Absolutamente incompreensível para uns, fazendo todo o sentido para outros e ainda com uma dose elevada de pontos de interrogações para a maioria, o rendimento básico universal, ou incondicional, tem gerado debates acesos. Com o objectivo de ajudar os mais necessitados a libertarem-se das garras da pobreza e/ou de ser a resposta para o ajustamento que o mundo laboral terá de fazer face ao “roubo” de postos de trabalho no futuro próximo, a questão é tão moral quanto política ou económica. E são muitos os que defendem que é chegada a hora de a debater seriamente
POR
HELENA OLIVEIRA

Será que os governos deveriam garantir, a todo os seus cidadãos, uma “renda” anual ou mensal, sem “compromissos” incluídos e sem fazer perguntas sobre como estes gastariam este dinheiro?

Em princípio, esta ideia deveria ter mais defensores liberais do que conservadores, mas a verdade é que é cada vez maior o número de economistas e políticos, de todos os quadrantes, que defendem um rendimento básico incondicional (ou universal) para diminuir a pobreza e para fazer frente aos postos de trabalho que, de acordo com inúmeros analistas, irão desaparecer num futuro não muito longínquo (e que já é presente em alguns sectores).

Defendido por uns, completamente criticado por outros, a existência ou não deste tipo de “renda sem contrapartidas” não é uma ideia propriamente nova e tem vindo a ganhar contornos cada vez maiores ao longo dos últimos anos. Nos Estado Unidos, poderia tão-somente ser definida enquanto “segurança social para todos”, mas são vários os países, ou localidades, mais especificamente, na Europa, no Canadá e na América do Sul que têm vindo a experimentar a sua aplicação. A questão é ética, social, económica e política e os seus resultados tanto podem tender para quem defenda que os seus receptores se tornariam preguiçosos e improdutivos ou, ao invés, mais criativos, empreendedores e úteis. Por seu turno, o debate sobre os seus prós e contras, cada vez mais aceso, poderá traduzir-se na necessidade, advogada por muitos, de que é necessário alterar o contrato social entre os governos e os seus cidadãos. E, neste caso, são muito mais as vozes concordantes.

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Uma fórmula com séculos de história e com histórias já deste século

A ideia de um rendimento básico incondicional possui três raízes históricas por excelência, a primeira remontando ao início do século XVI, seguindo-se uma outra no século XVIII e a combinação de ambas pela primeira vez, nos finais do século XIX (ver história aqui). Todavia, foi nos Estados Unidos e nos anos de 1960, que a administração Nixon “quase” que trouxe à América um programa muito similar aos pressupostos do Rendimento Básico Incondicional (RBI é a sigla utilizada no nosso país pela Associação pelo Rendimento Básico Incondicional Portugal). O denominado The Family Assistance Plan, como ficou conhecido, propunha em 1969 uma “bolsa” de cerca de 1600 dólares para uma família de quatro pessoas sem qualquer outro rendimento e um “bónus” adicional de 800 dólares em senhas de alimentação. Apesar da proposta de Nixon ter passado, com choque para muitos, na Câmara dos Representantes, foi acolhida com oposição aguerrida tanto pelos liberais como pelos conservadores no Senado, tendo sido rejeitada e votada ao esquecimento até há uns anos a esta parte. Todavia e antes disso, já o famoso economista e conservador economista Milton Friedman a tinha proposto, em 1962, como “complemento” aos magros salários dos mais pobres.

[pull_quote_left]A questão é ética, social, económica e política e os resultados do RBI tanto podem tender para quem defenda que os seus receptores se tornariam preguiçosos e improdutivos ou, ao invés, mais criativos, empreendedores e úteis[/pull_quote_left]

Com o aumento escandaloso da desigualdade de rendimentos entre ricos e pobres e com a perspectiva realista de que a automação e os rápidos progressos tecnológicos, nomeadamente na área da inteligência Artificial, venham a roubar os nossos empregos (o que já está a acontecer), o tema tem vindo a ser crescentemente debatido, aumentando as suas ligas de defensores e opositores em quase real medida.

