Será o metaverso apenas mais uma buzzword, a próxima Internet, o constante desejo de transformar o que pertence à ficção científica numa realidade ou apenas mais uma ambição desmesurada em particular das grandes tecnológicas? Tal como aconteceu com a Internet nos anos 70 ou 80, as especulações são muitas e ninguém sabe exactamente o que poderá vir a ser e quais as suas implicações, boas ou más. De qualquer das formas, e dado que gigantes tecnológicos como o Facebook [agora Meta], a Microsoft, a Apple e a Google estão a investir somas astronómicas para o tornar real, é tempo de começar a descobrir o que realmente significa este termo vago e complexo. E é essa a nossa proposta
POR HELENA OLIVEIRA
Lembrar-se-á provavelmente o leitor que, há quase 30 anos e com uma internet ainda jovem e imatura, a plataforma online multimédia Second Life começou por fazer as delícias de muitos cibernautas, na medida em que permitia – e ainda permite, agora com muito mais sofisticação – que as pessoas criassem um avatar para si próprias e tivessem uma “segunda vida” num mundo completamente virtual.
Com o termo “metaverso” a invadir os media, em particular desde que Mark Zuckerberg alterou o nome da empresa Facebook para Meta, anunciando igualmente que este último será o futuro da Internet, a verdade é que ninguém sabe exactamente o que este conceito significa, ou melhor, o que virá a significar, apesar de serem já muitas as tecnológicas, e não só, que começam a salivar perante as suas supostas intermináveis possibilidades. E, para muitos, a plataforma Second Life poderá ser considerada como uma espécie de embrião deste metaverso.
O termo não é de todo novo e o seu aparecimento está geralmente relacionado com o romance de ficção científica “Snow Crash”, publicado em 1992 por Neil Stephenson, no qual os humanos, enquanto avatares programáveis, interagem entre si e com agentes de software num espaço virtual tridimensional que funciona como um espelho da vida real e onde existem avenidas, casas, bares, lojas ou auto-estradas, justamente com o nome de metaverso.
Mas, antes de “Snow Crash”, já nos anos de 1980 o escritor William Gibson descrevia em “Neuromancer” um mundo digital acessível através de um terminal específico, com alusões à realidade virtual ainda antes de existir sequer tecnologia para tal, apesar de nesta obra ser utilizado o termo “ciberespaço” e não metaverso.
Todavia e como assegura o capitalista de risco Matthew Ball, cujos ensaios que escreve desde 2018 sobre o metaverso se tornaram essenciais para líderes empresariais e observadores tecnológicos que estão a tentar compreender como este funcionará e como dele se poderão retirar lucros chorudos, o termo tem cerca de um século. Ball é o antigo responsável de estratégia da Amazon e o seu primeiro livro, publicado esta semana, faz jus às suas pesquisas e a muitas respostas ainda não clarificadas: The Metaverse: How It Will Revolutionize Everything.
Assim, e aguçando o apetite de um conjunto significativo de empresas, e apesar de não existir consenso ou definição universal para o termo em causa, o “metaverso” surge, de forma simples, como a terminologia indicada para descrever um mundo virtual que tenta replicar a realidade juntando à Internet a soma de tecnologia como a realidade virtual (RV) e a realidade aumentada (RA),num espaço colectivo e virtual partilhado.
Zuckerberg descreve-o como “ um conjunto de espaços virtuais onde a criação e a exploração podem ser feitas com outras pessoas que não se encontram no mesmo espaço físico”, ao passo que para Matthew Ball “o metaverso consiste numa rede expansiva de mundos e simulações 3D contínuas e em tempo real que suportam a continuidade da identidade, objectos, história, pagamentos e direitos, os quais podem ser experimentados de forma síncrona por um número efectivamente ilimitado de utilizadores, cada um com o seu próprio sentido de presença individual”.
Para os visionários da tecnologia a previsão associada ao metaverso é a de um mundo vasto e imersivo que espelha e amplia o verdadeiro, permitindo que as pessoas façam e sejam o que até agora seria apenas possível enquanto fruto da imaginação.
Como explica Ball, “em muitos casos, se não em quase todos, ter um ambiente imersivo 3D é uma forma mais intuitiva e produtiva de comunicar informações e ideias”. E, dando o exemplo da educação em que a escola via Zoom ou a aprendizagem através de vídeos do YouTube não é particularmente convincente, neste caso em particular é possível compreender e beneficiar das vantagens de uma educação imersiva: como exemplifica, será possível entrar num sistema circulatório, atravessar diferentes ambientes gravitacionais, ou aprender fisioterapia, não assistindo a um ecrã de vídeo, mas fazendo-o através de sensores tácteis com representação 3D e análise de movimento”. Como também afirma, e no caso especifico da aprendizagem, podemos certamente supor que muitos elementos disponíveis no metaverso irão enriquecer a nossa experiência e ter melhor impacto do que a Internet actual.
