Passados mais de 150 anos da publicação do primeiro caderninho sobre o estado da política, das letras e dos costumes em Portugal, e não fosse a identificação dos seus autores, talvez o leitor mais desprevenido julgasse que tivesse sido escrita hoje. O desalento de Eça e Ramalho e as desconcertantes semelhanças com o Portugal de hoje atravessavam todos os domínios da vida social, menos um – a Educação.
POR ÂNGELA MALHEIRO
No primeiro fascículo d’As Farpas (1871), Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão lamentam-se de Portugal ter perdido a inteligência e a consciência moral – “Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que seja desmentido. (…) Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. (…) Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de alto a baixo! (…) Diz-se por toda a parte: o país está perdido!”
Passados mais de 150 anos da publicação do primeiro caderninho sobre o estado da política, das letras e dos costumes em Portugal, e não fosse a identificação dos seus autores, talvez o leitor mais desprevenido julgasse que tivesse sido escrita hoje. O desalento de Eça e Ramalho e as desconcertantes semelhanças com o Portugal de hoje atravessavam todos os domínios da vida social, menos um – a Educação.
Em 1878, 79,4% dos portugueses maiores de seis anos residindo ‘no continente do Reino’ não sabiam ler, circunstância que condicionava em larga escala a participação ativa e esclarecida dos cidadãos na vida pública. Hoje, a Educação tem um destaque e relevância na formação do indivíduo, e da Escola espera-se que seja o garante de uma educação integral, palco de múltiplas aprendizagens, nomeadamente na formação de cidadãos ativos, esclarecidos, mobilizados e mobilizadores do bem-comum.
Quem dera a Eça e a Ramalho assistir de perto como a Escola de hoje é capaz de contrariar esses “caracteres corrompidos” e, através da Educação para a Cidadania, promover uma cultura de integridade através de um programa de literacia anticorrupção.
Criado no ano letivo 2021/2022 pela associação apartidária All4Integrity, o programa RedEscolas AntiCorrupção – escolas que nos inspiram uma cultura de integridade tem por objetivo promover junto dos jovens em idade escolar (do 7º ao 12º ano) o sentido de espaço público e bem-comum, mas também a confiança e empatia por instituições locais, num processo de elevação de consciências e alteração de comportamentos que favoreçam a disseminação e aprofundamento de uma cultura de integridade em Portugal. Acreditamos que quanto mais consistente e robusta for a formação do público escolar nos diversos temas em torno da corrupção (lobbying, conflito de interesses, tráfico de influências, suborno, etc.), progressivamente, maior será a mobilização da sociedade face ao combate da principal causa do atraso no desenvolvimento e da prevalência de desigualdade económica e social em Portugal.
Aqui chegados, as perguntas que se impõem: como se desenvolve uma cultura de rejeição da corrupção entre os mais jovens? Como se consegue mobilizar a Escola, qualquer que ela seja – pública, privada, do ensino regular, do ensino profissional ou até internacional? Como se envolve a comunidade educativa na promoção de uma cultura de integridade?
Em primeiro lugar, o roteiro pedagógico do programa RedEscolas AntiCorrupção afasta da sala de aula o discurso fatalista e inflamado do tema e centrado em casos mediáticos, porque os jovens precisam e procuram esperança no nosso país, precisam e procuram um futuro no qual nós próprios, educadores, acreditamos pela positiva. Em segundo lugar, procura potenciar a realidade de cada comunidade educativa e a riqueza de conhecimentos e aprendizagens desenvolvidos por cada disciplina, numa lógica de flexibilidade e interdisciplinaridade.
O programa RedEscolas AntiCorrupção está alicerçado em cinco pilares educativos. O primeiro de toda passa por expor os nossos alunos à (i) linguagem específica em torno da temática da corrupção e, consequentemente, conhecer os seus (ii) principais agentes. Conhecer conceitos e atores promoverá uma maior (iii) consciencialização, através da avaliação das consequências diretas e indiretas das práticas de corrupção, como os custos económicos e sociais, as perdas, as desigualdades e as injustiças. Motivados para estudar a temática, os alunos são convidados a partir para (iv) a ação desenvolvendo práticas de cidadania individual e coletiva através de um contacto mais estreito com pessoas e instituições do poder local e central. Acreditamos que a médio/longo prazo este programa terá (v) impactos significativos quer a nível individual, com a alteração do comportamento; nas Escolas, com a adoção de novos currículos ou abordagens pedagógicas sobre o tema; na Comunidade, com o desenvolvimento de uma cultura de integridade.
Chegados aqui, talvez o leitor considere que haja um quê de utopia e inutilidade em tudo isto… Não, enganem-se os ‘Velhos do Restelo’ deste país! E os números são bem prova disso. Em apenas uma edição, o programa RedEscolas AntiCorrupção viu triplicar o número de escolas participantes tendo chegado no ano letivo que agora terminou a 50 Escolas (públicas, privadas, artísticas, profissionais), a 4100 alunos, a 100 professores e a 3 continentes, culminando numa Cerimónia Final que este ano teve lugar nos Paços do Concelho, em Lisboa.
A Escola de hoje tem, mais do que nunca, de estar atenta aos problemas da sociedade, preparando os nossos jovens em primeiro lugar, mas também, a comunidade educativa, para uma convivência plural, inclusiva e democrática.
A caminho da 3ª edição do programa RedEscolas AntiCorrupção não baixemos os braços! Mobilizemos as nossas escolas para a promoção de uma cultura de integridade a partir da participação no programa RedEscolas AntiCorrupção, cuja adesão/inscrição decorrerá entre 11 de setembro e 27 de outubro aqui.
A mudança começa aqui, agora e a partir de cada um de nós!
“Espero que todos aqueles que têm o mesmo respeito pelo sentido profundo da solidariedade humana encontrem nas palavras em que acreditam a inspiração para colaborarem efetivamente na construção de um [país] melhor(…)”
(José Mattoso, Levantar o Céu. Os Labirintos da Sabedoria.)
Ângela Malheiro
Vice-Presidente da Associação All4Integrity;Co-autora do programa RedEscolas AntiCorrupção;Professora no Colégio do Sagrado Coração de Maria – Lisboa; Doutoranda de História Contemporânea FCSH da Universidade Nova de Lisboa