Algo está muito errado quando um grupo concreto de pessoas se sente envergonhado por pagar poucos impostos. Mesmo que essas pessoas sejam milionárias e assim continuem se os níveis de tributação dos seus rendimentos forem substancialmente aumentados. Mas é o que acontece nos Estados Unidos, onde 40 milionários escreveram uma carta aberta ao governador e à assembleia legislativa do estado de Nova Iorque a exortar que um novo plano que prevê um aumento de IRS para rendimentos elevados seja aprovado. Sem grandes esperanças, porém
POR
HELENA OLIVEIRA

“Temos todas as condições para pagar os nossos impostos actuais, mas temos condições para pagar muito mais”.

Não, caro leitor, não é uma piada, mesmo que de bom gosto, mas sim um apelo, endereçado numa carta aberta, ao governador do estado de Nova Iorque e aos líderes legislativos do mesmo, assinada por um grupo de 40 milionários ali residentes, que pretendem ver os seus impostos aumentados com vista a diminuir o enorme fosso de desigualdade que grassa na Big Apple (e não só, claro).

“Somos nova-iorquinos de elevados rendimentos que apreciamos a qualidade de vida no nosso estado. Contudo, estamos profundamente preocupados com o facto de existirem demasiados nova-iorquinos com enormes dificuldades financeiras e que as débeis infra-estruturas do estado estejam desesperadamente a precisar de atenção. (…) É um facto vergonhoso que a pobreza infantil no estado de Nova Iorque tenha atingido níveis recordistas, excedendo os 50% em alguns dos nossos centros urbanos. O estado de Nova Iorque tem também um número recordista de famílias sem-abrigo – mais de 80 mil pessoas – que tentam sobreviver. E são demasiados os adultos que não têm as competências laborais necessárias para a economia do século XXI”.

Assumindo-se como líderes de negócios e investidores, os quarenta milionários em causa – entre os quais se destacam Steven Rockefeller, um membro da 4ª geração da famosa família ultra-milionária, Elspeth Gilmore, conhecida por trabalhar para a Resource Generation, uma organização cuja missão é convencer, literalmente, “meninos e meninas ricos”, herdeiros de grandes fortunas a partilhar os seus bens em prol de causas sociais, Abigail Disney, a realizadora e neta do co-fundador da Walt Disney Company (Roy Disney) ou Joshua Mailman, filho do inventor e filantropo Joseph Mailman -, afirmam querer ver aprovada uma legislação que obrigue a uma maior tributação da sua riqueza – e da dos seus pares milionários também, é claro – com vista ao financiamento de programas que contribuam para minimizar a desigualdade de rendimentos e o investimento em infra-estruturas no estado em que residem (nos Estados Unidos, as políticas fiscais dependem de estado para estado).

A carta foi elaborada em conjunto com o think tank Fiscal Policy Institute – responsável pelo denominado “Plano do 1% para a Justiça Fiscal em Nova Iorque”- e também pelo projecto Responsible Wealth, que reúne uma rede de líderes empresariais, investidores e herdeiros pertencentes aos 5% mais ricos dos Estados Unidos que “acreditam que a desigualdade crescente não serve o nosso melhor interesse, nem o melhor interesse da sociedade” e que defendem “impostos justos e responsabilização corporativa”.

Em termos gerais, o apelo feito pelos 40 milionários nova-iorquinos visa fazer passar o plano acima referido, votado a 1 de Abril, o qual, em termos muito gerais, tem como objectivo aumentar o número de escalões de impostos sobre os rendimentos a partir dos 665 mil dólares anuais, e com taxas que, progressivamente, serão cada vez mais elevadas para quem aufira um milhão, dois milhões, 10 milhões e mais de 100 milhões por ano.

Adicionalmente, e porque os valores, temporários, que actualmente estão estabelecidos para famílias de rendimentos baixos e médios variam entre 4% a 6,85% só são válidos até 2017 – de acordo com a legislação, qualquer rendimento acima de 40 mil dólares pagará apenas 6,85% de imposto – é também pedido na mesma carta que os valores (para os rendimentos mais baixos) se mantenham como até agora.

