POR HELENA OLIVEIRA
Reza a história que nos finais de 1934, o magnata Edgar Kaufmann convidou [o arquitecto] Frank Lloyd Wright para desenhar uma casa de fim-de-semana numa floresta a cerca de uma hora de Pittsburgh. Tal representaria uma dádiva para Wright, cuja reputação tinha esmorecido, as suas comissões tinham ‘secado’ no seguimento da Grande Depressão e a sua casa e estúdio encontravam-se ameaçados de execução hipotecária. O arquitecto visitou o local escolhido por Kaufmann, pediu tempo para uma pesquisa e não se deu ao trabalho de fazer mais nada.
Nove meses mais tarde e inesperadamente, Kaufmann visitou o estúdio de Wright para ver o desenho da sua nova casa, a qual, como lhe tinham dito, estava a progredir de forma belíssima. Alegadamente pela primeira vez, Wright pegou num papel e num lápis. Duas horas depois apresentou a Kaufmann um plano para aquela que viria a ser a famosa Casa da Cascata, uma reconhecida obra-prima da arquitectura.
“A única forma de explicar os nove meses em que Wright nada fez é através da lógica perversa da procrastinação”, escreve Andrew Santella, autor do livro recentemente lançado Soon: An Overdue History of Procrastination, from Leonardo and Darwin to You and Me.
O livro de Santella sobre o hábito (quase) universal de procrastinar – fenómeno que muitos de nós conhece bem – não é um tratado científico, apesar de reunir um conjunto substancial de pesquisa nos domínios da filosofia, da psicologia, da teologia e da economia comportamental e de ser condimentado com histórias de alguns dos mais célebres procrastinadores da História, como é o caso de Leonardo da Vinci, Charles Darwin ou Victor Hugo. As diversas fases da História – procrastinadores sempre existiram – são também revisitadas por Santella, desde os profetas do Velho Testamento, à Roma Antiga, até aos generais da Guerra Civil americana e às várias tentativas de se dominar a procrastinação, as quais incluem a construção de torres-relógio no século XV para controlar os empregados em Itália, a gestão científica de Frederick Winslow Taylor, o “pai” da produtividade nos finais do século XIX e início do século XX, até culminar nos dias de hoje com os trabalhadores da “gig economy”.
Ou seja, para além de contar a história da procrastinação desde tempos imemoriais, Sooné, sobretudo, um livro sobre uma característica humana partilhada por muitos de nós e que põe em causa, como escreve o próprio autor, o “culto da devoção da eficiência” e sugere que o adiamento e diferimento de tarefas nos poderá ajudar a compreender o que é realmente importante para nós. “Estar atento às nossas procrastinações, significa perguntar se as coisas que o mundo quer que façamos são realmente as que merecem ser feitas”.
A psicologia de deixar para amanhã o que podemos fazer hoje
Possivelmente, a conclusão mais óbvia a que Santella chega é que a procrastinação pode estar enraizada na ansiedade. Ou seja, é melhor falhar quando sabemos que não demos o nosso melhor, do que dar o nosso melhor e falhar. O que à partida pode parecer um contra-senso, acaba por fazer algum sentido.
Num excerto do livro publicado pela revista Time, Santella partilha o que pode significar, em termos psicológicos, a procrastinação regular. “Adiei trabalhar numa tarefa para dar uma desculpa a mim próprio caso essa tarefa se revelasse uma porcaria. Não é que eu seja mau naquilo que faço. É só porque eu tenho tantas outras coisas para fazer, em casa e no trabalho, que não consegui dar o meu melhor”.
Para o autor, estas desculpas “self-serving” são tão comuns que até os psicólogos cunharam um nome para as mesmas, chamando-lhes desculpas de self-handicapping, ou seja, o que se traduz em pensarque as mesmas constituem uma estratégia intencional para sabotar os nossos próprios esforços. Mas e por que motivo haveria alguém de querer prejudicar-se a si mesmo ou assumir-se como contraproducente? De acordo com Santella, “porque erguer as nossas próprias barreiras face ao sucesso oferece-nos uma protecção para as consequências que esmagarão o nosso ego no caso de falharmos”.
