A União Europeia, que se prepara para votar de 6 a 9 de junho, constitui uma das maiores realizações políticas da humanidade: o único caso de partilha voluntária de soberania entre países independentes com vista ao bem comum
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Este projeto ímpar resultou da maior catástrofe da história; forjada nos escombros da guerra mundial, a Comunidade conseguiu já três sucessos espantosos: primeiro a reconstrução do conflito, depois a defesa da liberdade, empresa e mercado durante a guerra fria, e finalmente a estabilização e desenvolvimento das antigas colónias soviéticas.
O mundo, porém, avança sempre, enfrentando sucessivamente novas dificuldades. A velha questão económica, centrada no progresso e equidade, onde a União conseguiu tantos êxitos, está a passar para segundo plano. A globalização, que se pode considerar como a extensão da abertura europeia ao planeta, encontra-se em recuo face a novas exigências que esta geração tem de defrontar.
O primeiro desafio, mais urgente e assustador, é a guerra. O regresso do imperialismo militar impõe exigências que estão omissas no continente há 80 anos. A Europa, que em 1945 venceu o monstro, encontra-se hoje aflitivamente atarantada. Após três quartos de séculos de confiança no guarda-chuva americano, e com uma sociedade comodista e burguesa, as capacidades bélicas do continente são claramente insuficientes para as ameaças. Aí os dirigentes parecem ainda na primeira fase, esperando incrédulos que o pesadelo desapareça para poderem voltar aos problemas habituais.
Felizmente no segundo grande desafio, o clima, a Europa está, não só atenta e eficaz, mas liderando a atitude mundial. É verdade que as soluções apresentadas para a emergência ambiental ainda não são suficientes; mas é por cá que as coisas são levadas mais a sério. O combate é exigente, até porque só agora os cidadãos começam a compreender os enormes custos envolvidos. Por isso, a oposição cresce; mas ninguém como a Europa assume tão claramente a prioridade.
Se no primeiro grande desafio a União hesita, e no segundo avança, no terceiro toma uma posição intermédia. As novidades tecnológicas desta geração transpuseram as paredes das fábricas, para invadirem as casas, as escolas, os quartéis, os hospitais, as eleições e até, parece, a própria consciência das pessoas. Não faltam os que anunciam um mundo novo, ou o fim dele. A Europa mantém-se envolvida no processo, mas deixou fugir a liderança para outras paragens. Tem-se dedicado à importante área da regulamentação da tecnologia, mas em poucos campos determina o que ela será.
Estes três desafios, que marcam a vida da atual e futuras gerações, são de longe os mais visíveis, mas não são os mais determinantes. Aquilo que pode decidir o sucesso ou o falhanço da Europa nas próximas décadas, incluindo nestes três problemas, situa-se em duas outras questões, mais profundas e essenciais.
A primeira é cultural. Estão de novo em xeque os valores que definiram o projeto europeu, aqueles que tinham sido espezinhados pelos totalitarismos de 1900, e que depois foram inscritos no coração da União. A liberdade, a igualdade, a democracia, a abertura, a moderação, o respeito, são crescentemente questionados por forças extremistas, de esquerda e de direita. Os cidadãos, alarmados pelos três desafios referidos, ouvem apregoar soluções expeditas e radicais, que implicam violar as regras, substituir o diálogo pela gritaria, a reflexão pelo improviso. Voltamos a sentir as tentações demagógicas dos nossos bisavós. Como há cem anos, é o próprio modo de vida civilizado que está a ser posto em causa pelos fantasmas das velhas ideologias.
O segundo desafio, único na história da humanidade, é familiar. A Europa comodista e burguesa é a primeira sociedade da história a abandonar a natureza humana conjugal, em nome da liberdade individual. Os resultados são já evidentes: solidão, depressão, envelhecimento, declínio demográfico, imigração, insustentabilidade comunitária. Desequilibrando a célula central da sociedade, todos os outros problemas ficam mais graves. Estão em risco a educação dos jovens, o apoio aos idosos, a solidez financeira, a sanidade mental. A Europa entrou num caminho de decadência humana.
Quando se fala de desafios, o panorama fica sempre assustador. Felizmente, a realidade nunca será tão má quanto as previsões. A Europa vai sobreviver para, no futuro, enfrentar desafios hoje ainda desconhecidos.
Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas