Que papel desempenhará a inovação tecnológica na invenção de um ‘próximo mundo’ que gostaríamos que fosse mais pacífico do ponto de vista social e ambiental, apesar das grandes tendências e convulsões já em curso, como a das alterações climáticas? À escala institucional, não há dúvidas sobre o assunto. Quando surgiu a quinta geração de telemóveis (5G), percebeu-se que apenas a inovação tecnológica poderia permitir a solução para os grandes impasses do nosso tempo
POR PEDRO COTRIM

Quando a 5G surgiu, no Verão de 2020, insistiu-se no facto de que esta tecnologia seria um factor de aumento do consumo de eletricidade e que também implicaria riscos em termos de dados pessoais. Em relação à energia, as reticências são fáceis de perceber; em relação à invasão da privacidade, todos sentimos na pele os algoritmos e porventura já ouvimos narrativas que nos deixam abesbílicos: sabemos que a capacidade de download das redes 5G é cem vezes superior à das 4G – uma diferença materializada em menos de 8 anos. Acrescente-se que a 4G era adequada para banda larga móvel, streaming de vídeo e utilização comum da internet, enquanto a 5G foi concebida para suportar uma grande gama de aplicações, incluindo realidade virtual e aumentada, veículos autónomos, cirurgia remota e cidades inteligentes. Permite uma utilização mais exigente, mas também comportamentos mais disfarçados.

O lançamento da geração 4G, em 2012-2013, passou quase despercebido. É claro que a dúvida quanto aos benefícios do progresso tecnológico parece ganhar força nos últimos anos, mesmo deixando de lado as diversas teorias da conspiração que florescem nas redes sociais. A 5G e o seu mundo, dos carros autónomos, da inteligência artificial, da manipulação genética e dos drones de entrega ao domicílio, é sem dúvida apelativa aos círculos do poder político e económico, que a considera um motor de crescimento benéfico, mas luta para convencer uma parcela significativa da população.

Na realidade, as preocupações e as críticas intelectuais ao progresso tecnológico e aos seus efeitos nas sociedades humanas são quase tão antigas como a própria Revolução Industrial. No início do século XIX, relacionaram-se com as consequências sociais da concentração da produção nas minas e nas fábricas.

A partir do começo do século XX, duas tendências floresceram. Por um lado, às utopias tecnológicas juntaram-se as distopias, o lado assustador das possibilidades técnicas. Ganharam visibilidade e transmitiram temor pela pena dos grandes romancistas. Em temos de popularidade, Orwell e Aldous Huxley levaram a palma. Por outro, a interacção entre realidade e ficção tornou-se sistemática: o progresso técnico deu asas à ficção, que as projetou em futuros possíveis, e ao mesmo tempo alimentou as reflexões e os sonhos de pessoas ‘sérias’, como políticos, cientistas ou inventores.

A partir das décadas de 1930 e 1940, as preocupações ambientais somaram-se às preocupações sociais. As necessidades de recursos planetários, geradas pela explosão demográfica aliada ao desenvolvimento económico, prevaleceram sobre questões morais e sociais, antes que estas ressurgissem muito timidamente com a recente digitalização completa do mundo. No início da década de 1950, economistas e futurólogos contestaram a visão sombria dos ambientalistas e os seus anúncios apocalípticos de fomes e cenários de carência. Nesses tempos de descoberta da energia atómica e das suas promessas de energia gratuita e infinita, profetizavam, pelo contrário, um futuro radioso, composto, entre outras coisas, por bases lunares, aviões supersónicos, grandes obras de engenharia, centrais nucleares, carros voadores e inteligência artificial.

Algumas décadas depois, estamos na mesma situação. Se o pessimismo sobre a fome não se concretizar, as emergências ambientais serão maiores do que nunca. Mas a conquista do espaço também não ocorreu à velocidade esperada pelos futurologistas da década de 1950. Os aviões supersónicos não cruzam os céus. Serão os termos do debate exactamente os mesmos de 1950 ou 1960? Irá o progresso tecnológico resolver os problemas que enfrentamos?

Do ponto de vista puramente estrutural, um transístor continua a ser um transístor, um motor elétrico um motor elétrico, um avião um avião. Talvez os avanços tecnológicos tenham sido maiores no início do século XX ou durante a Segunda Guerra Mundial. É difícil efectuar uma abordagem quantitativa: o número de patentes é habitualmente um indicador pouco fiável, uma vez que muitas representam apenas avanços marginais. Não será hoje em dia a mesma coisa, quando se tenta exagerar no incrível avanço tecnológico da 5G (ou mesmo da 6G) com utilizações impensáveis? Especialmente porque as inovações tecnológicas não serão assim tão simples de implementar.

A deslumbrante cobertura de redes móveis e de internet colocou-nos numa falsa crença: de que qualquer implantação tecnológica poderia, no futuro, ocorrer com a mesma rapidez. Em relação aos telemóveis, tratou-se de sobrepor um novo sistema técnico a outros, nomeadamente de energia e transportes.

