Saber que o 1% mais rico do mundo tem mais riqueza do que 95% da população mundial, que mais de um terço das 50 maiores empresas do planeta – avaliadas em 13,3 biliões de dólares – são geridas por um multimilionário ou têm-no como principal accionista e que os países do hemisfério sul contam com apenas 31% da riqueza global, ao mesmo tempo que albergam 79% da população global é mais do que suficiente para ficarmos chocados e nos questionarmos sobre como tal é possível
POR HELENA OLIVEIRA

No âmbito da 79ª Assembleia Geral das Nações Unidas, que decorreu em Nova Iorque até à passada segunda-feira, a OXFAM apresentou, como habitualmente, mais um relatório com números inacreditáveis no que respeita à desigualdade global.

Há muito que a Oxfam tem vindo a alertar para esta perturbadora discrepância e os números continuam, de forma crescente, a espelhar a desigualdade que grassa no mundo e que não tem forma de vir a ser reduzida, mas antes acentuada.

Intitulado “Multilateralismo numa Era de Oligarquia Global: de que forma a desigualdade extrema mina a Cooperação Internacional”, a Oxfam adverte que os esforços multilaterais para responder a desafios globais críticos, incluindo a crise climática e a persistência da pobreza e da desigualdade, estão a ser minados pelos ultra-ricos e pelas mega-corporações que alimentam a desigualdade no interior dos países e entre eles.

O documento descreve um “movimento em direcção a uma oligarquia global”, em que os ultra-ricos, muitas vezes através das suas empresas cada vez mais monopolistas, moldam a tomada de decisões e as regras políticas globais para enriquecerem, ao mesmo tempo que impedem o progresso global vital.

De acordo com o relatório, o 1% do topo empresarial detém 43% de todos os activos financeiros globais. E, por exemplo, apenas duas empresas controlam 40 por cento do mercado global de sementes, com os “três grandes” gestores de activos sediados nos EUA – BlackRock, State Street e Vanguard – a deterem20 biliões de dólares em activos, cerca de um quinto de todos os activos investíveis no mundo.

“Apesar de ouvirmos frequentemente falar de rivalidades entre grandes potências que minam o multilateralismo, é evidente que a desigualdade extrema está a desempenhar um papel importante. Nos últimos anos, as empresas ultra-ricas e poderosas utilizaram a sua vasta influência para minar os esforços de resolução de grandes problemas globais, como o combate à evasão fiscal, a disponibilização de vacinas contra a Covid-19 a todo o mundo e o cancelamento das dívidas soberanas”, afirmou, em comunicado de imprensa, Amitabh Behar, Diretor Executivo da Oxfam International.

No relatório pode igualmente ler-se que a imensa concentração de riqueza, impulsionada significativamente pelo aumento do poder monopolista das empresas, permitiu que as grandes empresas e os ultra-ricos que exercem controlo sobre elas utilizassem os seus vastos recursos para moldar as regras globais a seu favor, muitas vezes à custa de todos os outros. Este nexo entre a extrema desigualdade de riqueza, o poder das empresas e a influência política conduz a um movimento em direcção à oligarquia global, em que os indivíduos ultra-ricos – muitas vezes apoiados pelos países igualmente mais ricos – exercem uma influência desproporcionada sobre as decisões políticas.

As empresas poderosas e os indivíduos ultra-ricos têm frequentemente interesse em manter este status quo, impedindo os esforços internacionais para forjar soluções multilaterais equitativas para problemas globais cruciais, incluindo os esforços relacionados com a cooperação fiscal, a resposta a pandemias e a dívida soberana. Mas iniciativas recentes, em grande parte lideradas por países do Sul Global, podem inverter o movimento em direção à oligarquia global, substituindo a divisão pela solidariedade, assim haja (muita) vontade. Como afirma a Oxfam, todos os países têm interesse em eliminar as concentrações extremas de riqueza que conduzem à desigualdade política. Uma ordem multilateral mais justa – em que os ricos paguem a sua quota-parte, a saúde pública tenha prioridade sobre o lucro e os países possam investir nos direitos humanos – acaba por beneficiar todos.

Todavia e como temos vindo a testemunhar ano após ano, esta ordem multilateral mais justa está cada vez mais longe de ser alcançada.

Como justifica a Oxfam, a fracção superior do um por cento mais rico, em particular, obteve uma parte cada vez maior da riqueza e, com ela, um poder político descomunal. De acordo com o economista Gabriel Zucman, citado no relatório, a riqueza tem-se tornado cada vez mais concentrada desde a década de 1980, à medida que as fortunas dos bilionários têm vindo a crescer mais rapidamente do que a economia global como um todo.

Em 1987, os 0,0001% de famílias mais ricas detinham uma riqueza combinada equivalente a 3% do PIB mundial. As fortunas destas cerca de 3 mil famílias ultra-ricas – avaliadas coletivamente em 14 biliões de dólares – ascendem agora a 13% do PIB mundial, um aumento superior a quatro vezes.

Ao mesmo tempo, grande parte do mundo continua atolada numa pobreza extrema. Em 2023, cerca de 46% da população mundial – mais de três mil milhões de pessoas – viviam abaixo do limiar de pobreza global (6,85 dólares por dia).

Ainda de acordo com o relatório, a imensa concentração de riqueza está profundamente ligada a um poder empresarial cada vez mais concentrado. Um número cada vez mais reduzido de empresas domina actualmente os principais mercados-chave em todo o mundo, incluindo os produtos farmacêuticos, a agricultura e a tecnologia. Sessenta empresas farmacêuticas fundiram-se em apenas dez grandes corporações entre 1995 e 2015, duas empresas controlam 40% do mercado global de sementes e quase 75% dos dólares globais de publicidade digital a nível mundial vão para apenas três empresas tecnológicas.