Em traços gerais, a questão do RBI saltou, de forma alargada, para o interesse público quando a Suíça, em Junho do ano passado, decidiu fazer um referendo, perguntando aos seus cidadãos se estariam de acordo que qualquer adulto pudesse receber 2500 francos suíços, cerca de 2600 euros mensais, sem qualquer contrapartida, proposta rejeitada por 76,9% dos votantes. Mas e apesar desta derrota, a ideia está genuinamente a ganhar adeptos, particularmente na Europa, mas não só, e não apenas enquanto potenciais políticas governamentais, mas também por via de grandes instituições filantrópicas.

A título de exemplo, o fundador da eBay e multimilionário Pierre Omydyar doou meio milhão de euros, através da sua firma de investimento filantrópico Omydar Network, para ajudar a financiar um projecto de RBI no Quénia, o qual será, até hoje, o maior investimento feito para este fim e que ajudará cerca de 26 mil beneficiários.

[pull_quote_left]Em 1962 e como “complemento” aos magros salários dos mais pobres, o famoso e conservador economista Milton Friedman defendia um rendimento desta natureza[/pull_quote_left]

Talvez porque estejam “mais perto” do futuro e da enorme probabilidade de a indústria tecnológica vir a ser a responsável pela maior onda de desemprego do século, várias são as estrelas de Silicon Valley que apoiam e estão a financiar directamente experiências de RBI. É o que acontece com o CEO da Tesla e da SpaceX, Elon Musk, que acredita veementemente que o RBI poderá ser a única resposta possível à automação, com o presidente da Y Combinator, Sam Altman ou ainda com o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg que, em finais de Maio e convidado para falar no encerramento do ano lectivo em Harvard, defendeu também um rendimento básico acessível a todos:” devemos ter uma sociedade que avalie o progresso não só em termos económicos como o PIB, mas também de que forma é que cada um de nós pode encontrar significado naquilo que faz. E devemos explorar ideias como o rendimento básico universal que possam conferir, a cada pessoa, uma “almofada” que lhe permita tentar coisas novas”, afirmou.

Todas as experiências que estão a ser feitas em termos de RBI têm pressupostos similares mas sentidos e implementações diferentes. Por exemplo, e no Quénia, a ideia está mais relacionada com a própria pobreza do que com as máquinas que roubam trabalho, apesar de a primeira se encontrar igualmente dentro dos limites dos objectivos deste novo programa.

[pull_quote_left]O debate sobre os seus prós e contras, cada vez mais aceso, poderá traduzir-se na necessidade, advogada por muitos, de que é necessário alterar o contrato social entre os governos e os cidadãos. E, neste caso, são muito mais as vozes concordantes[/pull_quote_left]

Alguns dos 26 mil quenianos envolvidos nesta experiência, a qual está a ser implementada pela organização de caridade GiveDirectly (e à qual pertence, entre outros gigantes da tecnologia, a Google.org ou a Good Ventures), já estão a receber um montante – que pode ser de uma só “prestação” total ou dividido ao longo de um período máximo de 12 anos – visa ajudar os cidadãos mais pobres das muitas aldeias do Quénia a terem uma vida digna e a suprir as suas principais necessidades. O objectivo da GiveDirectly é chegar aos 30 milhões de dólares, (garantido que está o financiamento de 23,7 milhões) para esta experiência em particular, com as comunidades beneficiárias a reportarem já os benefícios que dele estão a retirar. A titulo também de exemplo, uma análise extensa deste tipo de “donativos”, realizada pela própria GiveDirectly, aponta resultados extraordinários como o decréscimo em custos com os cuidados de saúde, redução na compra de álcool e tabaco, aumento das horas de trabalho, diminuição da violência doméstica, melhorias nos cuidados com as crianças, entre vários outros.

Mas e como anteriormente mencionado, algumas outras experiências estão a ser implementadas pelos governos de alguns países, tanto na Europa, mas também no Canadá, na Nova Zelândia, na Índia, no continente africano e no Brasil.

Todavia e apesar de a lista de promotores das mesmas continuar a engrossar, são poucas as instituições, nomeadamente europeias, que vêem com bons olhos esta “mudança radical” face aos sistemas actuais de protecção social. Num estudo recente feito pela OCDE, no qual 68% dos inquiridos na União Europeia afirmam concordar com a existência desta nova forma de “ajuda” social, são comparados os custos do RBI em quatro países que os estão, apesar de forma diferente, a tentar implementar. Na Finlândia (da qual falaremos mais à frente), em França – onde o tema fez parte principal da campanha do candidato socialista Benoit Hamon (que “prometia” um rendimento para todos os cidadãos franceses com mais de 18 anos no total de 750 euros) -, na Itália, nomeadamente na pequena região denominada Friuli-Venezia Giulia, onde uma “espécie” de rendimento está a ser dado a desempregados, mas que em pouco se distingue de um subsídio de desemprego, e no Reino Unido (a Holanda está também a implementar um programa mais “sério” de RBI, sobre o qual escreveremos a seguir).