Se, pelo contrário, estas taxas temporárias expirarem (em 2017), tal representará “um aumento de impostos no valor de mil milhões de dólares para as famílias da classe média e um lucro inesperado em corte de impostos no valor de 3,7 mil milhões de dólares para os milionários como nós”, escrevem ainda.

Ou seja, e colocando apenas três valores de rendimentos em perspectiva, é possível ver a inacreditável injustiça tributária existente nos Estados Unidos: para um rendimento de 16 mil dólares, a taxa de IRS é de 4%; para valores entre os 40 mil e os 150 mil dólares é de 6,85% e, o qual, se nada for alterado, para quem ganha 100 milhões, será exactamente o mesmo – 6,85%.

Pelo contrário, se o plano proposto pelo Fiscal Policy Institute e defendido pelos milionários em causa for aprovado – o qual, mesmo assim, terá uma tributação máxima de 9,99% para rendimentos a partir dos 100 milhões de dólares – o estado de Nova Iorque encaixará receitas na ordem dos 2, 2 mil milhões de dólares.

Apesar de a assembleia nova-iorquina ser democrata e estar igualmente a trabalhar num plano que pretende aumentar o nível de tributação de impostos para os rendimentos mais elevados, poucos são os que acreditam que alguma coisa vá mudar. Na medida em que o senado é republicano – e contra qualquer aumento de impostos para os ricos – não será, muito provavelmente, este apelo dos milionários em causa a fazer a diferença. Como afirmou o líder do senado, o republicano John Flanagan – e a propósito do plano, mais suave, que está a ser trabalhado pelos democratas – “seja sobre os rendimentos, os imóveis, as empresas, as multas ou as portagens, não defendemos quaisquer aumentos de impostos ou o apelo aos nova-iorquinos que trabalham arduamente para escavarmos mais fundo nos seus bolsos para pagarem mais”.

A citação dispensa comentários, mesmo quando na carta aberta se pode ler que “o estado de [Nova Iorque] precisa de investir estas receitas [as que resultariam do aumento da tributação para os mais ricos] na melhoria das escolas – a questão da educação, em particular da pré-escolar, é uma das preocupações mais prementes deste grupo de milionários – em medidas anti-pobreza e na melhoria das infra-estruturas. A prosperidade económica de longo prazo depende de investimentos fortes nas nossas pessoas e nas nossas comunidades”, escrevem ainda. E, acrescentam: “todos ficarão melhor, se todos fizerem melhor”. O que é preciso é ter vontade, acrescentamos nós.

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Quando ter muito dinheiro não compra a paz de espírito

De acordo com o estudo “In It Together: Why Less Inequality Benefits All”, publicado pela OCDE sobre quais os países desenvolvidos que maior fosso de desigualdade apresentam entre ricos e pobres, os Estados Unidos posicionavam-se, em 2015, em 4º lugar.

Na proposta para a Justiça Fiscal defendida pelos 40 milionários e elaborada pelo Fiscal Policy Institute, é mostrado um quadro que ilustra bem essa mesma desigualdade e a vários níveis.

Por exemplo, no estado de Nova Iorque, o rendimento médio do 1% mais rico dos contribuintes norte-americanos foi de dois milhões de dólares em 2014, comparativamente a 47,300 dólares para os 99% remanescentes; ou o rendimento médio do 1% mais afortunado corresponde a quase 43 vezes do rendimento médio dos 99% restantes; ou ainda, as famílias nova-iorquinas negras têm 1,5 vezes mais de probabilidades de terem rendimentos muito baixos comparativamente às famílias brancas; e, por último, dois terços das famílias negras e latinas posicionam-se na metade inferior da distribuição de rendimento (64% para as primeiras e 71% para as segundas).

Em particular nos últimos anos, e com o fosso da desigualdade a ampliar-se, a questão tem vindo a ser crescentemente discutida, a nível global e também, em particular, nos próprios Estados Unidos. E não só porque é também tema integrante das campanhas para as presidenciais de Novembro, apesar das óbvias diferenças na forma como os candidatos, democratas e republicanos, a discutem.

