Tal como acontece todos os anos, a reunião mundial de líderes que tem lugar em Davos, composta por um número grandioso de multimilionários, é palco para a apresentação do relatório sobre desigualdades a cargo da Oxfam. Este ano, o alvo das críticas proferidas pela organização que é considerada por muitos como promotora de verdades inconvenientes, recaiu sobre as grandes empresas e monopólios
POR HELENA OLIVEIRA

Uma nova e surpreendente sondagem revelou que o apoio ao aumento dos impostos sobre a riqueza é popular entre os milionários dos países do G20. A sondagem surgiu no momento em que 260 milionários e multimilionários assinaram uma nova carta exigindo que os líderes mundiais aumentem os seus impostos, coincidindo com a realização do Fórum Económico Mundial em Davos, na Suíça. A sondagem faz parte do relatório “Proud to Pay More“, publicado juntamente com a carta, que traça o perfil de algumas das pessoas mais ricas do mundo e explica por que razão apoiam o aumento dos seus impostos.

O mundo seria muito menos desigual se este pedido fosse aceite e se a este clube com boas intenções se juntassem mais membros multimilionários. Infelizmente, tal não acontece e, de acordo com o relatório anual sobre desigualdade de rendimentos apresentado em Davos pela Oxfam, desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo duplicaram as suas fortunas. Durante o mesmo período, quase cinco mil milhões pessoas em todo o mundo tornaram-se mais pobres. Ao ritmo actual, afirma a Oxfam, serão necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas poderemos contar com o primeiro trilionário dentro de 10 anos.

Há muitos anos que a Oxfam faz soar o alarme sobre a desigualdade extrema e continuamente crescente. E também há vários anos que o VER dá a conhecer esta obscena realidade, já encarada como normal. Este ano, o relatório em causa, intitulado “Inequality Inc., How corporate power divides our world and the need for a new era of public action” elege o poder corporativo e monopolista como “uma máquina implacável geradora de desigualdades”, as quais têm vindo a agudizar-se na medida em que, em apenas três anos, passámos por uma pandemia global, uma crise de custo de vida e vários eventos climáticos extremos. Para a Oxfam, “cada crise aumentou o fosso, não tanto entre os ricos e as e as pessoas que vivem na pobreza, mas entre uma minoria oligárquica e a grande maioria”.

Como é sublinhado no relatório deste ano, 4,8 mil milhões de pessoas são mais pobres do que eram em 2019 e a desigualdade global – o fosso entre o Norte Global e o Sul Global – aumentou pela primeira vez em 25 anos.

Entretanto, o aumento gigantesco da riqueza extrema a que se assistiu desde 2020 continua a surpreender. Os bilionários “valem” agora 3,3 biliões de dólares ou são 34% mais ricos do que eram no início desta década de crise, com a sua riqueza a crescer três vezes mais depressa do que a taxa de inflação. Esta riqueza está concentrada no Norte Global, onde apenas 21% da humanidade vive, mas são estes países que albergam 74% da riqueza dos multimilionários do mundo.

Os outros grandes vencedores neste período de crise são as corporações globais. Para estas gigantescas empresas, tal como para os indivíduos super-ricos, as últimas duas décadas foram extraordinariamente lucrativas e utilizadas para beneficiar os accionistas. Oitenta e dois por cento destes lucros são utilizados para beneficiar os que se encontram, na sua esmagadora maioria, entre as pessoas mais ricas do mundo. Com resultados ainda melhores nos últimos anos, as grandes empresas registaram um aumento de 89% nos lucros em 2021 e 2022. E, de acordo com novos dados, a Oxfam estima que 2023 deverá bater todos os recordes ficando na História como o ano mais lucrativo de sempre.

O relatório recentemente apresentado pela Oxfam tem como objectivo revelar como o poder das empresas e dos monopólios fizeram explodir as desigualdades e utiliza novos dados para demonstrar que os mais ricos dos ricos não são apenas os maiores beneficiários da economia global, como também exercem um controlo significativo sobre a mesma. Analisando as 50 maiores empresas de capital aberto do mundo, comprova-se que os multimilionários são os principais accionistas ou CEOs de 34% dessas empresas, com uma capitalização total de mercado no valor de 13,3 biliões de dólares. Adicionalmente, sete das 10 maiores empresas cotadas em bolsa do mundo têm um multimilionário como CEO ou como principal accionista.

Monopólios, riqueza e poder

Para a Oxfam, estamos a viver uma era de “poder de monopólio” que permite que as grandes empresas controlem o mercado e que lucrem sem medo de perder o seu negócio. E, como refere o relatório, longe de ser um fenómeno abstracto, este poder exacerbado tem um enorme impacto em todos nós, na medida em que influencia os salários que nos são pagos, os alimentos que comemos e que podemos pagar e os medicamentos a que podemos aceder. E, “longe de ser acidental, este poder foi entregue aos monopólios pelos nossos governos”, comenta ainda a organização.

Ademais, esta concentração crescente do mercado pode ser vista em todo o lado e em todos os sectores, como elucida a Oxfam.