Em traços gerais, o estudo realizado pela OCDE afirma que o rendimento básico universal ou incondicional não é, de todo, uma “bala mágica” para a pobreza, sendo que a sua existência legítima para retirar um determinado número de pessoas da pobreza custaria muito mais aos governos do que os actuais programas de segurança social, o que se traduziria, pelas suas contas, num aumento demasiado elevado em termos de impostos – superior a 10% do PIB em alguns países – e num necessário corte em outros benefícios, para o financiar.

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Receber dinheiro sem dar nada em troca?

Entre os vários argumentos utilizados pelos opositores do RBI, a ideia de receber uma renda mensal fixa só levaria a que as pessoas deixassem de trabalhar, aumentando ainda mais a falta de produtividade. Um outro efeito pernicioso focado está relacionado com a elevada probabilidade de aumentarem os números de migrantes que, para quem é liminarmente contra esta ideia, decerto se mudariam para os países onde o rendimento incondicional fosse uma realidade.

[pull_quote_left]Talvez porque estejam “mais perto” do futuro e da enorme probabilidade de a indústria tecnológica vir a ser a responsável pela maior onda de desemprego do século, várias são as estrelas de Silicon Valley que apoiam e estão a financiar directamente experiências de RBI[/pull_quote_left]

Ao invés, os seus defensores contra-argumentam que se o mesmo for dado a quem está ligeiramente acima da linha da pobreza, tal poderá ajudar a conferir a segurança económica necessária para que se persigam novas ambições profissionais, bem como de educação e formação. E isso seria também um incentivo para encorajar o empreendedorismo (ideia também defendida por Mark Zuckerberg), na medida em que fundar um pequeno negócio seria muito menos arriscado com este tipo de rede de segurança. Adicionalmente, aqueles que se encontram fervorosamente a favor do UBI asseguram também que este pode vir a ser um sistema menos dispendiosos do que os programas de benefícios sociais já existentes. Para além do mais, aumentaria a coesão social e acabaria com o estigma das ajudas auferidas pelos desempregados. Também para os que trabalham sem salário, como por exemplo os que são cuidadores dos seus ascendentes ou descendentes, em conjunto com os mais pobres, o RBI serviria como um “estímulo” para melhorar as suas vidas e não se sentirem marginalizados.

Como escreve (e explica porquê) Scott Santens, orador na edição de Davos do Fórum Económico Global de este ano (onde o tema tem sido muito discutido) e membro fundador do Economic Security Project, conselheiro para o Universal Income Project e membro de vários comités que defendem esta nova proposta de rendimento, todos nós deveríamos ter um rendimento básico incondicional. “Desigualdade crescente, décadas de estagnação de salários, a substituição de carreiras ‘para a vida’ por funções ‘pagas à hora’, tecnologias exponencialmente avançadas como os robots e redes neurais cada vez mais capazes de substituir potencialmente metade de todo o mercado laboral humano, eventos que estão a transformar o mundo como o Brexit ou a eleição de Donald Trump – todos estes sinais estão a apontar para a necessidade de começarmos a garantir, de forma permanente, que toda a gente tenha, pelo menos, alguma fonte de rendimento”, defende.

[pull_quote_left]Um estudo realizado pela OCDE afirma que o rendimento básico universal ou incondicional não é, de todo, uma “bala mágica” para a pobreza, sendo que a sua existência legítima para retirar um determinado número de pessoas da pobreza custaria muito mais aos governos do que os actuais programas de segurança social[/pull_quote_left]

Recordando que existe uma iniciativa parcial deste tipo de rendimento no Alasca desde 1982 e que uma versão similar foi igualmente testada nos Estados Unidos nos anos de 1970, Santens afirma ainda que a cidade de Dauphin, no Canadá, conseguiu, com o RBI, eliminar a pobreza ao longo de cinco anos (entre 1974 e 1979). O especialista nesta área oferece números que jogam a favor da sua implementação (v. intertítulo Basic income by the numbers) e enumera também as mais recentes experiências na Namíbia, na Índia e no Brasil, não deixando também de antecipar o que muita gente pensa de imediato quando se ouve falar neste rendimento básico incondicional: “dar dinheiro a uma pessoa para ela não fazer nada?