A grande aposta de Mark Zuckerberg é e de forma muito optimista começar a transformar o Facebook no “seu” metaverso”, num período de cinco anos (o que toda gente afirma ser impossível). O patrão da ainda maior rede social do mundo deseja assim que o futuro seja um mundo virtual simulado onde as pessoas possam socializar, trabalhar, fazer compras e experienciar várias formas de entretenimento através de avatares digitais de si próprias e não com os seus corpos físicos reais. Apesar de alguns elementos estarem já a ser utilizados – como por exemplo os headsets de realidade virtual – a maior parte da tecnologia fundamental subjacente ao futuro metaverso não existe hoje em dia e, segundo as estimativas de Zuckerberg, podem levar cerca de 15 anos até serem uma realidade.
Zuckerberg está a apostar tudo na ideia, gastando milhares de milhões de dólares – comprando, por exemplo a Oculus VR, fabricante de óculos de realidade virtual – para desenvolver tecnologias futuristas como as pulseiras de interface neural e os óculos inteligentes de realidade aumentada que irão sustentar este novo mundo virtual. Todavia, são muitos os observadores e analistas que consideram o metaverso como uma distracção das muitas questões imediatas com que o Facebook e o Instagram estão a lidar no que respeita à privacidade, segurança e bem-estar mental dos utilizadores – e estão preocupados que estas novas tecnologias possam causar mais ou piorar os problemas sociais já existentes.
Por exemplo, e numa entrevista recente publicada na Vox, e para melhor se compreender as promessas e desafios deste mateverso, Nick Clegg, presidente de assuntos globais da Meta e que escreveu recentemente um longo ensaio sobre o tema, aceita algumas das críticas que estão já a ser feitas a este novo mundo virtual em desenvolvimento, afirmando que o mesmo é ainda “hipotético, que envolve tecnologia ‘intensiva de dados’ e que poderá vir a ser mal utilizado”.
Mas a verdade é que uma vasta gama de empresas tecnológicas – desde grandes players como a Microsoft e Google a outras de menor dimensão como a Niantic e a Emblematic – estão já a trabalhar em experiências e produtos para o metaverso, com algumas primeiras versões já existentes no mundo dos jogos virtuais como o Roblox, o Minecraft e o Fortnite, que incorporam já tecnologias como a realidade virtual e a realidade aumentada.
Clegg define o metaverso da seguinte forma: “imagine, por exemplo, como poderia ser útil usar óculos que lhe dêem indicações virtuais na sua linha de visão ou traduções imediatas de sinais de rua em línguas estrangeiras. Ou mesmo permitir-lhe ter uma conversa com alguém que está a milhares de quilómetros de distância e aparece como um holograma tridimensional na sua sala de estar, em vez de uma cabeça e ombros num ecrã plano. (…) Adicionalmente, os potenciais benefícios societais – particularmente na educação e nos cuidados de saúde – são vastos, desde ajudar os estudantes de medicina a praticar técnicas cirúrgicas até dar ‘vida’ às lições escolares de formas novas e excitantes”.
Todavia e para todos os que estão a apostar neste admirável (supostamente) mundo novo, a palavra-chave parece ser “presença”, ou seja, a sensação de um envolvimento físico com lugares e pessoas em vez de simplesmente os observar através de uma janela de um qualquer dispositivo. Um bom exemplo é uma reunião com colegas de trabalho, em torno de uma mesa virtual, cujos hologramas podem parecer mais naturais para algumas pessoas do que estar a olhar para uma grelha de miniaturas do Zoom.
O temor de que o metaverso poderá fazer “desaparecer” a realidade
Se o metaverso se tornar o sucessor da Internet, o “quem” e o “como” de quem o “construir” será extremamente importante para o futuro da economia e da sociedade como um todo. E é exactamente esta uma das maiores preocupações que une muitos observadores e analistas.
Louis Rosenberg é um cientista informático e foi, há cerca de 30 anos, o principal investigador de um projecto pioneiro sobre Realidade Aumentada (ainda antes de o termo ter sido cunhado). Conhecido como Virtual Fixtures e desenvolvido em parceria pelo Laboratório de Investigação da Força Aérea dos Estados Unidos com a Universidade de Stanford e com a NASA, permitiu pela primeira vez aos utilizadores interagir com uma realidade “mista” de objectos tanto reais como virtuais.
Mas três décadas passadas, Rosenberg não está propriamente entusiasmado com os desenvolvimentos tecnológicos nesta área, manifestando várias críticas ao possível metaverso.
Como afirmou num podcast da BigThink, “no seu centro, a realidade aumentada (RA) e o metaverso são tecnologias de media que visam apresentar conteúdos da forma mais natural possível – integrando na perfeição vistas simuladas, sons e mesmo sentimentos na nossa percepção do mundo real que nos rodeia”. Todavia, e como também declara, mais do que qualquer forma de media até à data, tem o potencial de alterar o nosso sentido da realidade, distorcendo a forma como interpretamos as nossas experiências diárias directas. “Num mundo aumentado, simplesmente andar pelas ruas tornar-se-á uma amálgama selvagem do físico e do virtual, fundindo-se de forma tão convincente que os limites desaparecerão nas nossas mentes: o nosso ambiente tornar-se-á repleto de pessoas, lugares, objectos e actividades que na realidade não existem mas que, e no entanto, nos parecerão profundamente autênticos”, acrescenta ainda.