Mas fazer a substituição é outra música: a implantação de uma rede de transporte de hidrogénio, por exemplo, exigiria a adaptação de fábricas de automóveis e dos seus fornecedores, dos oleodutos, de instalações portuárias, das áreas de armazenamento, refinarias, postos de gasolina, etc. Representaria um esforço industrial muito maior que a instalação de algumas dezenas de milhares de estações de dados móveis.

O efeito de base instalada pode criar uma inércia terrível quando se trata de mudar o que já existe. Confrontados com descobertas esperançosas, façanhas em pequena escala ou em laboratório, devemos perguntar-nos se serão implementáveis ​​à escala e à velocidade necessárias. Já sabemos que será impossível reequipar toda a frota existente de centrais eléctricas e fábricas com dispositivos de captura e sequestro de CO2, o que torna o carvão limpo numa hipótese bastante teórica. As tecnologias não poluentes ou de inspiração biológica são boas, mas uma experiência de laboratório ou um projecto-piloto nem sempre conduzem à generalização efectiva.

Os edifícios mais modernos são neutros em carbono ou mesmo net zero, mas tal não implica a renovação e a transformação do parque de edifícios existentes e das suas dezenas de milhões de habitações. Os carros totalmente autónomos também estarão distantes, tendo em conta o tempo das homologações técnicas, do desenvolvimento de novas linhas de veículos e da renovação das frotas. Será sempre tudo muito tardio em termos de prazos climáticos.

As promessas tecnológicas esbarram noutras restrições ainda mais estruturantes. Em primeiro lugar, a maioria das tecnologias utiliza metais raros e agrava as dificuldades de reciclagem, seja pelas quantidades muito pequenas utilizadas em nanotecnologias e electrónica, pela multiplicação de objectos conectados, pela complexidade que conduz à degradação e ao downcycling de materiais reciclados. Também surge o problema das misturas produzidas de ligas e materiais compósitos.

O mundo não se está a tornar desmaterializado: é precisamente o contrário. Mais de vinte metais, incluindo grande parte dos utilizados nas novas tecnologias (como terras raras, tântalo e gálio) dos cerca de sessenta utilizados pelo nosso sistema industrial, são reciclados numa percentagem muito reduzida.

A grande especialização e a segmentação das atividades económicas dificilmente nos fazem pensar numa escala sistémica. Segundo os economistas, não há problemas futuros de recursos porque o simples aumento dos preços é suficiente para aumentar as reservas disponíveis e a taxa de reciclagem. Contudo, é necessária mais energia para extrair minérios menos ricos ou menos acessíveis. De acordo com os defensores das energias renováveis, não há problemas energéticos, uma vez que estão disponíveis em quantidades gigantescas, mas são necessários recursos para os capturar, converter, armazenar e utilizar.

Falamos dos carros autónomos e da cidade inteligente como soluções que optimizarão o consumo futuro, mas que sistema digital, sensores, antenas, redes, centros de computação exigirão para operar, com que impacto ambiental e com que relação custo/benefício?

Também acabamos por negligenciar o efeito da reacção. É certo que as tecnologias se estão a tornar cada vez mais eficientes, mas não sabemos como captar estes ganhos de eficiência. As máquinas consomem cada vez menos para realizar o mesmo trabalho: o consumo deverá diminuir, mas se cada máquina consumir menos, o seu trabalho custará menos e as utilizações irão multiplicar-se. Se cada máquina consumir menos, haverá cada vez mais máquinas, e este efeito ocorre em todas as áreas: renovação térmica de edifícios, linhas de comboio de alta velocidade, que não esvaziam aeroportos mas ocasionam novas viagens, poupanças de querosene na aviação, motores mais eficientes, etc. Quanto ao sector digital, os ganhos de eficiência são fenomenais, mas a quantidade de dados produzidos, trocados e armazenados duplica a cada dezoito a vinte e quatro meses.

Seria insensato negar o progresso tecnológico já realizado ou que se avizinha, mas seria perigoso basear o nosso futuro civilizacional apenas inteiramente neles. Nada na trajetória tecnológica da humanidade até este momento, nem nas bases materiais e geológicas que a sustentam, sugere que amanhã seremos colectivamente mais verdes e mais virtuosos. Não existe uma solução técnica para manter – e menos ainda para aumentar – a médio prazo o consumo global de energia e recursos. Ao continuarmos a alimentar a caldeira do progresso, mais cedo ou mais tarde iremos deparar-nos com limites planetários. Se houver soluções, terão de ter em conta e regular usos e comportamentos, não apenas técnicos, mas sociais: a tecnologia não terá resposta para tudo.

O progresso chegará sempre. A sociedade não terá outra escolha senão adaptar-se.

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