Confessando que, à primeira vista a ideia pode parecer tão tolamente dispendiosa quanto uma excelente forma para encorajar as pessoas a não fazerem nada, o também economista assegura que apesar de parecer um contra-senso, o exacto oposto é verdadeiro para ambos os “preconceitos” enunciados. Para Scott Santens, o que é tolamente dispendioso não é ter um rendimento básico, sendo que aquilo que realmente motiva as pessoas a trabalhar é, por um lado, não lhes retirar dinheiro do seu salário porque trabalham e, por outro, não ser o dinheiro o principal estímulo para que trabalhem. Ora, não sendo totalmente fácil compreender estas declaração, talvez seja melhor passar, finalmente, ao que se está a passar em alguns locais espalhados pelo mundo.

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Experiências-piloto em curso estão dar bons resultados

A Finlândia decidiu testar um programa de rendimento básico para desempregados à procura de emprego desde o início de 2017, o qual terá uma duração de dois anos, tendo sido formalmente aprovado pelo parlamento. O principal objectivo desta experiência é analisar se um mecanismo de um rendimento básico (significando, neste caso, um apoio financeiro incondicional pago regularmente aos beneficiários durante determinado período de tempo) irá incentivar, ou não, os seus receptores a manterem-se no desemprego. A experiência tem também como propósito oferecer perspectivas sobre um conjunto alargado de questões que poderão ajudar a melhorar os sistemas de segurança social finlandeses. Por exemplo, poderá ajudar este mesmo organismo a responder melhor às profundas alterações que ocorrem ao longo da vida laboral? Poderá igualmente ajudar a reduzir a burocracia e simplificar a complexidade do sistema? As premissas são várias.

[pull_quote_left]Entre os vários argumentos utilizados pelos opositores do RBI, a ideia de receber uma renda mensal fixa só levaria a que as pessoas deixassem de trabalhar, aumentando ainda mais a falta de produtividade[/pull_quote_left]

Mas e como funciona realmente? De acordo com a experiência finlandesa, um rendimento básico parcial no valor de 560 euros mensais substitui alguns dos benefícios sociais “normais”, como o subsídio de desemprego, de doença, bem como alguns benefícios parentais, entre outros. A ideia é a de que os participantes recebam este rendimento incondicional, ou seja, independentemente da alteração das suas próprias circunstâncias. Se a pessoa arranjar um emprego, o rendimento básico será pago por cima do salário. O que permite ver, e de acordo com o Kela (o Instituto de Segurança Social Finlandês), se é possível também reduzir a burocracia, na medida em que este tem disponível cerca de 40 diferentes benefícios, o que confunde as pessoas pois não sabem qual o melhor para si mesmas.

Como assegura a Directora para a Gestão da Mudança do Kela, Marjukka Turunen e num artigo publicado na OCDE, apesar de a experiência estar a decorrer apenas desde o início do ano, existem já alguns resultados visíveis, nomeadamente ao nível da burocracia, e com resultados positivos tanto para os participantes – dois mil, entre os 25 e os 28 anos – como para o próprio Kela, que afirma que o projecto-piloto está a correr à velocidade de cruzeiro. O rendimento básico é pago todos os meses, numa data certa, o que oferece a quem dele aufere uma paz de espírito sem preço e a liberdade de não se preocupar com stresses financeiros imediatos, permitindo, por outro lado, que os desempregados se concentrem na procura activa de emprego ou que enveredem pelo seu próprio micro-negócio. E na verdade e pesar de poucos meses passados, já foram muitos que o fizeram, enquanto outros optaram por aprender uma nova profissão ou por simplesmente cuidar dos seus ascendentes. Relatos de menor stress e ansiedade são também já resultados visíveis do programa.

