Tal como aconteceu na altura em que as primeiras vacinas contra a Covid-19 foram disponibilizadas e os países ricos compraram mais doses do que alguma vez poderiam usar, enquanto o resto do mundo esperava pela sua vez, a história repete-se. Com as notícias de que serão necessárias novas doses de reforço para lidar com as variantes do vírus ou com a ideia de que a protecção prometida tem uma duração limitada, assistimos a mais um déjà vu, acompanhado de um business as usual vergonhoso: são as grandes farmacêuticas que estão a ditar o fabrico, a distribuição e o custo – crescente – das vacinas, decidindo quem vive e quem morre, com uma ausência total de solidariedade e esquecendo-se (?) que muitas delas foram desenvolvidas com dinheiros públicos
POR HELENA OLIVEIRA

Acreditamos no poder das parcerias para promover a equidade sanitária, tornando as vacinas mais acessíveis e o seu fornecimento mais sustentável”

Albert Sabin (1906-1993), investigador e inventor da vacina oral contra a poliomielite que eliminou em grande escala a também denominada “paralisia infantil” em quase todo o mundo

Albert Sabin recusou-se a patentear a sua vacina contra a poliomielite, renunciando à sua exploração comercial pelas indústrias farmacêuticas, de modo a que o baixo preço garantisse uma difusão mais extensa do tratamento. Com o desenvolvimento da sua vacina, Sabin não ganhou um cêntimo e continuou a viver do seu salário de professor. O mesmo fez o seu antecessor, Jonas Salk, que desenvolveu nos anos de 1950 a primeira vacina contra esta mesma doença e que ao lhe perguntarem de quem era a patente da mesma, respondeu: “Julgo que é das pessoas. Acha possível patentear o sol?”

Várias décadas depois, não é propriamente com solidariedade que os novos multimilionários da indústria farmacêutica, e graças ao desenvolvimento das vacinas contra a pandemia, vêem o lucrativo mercado para lutarem contra o vírus que já entrou para a história do século XXI.

Apesar de os números variarem nas várias fontes consultadas, as empresas farmacêuticas Pfizer, BioNTech e Moderna estão à espera de ganhar milhares de milhões de dólares com o reforço das vacinas Covid-19 este Outono, com os analistas a estimar que as vendas podem mais do que rivalizar com o gigantesco mercado de 6 mil milhões de dólares por ano de vacinas contra a gripe sazonal.

A Moderna, a Pfizer e a sua parceira alemã BioNTech já meteram nos bolsos mais de 72 mil milhões de dólares em vendas só este ano, fruto dos negócios de fornecimento de vacinas de seguimento (reforço) e também das duas doses iniciais para aqueles que estão a ser inoculados pela primeira vez em países de menor desenvolvimento. A BioNTech espera obter receitas de quase 16 mil milhões de euros este ano, já que o seu lucro líquido do primeiro semestre de 2021 saltou de 142 milhões de euros obtidos no mesmo período do ano passado para quase 4 mil milhões de euros. O valor de mercado da BioNTech, listada na Bolsa de Valores Nasdaq – e que era apenas uma pequena empresa alemã de desenvolvimento de medicamentos antes da pandemia – subiu para 92 mil milhões de dólares [dados de Agosto de 2021], catapultando-a para o top 10 das empresas alemãs mais valiosas, enquanto a Moderna, sediada em Massachusetts, obteve o seu primeiro lucro de sempre com a vacina que desenvolveu.

Adicionalmente, tanto a Pfizer como a Moderna têm vindo a aumentar os preços das suas vacinas Covid-19 após dados de ensaios clínicos terem demonstrado que a sua fórmula de mRNA era mais eficaz do que as vacinas mais baratas da AstraZeneca britânica e da fabricante americana de medicamentos Johnson & Johnson, as quais se comprometeram a fornecer as suas doses numa base sem fins lucrativos até ao fim da pandemia.

Voltando à Pfizer e à Moderna, ambas as empresas concordaram em fornecer até 1,8 mil milhões de doses à UE entre Dezembro de 2021 e 2023, para além das 600 milhões de doses anteriormente encomendadas este ano. O governo dos EUA encomendou 700 milhões de vacinas até Abril do próximo ano para os seus cidadãos, juntando à encomenda mais 500 milhões para doações às nações mais pobres. De sublinhar que estes números mudam regularmente à medida que a pandemia vai traçando o seu percurso e novos acordos se vão renegociando.

E por falar em nações mais pobres e em “renegociação”, mas de promessas, no discurso sobre o Estado da União proferido nesta última quarta-feira, a presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen apelou a que “façamos tudo o que estiver ao nosso alcance para garantir que esta não se transforme numa pandemia dos não vacinados”, depois de ter declarado que “com menos de 1% das doses globais administradas em países de baixos rendimentos, a escala da injustiça e o nível de urgência são óbvios”. Pois são e sem dúvida.