Por exemplo, a nível mundial e em duas décadas (1995-2015), 60 empresas farmacêuticas fundiram-se em apenas 10 gigantes globais de “Big Pharma”; duas empresas internacionais detêm actualmente mais de 40% do mercado mundial de sementes; as grandes empresas tecnológicas dominam os mercados, com três quartos das receitas de publicidade a serem absorvidas pela Meta [antigo Facebook], a Alphabet [Google] e a Amazon, já para não falar de 90% das pesquisas online que são efectuadas através do Google.

Quanto às empresas de capitais privados, apoiadas globalmente por 5,8 biliões de dólares de dinheiro dos investidores desde 2009, utilizaram o acesso financeiro privilegiado para actuar como uma força monopolizadora em todos os sectores, garante a organização. Para além das participações privadas, os gestores de fundos de índice [ETF, na sigla em inglês para Exchange Traded Funds] das “Três Grandes” – BlackRock, State Street e Vanguard – gerem em conjunto cerca de 20 biliões de dólares em activos de particulares, perto de um quinto de todos os activos sob gestão, o que aprofundou o poder de monopólio.

A Oxfam declara ainda que as margens de lucro médias das “megacorporações” aumentaram de forma colossal nas últimas décadas e que o poder de monopólio permitiu às grandes empresas em muitos sectores e desde 2021, a coordenarem-se implicitamente para aumentar as suas margens de lucro, com os sectores da energia, alimentar e farmacêutico a assistiram a um enorme aumento de preços.

Salários baixos, tributação reduzida e privatização de serviços públicos essenciais

Como se pode ler no relatório, as grandes empresas impulsionam a desigualdade usando o seu poder para “forçar” os salários para baixo, ao mesmo tempo que direccionam os lucros para cima, ou seja, para os ultra-ricos. Em 2022, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) advertiu que o declínio histórico dos salários reais poderia aumentar a desigualdade e alimentar a agitação social. A análise da Oxfam concluiu igualmente que os salários de 791 milhões de trabalhadores não acompanharam a inflação e que, consequentemente, foram perdidos 1,5 biliões de dólares nos últimos dois anos, o que equivale a quase um mês (25 dias) de salários perdidos por cada trabalhador.

A Oxfam aponta ainda o dedo a muitas empresas por usarem a a sua influência para se oporem a leis e políticas laborais que poderiam beneficiar os trabalhadores – como a luta contra o aumento do salário mínimo -, para impedirem reformas que beneficiariam os direitos dos trabalhadores, impondo em simultâneo e em muitos países, restrições políticas à sindicalização e retrocessos na legislação sobre o trabalho infantil.

No que respeita aos impostos, a Oxfam afirma que as empresas e os seus proprietários ricos também são responsáveis pela desigualdade ao empreenderem uma guerra sustentada e altamente eficaz contra a fiscalidade, sublinhando que a taxa legal de imposto sobre o rendimento das empresas diminuiu para mais de metade nos países da OCDE desde 1980. O planeamento fiscal agressivo, o abuso de paraísos fiscais e os incentivos resultam em taxas de imposto que são muito mais baixas e muitas vezes próximas de zero, refere ainda.

Esta tributação fraca tem vindo a privar os governos de todo o mundo, mas especialmente os do Sul Global, de biliões de dólares em receitas que poderiam ser usadas para reduzir a desigualdade e acabar com a pobreza. “Cada dólar de impostos evadido é uma enfermeira que nunca será contratada ou uma escola que não pode ser construída”, exemplifica o relatório.

Um outro motivo que leva as grandes empresas a contribuir para o aumento das desigualdades reside no facto de o poder corporativo estar a “invadir” o sector público, “mercantilizando e segregando o acesso a serviços vitais como a educação, a água e os e cuidados de saúde, muitas vezes enquanto desfrutam de lucros maciços apoiados pelos contribuintes, o que pode impedir a capacidade dos governos de prestar vários serviços públicos universais e de alta qualidade que poderiam reduzir a desigualdade”.

Para a Oxfam, os riscos são enormes. Os serviços essenciais constituem indústrias de biliões de dólares, a par de imensas oportunidades de gerar lucro e riqueza para os accionistas ricos. O Banco Mundial e outros financiadores do desenvolvimento têm dado prioridade à prestação de serviços privados, tratando efectivamente os serviços básicos como classes de activos e utilizando os dinheiros públicos para garantir o retorno das empresas e não os direitos humanos. A privatização pode impulsionar e reforçar as desigualdades nos serviços públicos vitais, reforçando o fosso entre ricos e pobres, excluindo e empobrecendo aqueles que não podem pagar, enquanto os que podem têm acesso a bons cuidados de saúde e educação.

Por último e na visão da Oxfam, o poder das grandes empresas está a provocar o colapso climático, causando grande sofrimento e exacerbando as desigualdades, em particular nos países mais vulneráveis, mas não só. “Muitos multimilionários são proprietários, controlam, moldam e lucram financeiramente com os processos que emitem gases com efeito de estufa”, auferindo benefícios quando as empresas procuram bloquear o progresso para uma transição “verde” rápida e justa, ao mesmo tempo que negam e distorcem a verdade sobre as alterações climáticas e esmagam aqueles que se opõem à extracção de combustíveis fósseis.

É verdade que as empresas no geral são responsáveis pela criação de emprego e por apostarem em soluções que beneficiam as comunidades e o planeta. Mas parece estar na hora de se reflectir – e agir – sobre aquelas que tanto mal produzem.

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