[pull_quote_left]Os seus defensores contra-argumentam que se o mesmo for dado a quem está ligeiramente acima da linha da pobreza, tal poderá ajudar a conferir a segurança económica necessária para que se persigam novas ambições profissionais, bem como de educação e formação. E isso seria também um incentivo para encorajar o empreendedorismo[/pull_quote_left]

Como explica o próprio Kela, o “dinheiro gratuito” não serve de receita para toda a gente. O que realmente interessa para o parlamento finlandês é o facto de este ter noção de que a experiência do rendimento básico incondicional pode constituir apenas uma entre várias acções que devem ser abordadas para lidar com os actuais e futuros problemas do trabalho ao longo da vida e da própria segurança social. “O rendimento básico incondicional é um caminho em frente e em paralelo com o desenvolvimento dos nossos benefícios face ao desemprego e a outros sistemas de segurança social para eliminarmos burocracias excessivas para todos”, pode ler-se no artigo já citado e escrito por Marjukka Turunen que, acrescenta, “nos permite libertar para melhor tomarmos conta de outros beneficiários que não têm acesso a este projecto, mas que também precisam do nosso apoio para ajudar a gerir as suas vidas.

Um projecto similar está a ter lugar em Ontário, no Canadá, envolvendo 2500 pessoas mas que, e se for bem-sucedido, poderá estender-se a toda a população pobre da província em causa. Num artigo também publicado pelo Fórum económico Mundial, Helena Jaczec, a ministra canadiana responsável pelo projecto explica: “ o governo credita que as pessoas que têm a segurança de saber que as suas necessidades básicas serão providas, contribuirão muito mais para a sociedade”. Assim, o que este projecto-piloto pretende aferir é, e como enumera Jaczec: “Que tipo de mudanças comportamentais poderão existir? A segurança financeira que é fornecida confere capacidade e estímulo para aumentar a educação dos beneficiários, a sua (re)formação, a diminuição de idas às urgências porque os níveis de stress diminuíram?”.

[pull_quote_left]A Finlândia espera que os beneficiários do RBI aufiram uma paz de espírito sem preço e a liberdade de não se preocuparem com stresses financeiros imediatos, permitindo, por outro lado, que os desempregados se concentrem na procura activa de emprego ou que enveredem pelo seu próprio micro-negócio[/pull_quote_left]

As cerca de 2500 pessoas que fazem parte da experiência irão receber cerca de 970 dólares por mês, equivalente a três quartos do que no país é definido como “baixo rendimento”, tendo o governo orçamentado o montante de 25 milhões de dólares ao longo de três anos para o efeito. E, mesmo que os participantes encontrem emprego ou consigam ganhar algum dinheiro extra, continuarão a receber este montante. A ideia é o Estado garantir que, pelo menos esta quantia estará disponível, com ou sem trabalho adicional. Como afirma Hugh Segal, um antigo senador, defensor do rendimento básico e responsável pelo estudo de acordo com o qual a experiência está a ser feita, “existe sempre a ideia contraditória de que os programas de assistência social mantêm as pessoas na armadilha da pobreza”. Assim, e neste caso, o desafio é o seguinte: “como construir um programa que tenha um melhor impacto do que os tradicionais sistemas de ajuda social”?

Por outro lado, implica igualmente uma visão alterada da própria humanidade. Em vez dos sistemas tradicionais de assistência social, os quais assumem que os pobres são preguiçosos e que têm de ser incentivados a trabalhar com um complexo sistema de paus e cenouras, o rendimento básico assume que, ao se apoiar as pessoas, elas terão o estímulo necessário para fazerem coisas diferentes. Como acrescenta a ministra canadiana, “a imagem clássica do acesso fraudulento aos apoios sociais tradicionais é, na maioria dos casos, um mito. E o que acontece é que a nossa análise revela que essa fraude é mínima. Temos a crença básica de que a vasta maioria das pessoas quer ser incluída na sociedade e contribuir para a mesma”. Hugh Segal concorda com a ideia que o assistencialismo social assume que os pobres não são capazes de tomar decisões racionais e que não lhes deverá ser permitido fazer as suas próprias escolhas, o que, na sua perspectiva, é um erro imenso.

[pull_quote_left]Existe sempre a ideia contraditória de que os programas de assistência social mantêm as pessoas na armadilha da pobreza[/pull_quote_left]

No caso da Holanda, as experiências com o rendimento social incondicional deverão ser feitas de forma ligeiramente diferente. A questão de partida é similar – se dermos dinheiro “gratuito” a uma pessoa, será que o vai gastar e não vai fazer nada com as suas vidas ou utilizá-lo-á como uma plataforma para ganhar mais dinheiro e viver uma vida mais rica e produtiva? – e são quatro as cidades que se candidataram a fazer esta experiência, em conjunto com a Universidade Utrecht, uma das cidades candidatas, e Tilburg, Groningen e Wageningen.