Mas apesar das novas promessas anunciadas pela “Equipa Europa” – que, segundo a presidente da Comissão passam por um investimento de mil milhões de euros para aumentar a capacidade de produção de mARN em África e pelo compromisso de disponibilizar a este continente 250 milhões de doses, com uma nova doação de 200 milhões de doses adicionais em meados de 2022 e “tratando-se de um investimento na solidariedade, mas também na saúde mundial” – a sério, senhora Presidente? – a verdade é que com o novo reforço ou a 3ª dose da vacina que já esta a ser açambarcada por um conjunto alargado de países, qualquer que seja o compromisso enunciado, não existe certeza alguma no que respeita à sua execução.

De acordo com uma análise recentemente publicada por um conjunto internacional de cientistas – alguns deles a trabalhar na Organização Mundial de Saúde (OMS) e na agência reguladora do medicamento nos EUA (FDA) – e que inclui a revisão dos dados científicos sobre a administração da terceira dose da vacina para todos, a conclusão é a de que, e mesmo com a rápida transmissão da variante Delta, as doses de reforço nesta fase da pandemia não são, salvo algumas excepções, adequadas para a população em geral. Os investigadores afirmaram igualmente que o fornecimento limitado de vacinas poderá salvar mais vidas se utilizado em pessoas que ainda não receberam nenhuma dose das mesmas, observando que “mesmo que se possa obter algum ganho com o reforço, este não superará os benefícios” da protecção dos não vacinados.

O objectivo de vacinar o mundo inteiro está a ficar cada vez mais distante

Se é verdade que muitos países em causa estão neste momento a apostar neste reforço apenas para pessoas com o sistema imunitário fragilizado – como é o caso de Portugal – também se verifica o mesmo açambarcamento já referido, nomeadamente por países ricos e, em muitos casos, contando com a generalidade da sua população.

Ou seja, e com tudo isto, o objectivo de vacinar o mundo inteiro está a ficar ainda mais distante – como se essa distância já não fosse o suficiente – e os países ricos estão de novo a passar à frente da fila para darem vacinas de reforço aos seus residentes. Por seu turno, as empresas farmacêuticas estão preparadas para que o vírus se torne uma situação endémica em vez de acabar e com a variante Delta a espalhar-se entre os não vacinados, a par de algumas variantes susceptíveis de surgir, este ciclo vicioso de escassez continuará nos próximos anos. A menos que os governos ricos mostrem alguma dignidade e alterem as suas políticas em relação à indústria farmacêutica e, já agora, no que se refere à tal solidariedade proferida pela presidente da Comissão, quando a primeira coisa que se soube quando se verificou que estávamos perante uma pandemia global foi a óbvia percepção que se o esforço de vacinação não fosse igualmente global, a mesma nunca iria ter um fim.

Todavia, as prioridades da indústria farmacêutica são claras. De acordo com o Financial Times, a Pfizer e a Moderna aumentaram recentemente o preço das suas vacinas nos últimos contratos de fornecimento que assinaram com a Europa e estão habilitadas para o fazer porque têm um monopólio, monopólio esse que a UE, o Reino Unido, e outros países estão dispostos a defender na Organização Mundial do Comércio, mesmo que isso lhes custe mais e prejudique milhares de milhões de pessoas em todo o mundo que ainda não tiveram acesso sequer a uma vacina.

Países de alto e médio rendimento absorveram mais de 80% do total das vacinas administradas

Os especialistas globais em saúde estão a tentar incitar os líderes a intervir mas, sozinhos, estes não têm o poder suficiente para que esta mudança aconteça. No seguimento do que já tinha acontecido em Agosto último, a Organização Mundial de Saúde apelou, este mês, e em particular aos países com taxas elevadas de vacinação, o prolongamento da moratória global das doses de reforço, pelo menos até ao final do ano, para permitir vacinar as pessoas de maior risco que ainda não receberam a primeira dose.

Mas isto é simplesmente um pedido e não um mandato, e a verdade é que já passou tempo suficiente para os países ricos usarem o seu poder considerável para pôr fim a esta pandemia, nem que seja, e mais uma vez, para seu próprio benefício, integrando no mesmo a necessária ajuda aos países pobres. “Por agora não queremos ver desperdício de vacinas de reforço para pessoas saudáveis totalmente vacinadas”, alertou o responsável da OMS, ao avançar que os países de alto e médio rendimento absorveram mais de 80% do total dos cerca de 5,7 mil milhões de doses administradas em todo o mundo”.

Vale ainda a pena sublinhar que a iniciativa global de partilha de vacinas COVAX, governada conjuntamente pela OMS, pela GAVI e pela Coligação para Inovações de Preparação para Epidemias, deveria liderar o caminho para garantir que as nações mais pobres tivessem acesso às vacinas. Mas a verdade é que não foi capaz de aceder a centenas de milhões de vacinas propostas no seu objectivo inicial, apesar das várias lutas para o conquistar e no meio de questões de financiamento, dificuldades de acesso às doses combinadas, a par da relutância dos países ricos em partilhar o fornecimento das mesmas.

Num paper publicado em finais de Julho e sob o título “O grande roubo de vacinas: as empresas farmacêuticas cobram preços excessivos pelas vacinas COVID-19 enquanto os países ricos bloqueiam o caminho mais rápido e mais barato para a vacinação global”, a The People’s Vaccine Alliance mostra dados que provocam vergonha alheia sobre a situação actual da vacinação global.