A ideia é melhor explicada pelo autor numa entrevista: “é natural procrastinarmos porque também é natural sermos ambivalentes e ansiosos de vez em quando”, diz. “Quando eu procrastino é muitas vezes porque sou confrontado com um desafio que me mete medo, adiando por isso mesmo e o mais possível a minha acção”, acrescenta ainda.
Mais uma vez o que está em causa não é a incompetência, mas o esperar até ao último minuto para fazer determinada coisa e não dar o nosso melhor. Ou e como explicou ao autor o investigador Joe Ferrari, da DePaul University, “o procrastinador crónico prefere que os outros pensem que ele não se esforçou e não que não tem competências para o fazer”.
O conceito de “handicapping” – traduzido como “auto-protector” foi inicialmente definido pelos investigadores Stevan Berglas e Edward Jones, em 1978 e é definido da seguinte forma: “A estratégia auto-protectora é aquela que é utilizada pelos indivíduos quando antecipam um resultado baixo numa avaliação importante. Trata-se de uma tentativa dos indivíduos de, numa situação de avaliação, influenciarem a opinião que os outros têm das suas competências”. Mais tarde, em 2002, outros dois investigadores voltaram a defini-lo de uma forma que se aproxima mais face ao que Andrew Santella escreve sobre a psicologia da procrastinação: “Os indivíduos criam barreiras ao seu próprio sucesso colocando em perigo a sua realização. Desta forma se não atingirem os seus objectivos atribuem esse facto ao impedimento e não à falta de competência e se os atingirem, apesar do impedimento, receberão reconhecimento suplementar já que conseguiram ultrapassar o obstáculo”.
Adicionalmente e de uma forma paradoxal, os procrastinadores podem ser mais susceptíveis de se auto-protegerem quando as apostas são mais elevadas. Num estudo mais recente, os investigadores concluíram que os estudantes, na generalidade, tendem a adiar a realização de um teste quando lhes é dito que o mesmo avaliará significativamente as suas capacidades comparativamente a um outro que não conte para nota. Ou seja, e como escreve Santella, quando o teste contava para nota, os procrastinadores procrastinavam; quando não era o caso, preparavam-se devidamente”. Ou, quanto mais alta for a aposta, mais os procrastinadores precisam de se auto-proteger a si mesmos não se esforçando tanto.
O autor de Soonafirma ainda que, para algumas pessoas, procrastinar serve também como uma forma de controlar a vida, mesmo que em pequena escala, quando esta se afigura como caótica e difícil de gerir. E não interessa nada que a procrastinação só vá aumentar ainda mais o caos, pois e a seu ver, os grandes procrastinadores são igualmente mestres na arte de se iludirem a si mesmos.
São Expedito e os procrastinadores célebres
Como se escreve num artigo publicado no Wall Street Journal e confessando-se como um heróico procrastinador, Santella não pretende com este livro mostrar a “cura” para tal condição, mais a mais quando estamos atolados em manuais de auto-ajuda e apps diversas que “juram aumentar a nossa produtividade”, mesmo quando está provado que as tecnologias são uma excelente forma de estimular o adiamento de qualquer que seja a tarefa . E afirma também que a procrastinação não é inimiga da produção, antes pelo contrário. E é por isso que o livro é salpicado de histórias que mostram que procrastinar faz também parte da inovação e do processo criativo. Adicionalmente e no primeiro capítulo do livro, por exemplo, uma outra razão forte para explicar a procrastinação é, exactamente, o perfeccionismo.