Tendo mais uma vez em consideração que o rendimento básico é entendido por muitos como uma despesa inútil – e impossível de ser concedida numa altura em que os orçamentos públicos estão sob pressão – e, para outros, como uma forma de solucionar problemas no próprio sistema de segurança social, como forma de incentivar o trabalho e um ajustamento necessário na era da automação que acabará, indubitavelmente, com muitos postos laborais, a Holanda pretende fazer várias experiências numa só.

[pull_quote_left]Gerir a transição para um mundo sem trabalho para todos será muito difícil tanto em termos económicos, como políticos e sob o ponto de vista moral. Um sistema onde parte deste aumento de produtividade fosse taxado e seguidamente distribuído através de transferências de dinheiro para todos os cidadãos, estivessem estes a trabalhar ou não, poderia resolver algumas das tensões que se avizinham[/pull_quote_left]

Assim, a cidade de Utrecht pediu ao governo holandês para conduzir um projecto denominado “See What Works”, o qual irá comparar os efeitos de quatro tipos de rendimento básico. O primeiro dará às pessoas 980 euros, sem pedir nada em troca, e permitindo que as mesmas trabalhem o que quiserem ( a forma mais pura de RBI); o segundo irá exigir, por exemplo, que o beneficiário desse dinheiro se voluntarie para tomar conta de idosos, sendo-lhes retirado o rendimento caso não o façam; o terceiro irá oferecer dinheiro extra caso as pessoas se limitem a voluntariar; e o quarto proverá o rendimento, mas não permitirá que os participantes trabalhem.

Em conjunto com a Universidade de Utrecht, a cidade pretende recrutar 250 pessoas para o “See What Works” e de seguida seleccionar arbitrariamente voluntários para os diferentes tipos de experiências. A ideia é perceber quais os efeitos que cada um dos pagamentos gera em termos de quão dispostas as pessoas estão para trabalhar, avaliar o seu nível de bem-estar e em que medida utilizam os serviços públicos, como por exemplo os cuidados de saúde. Se for aprovado pelo governo de Haia, o programa terá a duração de dois anos.


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Três argumentos éticos a favor do rendimento básico incondicional

Apesar de serem inúmeros os prós e os contras da adopção deste novo tipo de rendimento e tendo em consideração que o tema é demasiado sério para ser levado de ânimo leve – motivo pelo qual estão a ser pensadas as várias experiências acima referidas – as inúmeras análises e opiniões que já existem sobre o tema não contribuem, propriamente, para ajudar a perceber se o RBI pode, realmente, ser uma boa aposta futura como forma de reduzir a pobreza e minimizar a quebra de postos de trabalho que, inevitavelmente, será uma consequência dos progressos tecnológicos. Assim, o VER optou por se focar nos seus aspectos mais éticos e, depois de várias pesquisas, decidiu partilhar os comentários proferidos por Shanta Devarajan, economista-chefe do Banco Mundial para as regiões do Médio Oriente e Norte de África e que oferece uma boa perspectiva moral, bem como económica e diferente da maioria dos argumentos mais comuns – para a possível adopção deste tipo de rendimento. Vejamos:

  1. Uso eficiente dos rendimentos provenientes dos recursos naturais

A maioria dos países ricos em petróleo da África subsaariana sofre de fracos resultados provenientes das despesas públicas. O Gabão e a Guiné Equatorial, por exemplo, com rendimentos per capita entre os 10 mil e os 20 mil dólares, tem uma das mais baixas taxas de imunização infantil em África. Uma razão para esta realidade diz respeito ao facto de as receitas do petróleo serem directamente canalizadas para os governos sem passarem pelas mãos dos cidadãos. O que resulta, no mínimo, no desconhecimento por parte da população da magnitude das receitas provenientes do petróleo. Adicionalmente, não têm, também, um incentivo para escrutinarem de que forma é que os seus governos gastam o dinheiro público, na medida em que não o encaram como “o seu dinheiro” (mesmo que seja).