Mas e para o artigo que escrevemos, a verdade é que existem, desde já há alguns anos, vários “grupos” de milionários que têm vindo a apelar para a questão concreta – e inacreditável – da injustiça existente na tributação de impostos. E muitos deles transformaram essa “quase vergonha” em organizações ou movimentos que visam, de alguma forma, minimizar a enorme disparidade, não só de rendimentos, mas também de oportunidades, entre ricos e pobres.

É o caso de Morris Pearl, ex director-geral da BlackRock Inc., uma das maiores firmas de gestão de activos do mundo que, em 2013, numa reunião com banqueiros no topo de um edifício em Atenas, olhou para baixo, para uma multidão que se manifestava na rua devido às angustiantes condições económicas e sociais que a Grécia já atravessava na altura e se questionou: “estaremos nós a fazer alguma coisa de bom para alguém que não sejam os banqueiros?”. No prazo de um ano, Pearl mudou a sua vida por completo (apesar de tal não consistir, obviamente, condição necessária para que os milionários se preocupem com os que pouco ou nada têm). Demitiu-se do seu cargo na Black Rock e juntou-se à Patriotic Millionaires, fundada em 2010 por Erica Payne, pelo antigo engenheiro da Google David desJardins e por um conhecido procurador da Califórnia, Guy Saperstein, depois de os três terem posto a circular uma carta entre vários amigos na qual apelavam a uma anulação de uma legislação que visava um corte substancial nos impostos para os super-ricos.

A organização da qual Pearl é agora presidente conta, actualmente, com mais de 200 americanos com rendimentos anuais superiores a um milhão de dólares e/ou activos de mais de 5 milhões – condições necessárias para dela fazerem parte – que acreditam que o nível de desigualdade económica não só é imoral, como perigoso. Este conjunto de pessoas, que afirma também que esta disparidade é fruto de várias décadas de esforços levados a cabo por elites endinheiradas que promulgam legislação concebida para aumentar a sua riqueza pessoal e favorecer o seu poder político, deu início a uma campanha de dois anos, que culminará exactamente na eleição presidencial de 2016, com três objectivos por excelência: aumentar o salário mínimo (com algumas vitórias já conseguidas em alguns estados e sectores), aumentar os impostos sobre as empresas e os mais ricos e combater a influência do “big money” na política.

O já citado projecto Responsible Wealth, que junta também uma rede de líderes empresariais, investidores e herdeiros pertencentes aos 5% mais ricos da sociedade americana, reconhece que as políticas económicas jogam a favor dos ricos, sentindo por isso a responsabilidade de se unirem a outros que, como eles, sentem um dever acrescido de alterar as políticas empresariais e governamentais de forma a estreitar o fosso das desigualdades. Como se pode ler no seu website, “enquanto indivíduos ricos e detentores de rendimentos elevados, os nossos membros têm voz – no Congresso, nos media e nas salas dos conselhos de administração – para falar de impostos progressivos e numa maior responsabilização corporativa”.

Uma “composição” similar tem a Wealth for the Common Good, também composta por líderes de negócios, indivíduos de rendimentos elevados e parceiros que trabalham em conjunto para promover uma prosperidade partilhada e uma tributação fiscal justa. “Somos ‘o 1%’ que pretende uma economia que funcione para todos”, afirmam no seu website, acrescentando ainda que entre os seus membros se incluem empreendedores, médicos, advogados, professores, engenheiros e dirigentes eleitos de variados backgrounds e provenientes de todo o país.

Estes são apenas alguns exemplos de “clubes de milionários” que, em vez de se limitarem a jogar golfe e a organizarem cerimónias de beneficência, estão realmente a tentar mudar algo nas políticas fiscais profundamente injustas que caracterizam os Estados Unidos. Todos nos lembramos da famosa declaração do multimilionário Warren Buffett, há muitos anos no top 3 dos homens mais ricos do mundo, quando fez saber que pagava menos impostos que a sua secretária. Mas apesar do absurdo da situação, nada parece ter mudado entretanto.