O poder concentrado das empresas conduz a lucros enormes. Por exemplo, nos EUA entre 2019 e 2022, entre as empresas públicas não financeiras, o topo dos 10% de empresas obtiveram 95% dos lucros após impostos. A nível mundial, entre 1975 e 2019 e como já acima enunciado, a percentagem de lucros das empresas multinacionais nos lucros globais mais do que quadruplicou de 4% para 18%.

A imensa concentração de riqueza e o poder das empresas não são resultados naturais de um “mercado livre”, mas são, em grande medida, consequências do planeamento económico feito por e para os ultra-ricos. A ligação entre a concentração de riqueza e a concentração de poder das empresas contribui para que a desigualdade de riqueza se transforme em desigualdade política.

Os ultra-ricos e as poderosas empresas que controlam podem utilizar os seus vastos recursos para pressionar os governos – nomeadamente através de lobbies, donativos políticos, contestações legais, influência nos meios de comunicação social e ameaças de retenção de investimentos – a adoptar políticas neoliberais, incluindo impostos mais baixos para si próprios, protecções laborais enfraquecidas e serviços públicos privatizados.

A desigualdade extrema é, consequentemente, tanto uma causa como um efeito de um movimento em direção à oligarquia global, definida pelo relatório, em termos gerais, como a capacidade dos ultra-ricos para moldar a tomada de decisões políticas de forma a aumentar a sua riqueza. O poder oligárquico deriva, em última análise, da riqueza e, por isso, a sua concentração é um pré-requisito para o seu exercício.

Este poder é direcionado para a defesa dessa riqueza, perpetuando a desigualdade que o permite. Entendido desta forma, o movimento em direção à oligarquia não é um problema confinado a um punhado de Estados. As democracias são afectadas, uma vez que os ultra-ricos – muitas vezes através dos poderosos interesses corporativos que agem em seu nome – podem ajudar à elaboração de políticas a seu favor à custa da maioria. O movimento em direção à oligarquia também não está confinado às fronteiras nacionais. É global, com impacto na tomada de decisões políticas dentro dos países e a nível internacional.

Algumas soluções propostas para evitar a ascensão da oligarquia global

O Quadro Inclusivo da OCDE/G20 sobre a erosão da base tributável e a Oxfam descrevem em pormenor três exemplos recentes de desigualdade extrema que estão a minar os esforços multilaterais, com a sociedade civil e os líderes do Sul Global a proporem soluções para acabar com a desigualdade:

  • O Quadro Inclusivo da OCDE/G20 sobre a Erosão da Base Tributária e da Transferência de Lucros ficou aquém do seu potencial, com novas regras para a afectação de lucros que apenas proporcionarão pequenas receitas adicionais aos países de baixo rendimento, que não ultrapassam 0,026% do seu PIB. A exclusão dos serviços financeiros das regras da OCDE é uma excepção atribuída aos grupos de pressão dos países com grandes sectores bancários e financeiros. Os países do Sul Global, liderados por países africanos, estão a avançar com negociações para uma convenção fiscal mais justa na ONU que, juntamente com a liderança do Brasil no G20, poderá oferecer um caminho para tributar de forma justa os super-ricos e as mega-corporações.
  • As grandes farmacêuticas resistem aos esforços para quebrar os seus monopólios sobre as tecnologias das vacinas contra a Covid-19 para desbloquear a oferta. O controlo monopolista da produção de vacinas foi altamente lucrativo durante a pandemia. Só em 2021, os sete maiores fabricantes geraram um lucro líquido estimado em 50 mil milhões de dólares com a venda de vacinas contra a COVID-19, o que resultou em enormes pagamentos a accionistas ricos e no aparecimento de novos bilionários das vacinas. O CEO da Pfizer, Albert Bourla, descreveu o apelo à partilha das tecnologias das vacinas contra a COVID-19 como “um disparate perigoso”. A falta de partilha equitativa das vacinas contribuiu para 1,3 milhões de mortes em excesso em todo o mundo. Um novo tratado sobre a pandemia, com disposições fortes para suspender as patentes e permitir transferências de tecnologia mais fáceis, é promissor.
  • Os credores privados estão a agravar a crise global da dívida. Os países de baixo rendimento gastam quase 40% dos seus orçamentos anuais “ao serviço” da dívida, mais de 60% do que gastam na educação, na saúde e na protecção social em conjunto. Mais de metade da dívida externa dos países de baixo e médio rendimento é devida a credores privados, como bancos e fundos de cobertura (hedge funds). Alguns destes credores são “fundos abutres”, que compram dívida em dificuldades a baixo preço e exploram mecanismos legais para serem reembolsados na totalidade, colhendo lucros desproporcionais.

Em suma, as iniciativas multilaterais em curso em matéria de impostos, saúde pública global e dívida soberana são três áreas que oferecem à comunidade internacional a oportunidade de reduzir a desigualdade económica extrema e trabalhar em prol de economias e sociedades mais justas. Mas o sucesso exigirá que todos os países – tanto do Norte como do Sul Global – compreendam que têm um interesse comum em combater as concentrações extremas de riqueza que distorcem os processos multilaterais de forma a beneficiar desproporcionadamente os mais ricos. A solidariedade pode inverter o movimento em ascensão da oligarquia global. Mas onde está ela?

FONTE: MULTILATERALISM IN AN ERA OF GLOBAL OLIGARCHY: How Extreme Inequality Undermines International Cooperation

Imagem: © Dulana Kodithuwakku/Unsplash.com

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