Entre as preocupações de Rosenberg está o facto de entidades terceiras poderem introduzir “camadas de filtro pagas” que permitam a certos utilizadores ver “etiquetas” ou rótulos específicos sobre pessoas da (e na) vida real. Estes rótulos podem inclusivamente vir a “flutuar” acima da cabeça de cada pessoa, por exemplo, e fornecer informações sobre as mesmas (sem que estas tenham conhecimento isso), como por exemplo “legendá-las” como “alcoólico”, “imigrante”, “ateu”, “racista” ou qualquer outra coisa. Como alerta Rosenberg, “as sobreposições virtuais poderão facilmente ser concebidas para ampliar a divisão política, ostracizar certos grupos e até mesmo fomentar o ódio e a desconfiança”.)
Uma outra grande preocupação (e legítima) reside no facto de o metaverso poder fazer “desaparecer” a realidade, criando um sistema em que as pessoas não conseguirão simplesmente afastar-se dos seus dispositivos para terem interacções com o mundo real, o que já hoje acontece com quem prefere passar grande parte da sua vida no mundo digital. Só que com a sofisticação supostamente alcançada pelas tecnologias que farão parte do metaverso, esta situação poderá ser ainda muito pior e é passível de suscitar várias perguntas legítima: será que é de uma segunda “vida” que faça esquecer a realidade aquilo que muitos precisam? Será o metaverso o grande ópio digital no qual qual muita gente se poderá viciar? Será que trará algum bem ao mundo?
Se há coisa que nos tem sido vendida desde a popularização da Internet é o facto de que os mundos virtuais podem ser incrivelmente libertadores. A promessa do ciberespaço, desde o seu início, tem sido a de que nos torna a todos iguais, permitindo-nos ser julgados não pela nossa apresentação física ou limitações de ordem variada, mas pelo que está dentro das nossas cabeças e/ou pela forma como queremos ser vistos. O sonho é de um lugar virtual onde as hierarquias e limitações do mundo real caem, onde o nerd pode ser o herói, onde os mais vulneráveis e aborrecidos podem fugir da sua realidade e viver num lugar mais excitante e gratificante. Mas também como todos sabemos, os mundos virtuais não são intrinsecamente melhores do que o mundo real. Neles também existem misoginia, homofobia, racismo e profundas desigualdades e nada faz prever que o contrário aconteça no metaverso, bem antes pelo contrário.
Como afirma a editora de jogos do The Guardian, Keeza MacDonald, não há nada que já tenha experimentado em qualquer mundo virtual que a faça sentir bem com a ideia do metaverso, simplesmente porque a sua “construção” está nas mãos de pessoas [empresas] para quem os problemas do mundo real são, na sua maioria, invisíveis. E, como alerta, há que não esquecer que este novo conceito ou promessa está no domínio de empresas e de “capitalistas da desgraça” que estão a tentar descobrir uma forma de ganhar mais dinheiro à medida que os recursos do mundo real estão a diminuir.
A seu ver, o metaverso, tal como previsto por estas pessoas, em particular pelos gigantes da tecnologia, não constitu uma nova fronteira promissora para a humanidade. É, ao invés, um outro lugar para gastar dinheiro em coisas, com excepção para o facto de estas coisas não existirem fisicamente.
Todavia, e como também refere Rosenberg, tecnologias como a realidade virtual e a realidade aumentada têm, em simultâneo, o poder de enriquecer as nossas vidas mediante formas admiráveis. Para o pioneiro da realidade aumentada, esta poderá e por exemplo, permitir aos cirurgiões um desempenho mais rápido e melhor, beneficiando igualmente trabalhadores da construção civil, engenheiros, cientistas, jovens e idosos, entre muitos outros. Rosen berg está igualmente confiante de que este futuro metaverso irá revolucionar o entretenimento (por exemplo, com concertos ao ‘vivo’) e a educação, “desencadeando experiências que não são apenas envolventes e informativas, mas também emocionantes e inspiradoras”.
O lado mais negro reside, contudo, na possibilidade de este novo mundo vir a tornar-nos (anda) mais dependentes dos elementos insidiosos das tecnologias que interferem nas nossas vidas e dos donos do poder que os irão controlar, deixando-nos cada vez mais susceptíveis a manipulações e distorções.
E, como alerta ainda Rosenberg, “se não tivermos cuidado agora, este ainda hipotético metaverso poderá facilmente ser usado para fracturar a sociedade, empurrando-nos das nossas próprias bolhas de informação para as nossas próprias realidades personalizadas, entrincheirando ainda mais as nossas opiniões e cimentando as nossas divisões, mesmo quando estamos frente a frente com outros no que parece ser a esfera pública”.
Aguardemos e estejamos atentos a este futuro, talvez mais próximo do que imaginamos.
Editora Executiva