Por exemplo, e segundo declarações desta mesma organização, os monopólios de vacinas tornam o custo de vacinar o mundo contra a COVID pelo menos cinco vezes mais caro do que este poderia/deveria ser.

A análise das técnicas de produção das principais vacinas do tipo mRNA produzidas pela Pfizer/BioNTech e Moderna – que só foram desenvolvidas graças ao financiamento público no valor de 8,3 mil milhões de dólares – sugere que estas vacinas poderiam ser produzidas por apenas 1,20 dólares por dose. Contudo, a iniciativa COVAX, criada para ajudar os países pobres a ter acesso às vacinas COVID, tem pago, em média, quase cinco vezes mais. Tal como já enunciado, a COVAX também tem lutado, sem sucesso, para obter doses suficientes e à velocidade necessária, devido à oferta inadequada e ao facto de as nações ricas se terem posicionado na linha da frente, pagando voluntariamente preços excessivos.

Sem monopólios farmacêuticos que restringem a oferta e aumentam os preços das vacinas contra a Covid-19, a The People’s Vaccine Alliance afirma que o dinheiro gasto pela COVAX até à data poderia ter sido suficiente para vacinar a totalidade das pessoas em países de baixo e médio rendimento com vacinas a preço de custo e se houvesse um fornecimento regular. Em vez disso, e na melhor das hipóteses, as estimativas apontam para que a COVAX vacine até 23% os países em causa até ao final de 2021.

A Aliança de quase 70 organizações, incluindo a Aliança Africana, a Oxfam e a UNAIDS, afirma igualmente que o fracasso de alguns países ricos em apoiar a remoção de monopólios e em fazer baixar estes preços excessivos contribuiu directamente para a escassez de vacinas nas nações mais pobres.

Para Anna Marriott, Gestora da Política de Saúde da Oxfam, as empresas farmacêuticas estão a fazer o mundo refém da sua sede de lucro numa altura de crise global sem precedentes, sendo este talvez um dos casos mais letais de especulação na história. Acusadoras são também as palavras de Max Lawson, Presidente da People’s Vaccine Alliance e responsável pela Política de Desigualdade na Oxfam, que declara que “desde o início da pandemia, assistimos às grandes farmacêuticas a colocarem o lucro à frente do interesse público, com os países pobres fechados a negócios criados pela indústria e pelos governos ricos. Os países em desenvolvimento não podem contar com a caridade das nações ricas ou com corporações farmacêuticas para salvar as vidas das suas populações”.

O responsável da Oxfam firmou ainda que os países ricos deveriam redistribuir imediatamente as suas doses excedentárias, mas que esta não deverá ser a única opção para os países pobres que, em alguns casos, têm recebido donativos de vacinas que já passaram de prazo. A única solução sustentável, “é permitir que os fabricantes dos países em desenvolvimento produzam as suas próprias vacinas, partilhando tecnologia e know-how e renunciando aos direitos de propriedade intelectual detidos pelas grandes farmacêuticas. Em todos os países em desenvolvimento, as fábricas estão prontas”, assegura.

O paper da The People’s Vaccine Alliance avança ainda com mais dados ilustradores de uma realidade muito feia. Antes da pandemia, os países em desenvolvimentos pagavam um preço médio de 0,80 dólares por dose por todas as vacinas não-COVID, de acordo com um análise da Organização Mundial de Saúde (OMS). Embora todas as vacinas sejam diferentes e as novas vacinas possam não ser directamente comparáveis, mesmo uma das vacinas mais baratas contra a Covid-19 no mercado, a Oxford/AstraZeneca, custa quase quatro vezes este preço, a vacina Johnson & Johnson ascende a 13 vezes mais e as vacinas mais caras, como a Pfizer/ BioNTech, a Moderna e a Sinopharm produzida na China, são cerca de 50 vezes mais dispendiosas.

Assim, defendem, é vital que os fabricantes de vacinas sejam obrigados a justificar por que é que as suas vacinas custam mais, e sem esquecer que a livre concorrência é também fundamental para baixar os preços e aumentar a oferta. Ou seja, todas as vacinas, antigas e novas, só descerão de preço caso existam múltiplos concorrentes no mercado.

Nunca na história os governos compraram um número tão elevado de doses de vacinas para uma só doença e é sabido que a produção em grande escala deveria baixar os custos, permitindo a cobrança de preços mais baixos. No entanto e segundo a Alliance, a UE terá pago preços ainda mais elevados pela sua segunda encomenda à Pfizer/BioNTech e estima-se que a escalada dramática dos preços continue na ausência de acções governamentais e com a possibilidade de serem necessárias mais vacinas para os próximos anos. O CEO da Pfizer sugeriu preços futuros potenciais que poderão rondar os $175 por dose -148 vezes mais do que o custo potencial de produção.

E porque as empresas farmacêuticas antecipam já cobrar estes preços tão elevados para as doses de reforço, continuarão a vendê-las aos países ricos à custa de proteger vidas a nível global. O que não é nem solidário nem sequer inteligente.

Editora Executiva