Assim, se as receitas do petróleo fossem transferidas directamente para os cidadãos, com o governo a ter de as taxar fiscalmente para financiar o investimento público, pelo menos duas mudanças teriam lugar. A primeira seria os cidadãos saberem a real magnitude do seu valor. E a segunda seria terem um maior incentivo para monitorizar de que forma os seus impostos estariam a ser gastos. Mesmo sem estas mudanças, uma simples transferência de 10% das receitas do ouro negro poderia, de forma eficaz, eliminar a pobrezam muitos países exportardes de petróleo.

Para os países de elevado rendimento do Médio Oriente como a Arábia Saudita e o Kuwait, o argumento é ligeiramente diferente. Nestes países, as receitas do petróleo estão actualmente a ser transferidas através de subsídios e do emprego no sector público (com cerca de 95% da força laboral masculina no Kuwait a trabalhar no mesmo), o que deve representar uma das mais ineficientes formas de transferir receitas do petróleo. Os subsídios, especialmente os da energia, distorcem os incentivos e corroem a economia. E este enorme sector público significa que a maior parte da força laboral tem um trabalho de baixa produtividade. Um programa que reduza ou elimine subsídios, que obrigue a cortes no emprego no sector público e que distribua as receitas do petróleo enquanto transferências de dinheiro – algo que a Arábia Saudita está a planear fazer – iria aumentar a eficiência, ao mesmo tempo que partilharia as gigantescas receitas petrolíferas com a população.

  1. Melhorar a assistência aos pobres

Países como a Índia possuem um conjunto de subsídios e mecanismos de transferência que visam ajudar os mais pobres. Mas o problema é que a maioria delas não chega, sequer, junto destes. A taxa de fuga do Sistema de Distribuição Pública está estimada em 40%. Substituir estes subsídios ineficientes por transferências em dinheiro iria assegurar, no mínimo, que os pobres receberiam o suposto benefício monetário. Mas poderia ser também uma forma de emancipação económica. Subsidiar alimentação, combustível ou água implica que os pobres têm de consumir estes bens, mesmo que a qualidade da água seja má, para receber o benefício. Por contraste, uma transferência em dinheiro significa que o pobre pode escolher como gastar o seu dinheiro. Se a qualidade for má, existem alternativas. Existe também a questão se esta transferência deverá ser universal ou apenas para os mais pobres. Apesar de ter os pobres como principal público-alvo é, por principio, preferível ser “para todos”. É que, na prática existem tantos problemas em identificar quem realmente precisa, que um esquema universal seria igualmente bem-vindo. Finalmente, e devido à tecnologia, estas transferências em dinheiro podem ser implementadas a baixo custo. O programa Adhaar na Índia, que emite cartões de identificação universais poderia servir também como cartão de débito, cobrindo milhares de milhões de pessoas.

  1. O ajustamento às tecnologias que vão roubar trabalho

Os avanços na inteligência artificial, na robótica e em outras tecnologias têm obrigado a nos questionarmos face ao futuro do trabalho. O dilema é que estas tecnologias que aumentam a produtividade irão crescer em número, mas farão com que muitas pessoas percam os seus empregos (os motoristas, por exemplo, serão substituídos pelos carros/camiões sem condutor). E gerir esta transição será muito difícil tanto em termos económicos, como políticos e sob o ponto de vista moral. Um sistema onde parte deste aumento de produtividade fosse taxado e seguidamente distribuído através de transferências de dinheiro para todos os cidadãos, estivessem estes a trabalhar ou não, poderia resolver algumas das tensões que se avizinham.

Os programas-piloto que estão a ser implementados um pouco por todo o mundo seguem, essencialmente, esta direcção, e desafiam a noção básica de que ganhamos um rendimento pelo trabalho que fazemos. Apesar de este conceito ser comum pelo menos desde a Revolução Industrial, talvez tenha de ser revisitado à luz das rápidas mudanças na tecnologia.

Poderemos perspectivar uma sociedade na qual a produtividade será elevada o suficiente para que toda a gente possa receber um rendimento mínimo básico e em que as pessoas possam escolher trabalhar naquilo em que são boas (incluindo não trabalharem de todo).

Apesar de diferentes, estes três argumentos separados levam à mesma conclusão: a de que muito provavelmente o rendimento básico universal seja uma ideia que surge no momento certo.


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