Os sindicatos dos trabalhadores reconhecem, contudo, estes milionários como seus aliados. “Eles realmente invertem a noção de que, de alguma forma, o facto de os mais ricos contribuírem com uma quota justa para o desenvolvimento do país é uma questão fracturante”, afirma Damon Silvers, um dos responsáveis da AFL-CIO (Federação Americana do Trabalho e Congresso das Organizações Industriais). Pena é que os ex-colegas de Morris Pearl – e decerto muitos dos seus pares endinheirados – que continuam na sua árdua tarefa de empilharem dinheiro em Wall Street, continuem a achar que ele tem “um problema mental”, como o próprio referiu à Bloomberg.


Palavras que poderiam valer muitos milhões

31032016_PorFavor2A propósito do empreendedor e investidor Nick Hanauer, que vendeu a sua empresa de publicidade na Internet à Microsoft em 2007 por seis mil milhões de dólares, sendo também um reconhecido e polémico activista (o VER escreveu sobre uma TED talk sua que deu muito que falar) e que também ficou conhecido por endereçar uma carta famosa aos seus amigos “zilionários”, alertando para a urgência de se “consertar” a desigualdade, a revista Fortune recolheu o testemunho de alguns multimilionários, na sua maioria bem conhecidos do público, que explicam de que forma a desigualdade de rendimentos irá (?) afectar a América. O VER resume algumas das suas principais ideias que, se fossem devidamente tomadas em linha de conta, poderiam ajudar a uma mudança efectiva.

Lloyd Blankfein, presidente do conselho de administração e CEO do Goldman Sachs, com uma fortuna líquida estimada em 1,1 mil milhões de dólares

“Demasiada ‘quantidade’ do PIB ao longo da última geração foi canalizada para um número extremamente reduzido de pessoas. (…) [A desigualdade de rendimentos] é responsável pelas divisões existentes no país. E estas divisões podem-se ampliar. Se não é possível legislar, não é possível lidar com os problemas. Se não é possível lidar com os problemas, não é possível estimular o crescimento e o sucesso do país. É uma questão muito importante e algo tem de ser feito para se lidar com ela”.

Warren Buffett, presidente do conselho de administração e CEO da Berkshire Hathaway, com uma fortuna líquida estimada em 64,1 mil milhões de dólares

“À medida que a economia se torna mais especializada… e como consequência natural, uma grande parte da riqueza voa para o topo. E, como é lógico, são esperados resultados desiguais numa economia de mercado substancialmente desigual. (…). Mas a verdade é que não se deveria ter uma economia com um PIB per capita de 50 mil dólares e existirem tantas pessoas a viver na pobreza e que querem trabalhar. Ou seja, isso não faz sentido e precisamos de políticas governamentais que corrijam este erro”.

Bill Gates, co-fundador, antigo presidente do conselho de administrador e ex-CEO da Microsoft, actual co-presidente da Gates Foundation, com uma fortuna líquida estimada em 84,7 mil milhões de dólares

“Elevados níveis d desigualdade são um problema – provocando o caos nos incentivos económicos, fazendo ‘inclinar’ as democracias em prol dos interesses poderosos, e destruindo a ideia que todas as pessoas são criadas de forma igual. (…) O capitalismo não conduz, por si mesmo, a uma maior igualdade – ou seja, um excesso de concentração de riqueza pode ter um efeito de bola de neve se não for travado”.

Charles Koch, presidente do conselho de administração e CEO das Koch Industries, com uma fortuna líquida estimada em 44,1 mil milhões de dólares

“Vivemos numa sociedade a duas velocidades – uma sociedade que está a destruir oportunidades para os desfavorecidos e a criar prosperidade para os ricos. (…). Políticas desadequadas estão a criar uma subclasse permanente, a paralisar a nossa economia e a corromper a nossa comunidade empresarial”.


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