveis. Como encontrar o equilíbrio certo entre a promoção da inovação e a protecção do interesse público?
Mas para além destas questões mais genéricas, a verdade é que o próprio anúncio de Musk no que respeita ao primeiro implante num ser humano está a ser alvo de muitas críticas, em particular por cientistas de várias áreas. Por exemplo, e embora tenha sido obtida autorização da FDA para a implantação do chip, a divulgação vaga de Musk (via X) suscita preocupações quanto à segurança, ao consentimento e à transparência. A tecnologia inovadora tem como objectivo melhorar a cognição, mas a abordagem envolta em secretismo levanta questões éticas. Com o potencial de riscos imprevistos, os especialistas em ética médica exigem transparência para garantir a segurança dos pacientes. A corrida da IA não deve comprometer o bem-estar dos sujeitos experimentais, o que suscita cepticismo e apelos a uma inovação responsável neste domínio.
Por exemplo e num artigo publicado na revista Nature, é sublinhado que os investigadores da área da neurotecnologia estão cautelosamente entusiasmados com o ensaio em humanos da Neuralink. E essa cautela tem toda a razão de ser. “O que eu espero é que consigam demonstrar que é seguro. E que é eficaz na medição dos sinais cerebrais – a curto prazo, mas, mais importante, a longo prazo”, afirma Mariska Vansteensel, neurocientista do Centro Médico Universitário de Utrecht, nos Países Baixos, e presidente da BCI International Society.
Como também pode ser lido no mesmo artigo – e em vários outros que acusam a empresa de Musk de opacidade na informação, – a Neuralink divulgou muito poucas informações sobre os objectivos do ensaio (não tendo também respondido ao pedido de entrevista por parte da revista Nature). Na verdade, nem se sabe se os ensaios divulgados são verdadeiros, pois a única informação divulgada sobre o assunto foi feita pelo próprio Elon Musk através de um simples tweet.
De qualquer das formas, “os especialistas esperam que, nesta fase, a segurança seja fundamental”, o que implica observar o impacto imediato do dispositivo “sem acidentes vasculares cerebrais, sem hemorragias, sem danos na vasculatura, nada disso” – bem como infecções, a par de um acompanhamento a longo prazo para verificar se continua a ser seguro ter o dispositivo implantado.
A brochura do estudo da Neuralink (o único “documento” disponível sobre o ensaio) refere que os voluntários serão seguidos durante cinco anos e que será avaliada a funcionalidade do dispositivo, com os voluntários a utilizá-lo pelo menos duas vezes por semana para controlar um computador e dar feedback sobre a experiência. Uma outra preocupação por parte dos neurocientistas reside no facto de não existir nenhum protocolo “visível” e com muitos investigadores incomodados com o facto de o ensaio não constar do ClinicalTrials.gov, um registo de ensaios clínicos mantido pela National Library of Medicine (NLM) nos National Institutes of Health (NIH), onde os estudos clínicos podem ser registados, as informações actualizadas e, se necessário, os resultados e documentos publicados.
Aparte de tantas dúvidas e receios de falta de ética, a verdade é que Elon Musk conseguiu o que queria: uma enorme publicidade à sua empresa.
Resta saber se o homem mais rico do mundo não está a brincar com o fogo. Ou, neste caso, com vidas humanas.
Imagem:© Natasha Connell/unsplash.com
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