Numa outra crítica ao livro realizada pela strategy+business e como escreve também Santella, a procrastinação tem sobrevivido a séculos e séculos de ataques por parte de instituições de controlo social, como as empresas ou a Igreja. E é aqui que cola bem a lenda do santo padroeiro das causas justas e urgentes que protege os procrastinadores desde pelo menos o século IV. Reza a lenda que, por esta época e na Arménia, vivia um centurião romano que se queria converter ao Cristianismo. Tentado por um demónio em forma de corvo que gritava cras! cras! (amanhã, em latim), o qual surgiu para adiar a sua conversão, o militar acabaria por pisar o corvo dizendo hodie! (hoje), demonstrando a sua disposição heróica para se converter de imediato à religião cristã. Santella afirma no livro que o Santo Expedito é o padroeiro dos procrastinadores e, com muito humor, até o coloca em contraponto ao já mencionado Frederick Winslow Taylor que, na sua ânsia de aumentar ao máximo a eficiência e eficácia operacional na gestão fabril tinha a alcunha de Speedy. Taylor é assim considerado como “o padroeiro maldito dos procrastinadores”
Entre estatísticas variadas retiradas da sua pesquisa, Santella afirma que pelo menos 20% de todos nós somos procrastinadores crónicos, que um terço dos licenciados nos Estados Unidos se assume como tal e que 100 minutos de cada dia de trabalho são “deitados fora” por causa da procrastinação.
Mas e como já enunciado, são as histórias de procrastinadores célebres pela sua genialidade que mais cor oferecem ao livro. Seja São Agostinho, Marco Aurélio, Hamlet (sim, mesmo só enquanto personagem ficcional na cabeça de Shakespeare), Mozart, Truman Capote, Franz Kafka, Bill Clinton, o Dalai Lama, Victor Hugo, Leonardo da Vinci ou Charles Darwin.
Sobre Darwin é relatada a história do seu longo e pormenorizado estudo sobre as cracas (um crustáceo particularmente conhecido nos Açores e cujo trabalho lhe valeu uma medalha da Royal Society em 1853), o qual foi realizado entre a sua viagem às Ilhas Galápagos e a publicação de “A Origem das Espécies”, tendo passado vinte anos entre estes dois eventos. Como escreve Santella, “depois de ter dado um dos passos mais inovadores na história intelectual, Darwin fez uma coisa estranha: deixou cair a ‘matéria’”, na medida em que “havia sempre mais uma experiência a fazer, um dado para verificar, uma pesquisa a realizar”. E mesmo quando o publicou, conta o autor, insistiu em apelidá-lo de “resumo”, como se estivesse a pedir desculpas antecipadas para o caso de alguém o considerar incompleto.
Já a tendência para procrastinar constantemente os trabalhos que se propunha fazer é sobejamente conhecida em Leonardo da Vinci, que exasperava os seus patronos ao adiar quase ad eternum as suas encomendas ao ponto de estes muitas vezes desistirem das mesmas ou de o ameaçarem com a falência caso não as terminasse. A título de exemplo, a famosa Mona Lisa levou 16 anos a estar concluída e mesmo hoje, muitas das suas peças, reconhecidas como obras-primas e admiradas em todo o mundo, não estão acabadas.
A terminar, a história de Victor Hugo (os escritores constituem uma das classes que mais acusada é de procrastinar), igualmente famoso por fazer tudo e mais alguma coisa em vez de se focar no seu trabalho. Para compensar, foi obrigado a inventar um método infalível que o obrigasse a escrever. Alegadamente, pedia ao seu criado que o despisse completamente, que escondesse as suas roupas e que o deixasse nu no seu estúdio até produzir algum trabalho. Só depois de uma determinada quantidade de trabalho realizado, pedia as roupas de volta.
Apesar de esta não ser, de todo, uma técnica a experimentar no local de trabalho, é bom saber que procrastinar não é apenas preguiçar. E estar atento ao motivos que nos fazem adiar determinado trabalho – por ser moroso, por ser difícil, por ser aborrecido – poderá ser uma chamada de atenção para algo que não está a correr bem na nossa vida profissional. Procrastinemos de vez em quando, mas não exageremos.
Editora Executiva