No âmbito de um dos três eixos que compõem o Programa AconteSer – nomeadamente, o que visa os pagamentos pontuais a fornecedores – a ACEGE encomendou um estudo, coordenado por Augusto Mateus, com vista a sistematizar os efeitos qualitativos decorrentes dos atrasos nos pagamentos e recebimentos. Em entrevista, o Professor não só contextualiza a temática em causa, como alerta para a necessidade de uma mudança organizacional, centrada na capacidade dos empresários honrarem os seus compromissos
POR HELENA OLIVEIRA
O estudo “Compromisso de pagamento no prazo acordado: uma cultura de pagamentos atempados” (cujo resumo pode consultar ou, caso prefira, ler na íntegra) teve como ponto de partida o cenário de degradação nos prazos de pagamento ocorrida entre 2006 e 2011 (sendo que no corrente ano derrapou para 80 dias), apresentando igualmente um cenário de aplicação da nova directiva da CE, que preconiza que os prazos de pagamento não devem exceder os 60 dias.
Se os números para o que se perdeu devido à espiral de incumprimento são expressivos, mais significativos se tornam se a cultura de pagamentos atempados passar a ser regra:
- Nos últimos cinco anos, os atrasos nos pagamentos destruíram 72 mil empregos, retiraram 2,8 milhões de euros de Valor Acrescentado Bruto (VAB) e liquidaram 13,3 mil milhões da actividade económica nacional. Por ano, a riqueza do país sofre uma fractura de cerca de 600 milhões de euros (o equivalente a 0,4% do PIB) e são liquidados cerca de 14 mil empregos. E são 48 mil milhões de euros que circulam com atraso entre as empresas.
- Caso as empresas cumpram o prazo de pagamento de 60 dias, a economia poderia originar mais 120 mil postos de trabalho, o VAB seria impulsionado em 4,8 mil milhões (3,1% do PIB) e produção nacional ganharia 22 mil milhões de euros.
Em entrevista ao VER, Augusto Mateus comenta não só os resultados do estudo que coordenou, como também a necessária mudança da cultura organizacional do país. É que muito mais do que uma questão legal, o pagamento atempado tem de ser traduzido num compromisso a honrar pelos empresários, o que é, aliás, a proposta da ACEGE, a associação que encomendou o estudo.
Sendo este um estudo pioneiro, qual a metodologia utilizada que permitiu chegar a valores quantificáveis e de fácil “alerta” para os agentes económicos?
A medida dos prazos de recebimento e pagamento é algo muito antigo. Verdadeiramente, o que este estudo exigia era poder-se quantificar, em termos de produção, riqueza e emprego, o que é que se estava a perder e, eventualmente, o que se poderia ganhar, com a degradação dos prazos de pagamento ou com um aumento da confiança dos agentes económicos, confiança esta traduzida em determinadas formas de auto-regulação e de acordo sobre comportamentos e práticas empresariais.
Não havendo uma metodologia perfeitamente estabelecida, tentámos encontrar uma forma na qual não estivéssemos a sobrestimar ou a subestimar grosseiramente os aspectos aqui envolvidos. Existiam vários mecanismos e ponderou-se a hipótese de utilizarmos aquilo que se pode chamar de arrefecimento da economia – pela não recuperação a tempo e horas dos circuitos económicos. Na prática, degradar prazos de pagamento significa fazer menos ciclos económicos ao longo do ano ou, pelo contrário, deduzir prazos de pagamento traduz-se, ao longo do ano, em fazer mais ciclos económicos. Mas essa abordagem levantava vários problemas, até porque os ciclos são bastante diferentes de actividade para actividade e poderíamos estar a sobrestimar o efeito positivo ou negativo, partindo do princípio que o mercado aceita tudo e que tem sempre procura para tudo.
E qual foi então o raciocínio escolhido?
Optámos por uma metodologia que, na prática, faz o seguinte raciocínio: quando se degradam os prazos de pagamento e de recebimento, uma parte do capital das empresas é desviado para apoio à tesouraria, ou seja, é desviado das funções de melhoria, do incremento de eficiência, de aumento da produtividade, de expansão dos negócios, etc. Como precisávamos de uma metodologia simples que permitisse resultados robustos e que pudessem ser facilmente entendidos, optámos por tentar perceber que a degradação ou a melhoria dos prazos de pagamento e recebimento traduz-se em reduzir ou aumentar a capacidade de fazer bom investimento, isto é, aumentar a produtividade, melhorar a organização e o investimento nas pessoas.
Calculou-se um coeficiente de capital/produto, partiu-se das contas disponíveis sobre as empresas e cada dia representa um determinado montante de capital. Em suma, foi possível estimar que por cada dia de atraso ou de avanço nos prazos de pagamento existe um significado económico que se pode medir em termos de emprego, de riqueza criada, e do capital que está envolvido ao nível das vendas perdidas.
Está-se a referir á degradação de 12 dias registada a partir de 2006 e que representa um agravamento para 80 dias do prazo médio de recebimento em 2011.
Sim, foi assim que estimámos o custo dos 12 dias de degradação dos prazos de pagamento e recebimento, e que se traduzem na destruição de 72 mil empregos, menos 2,8 mil milhões de Valor Acrescentado Bruto e liquidação de 13 mil milhões da actividade económica portuguesa.
E fizeram, de seguida, as estimativas do que poderia significar o ganho dos 22 dias em relação à ideia de ter os dois meses como grande referência [de acordo com a directiva europeia].
Exactamente. E chegámos a estes resultados em termos de emprego, de valor de vendas e em termos de riqueza: criar-se-iam de mais 120 mil empregos, o VAB seria impulsionado em 4,8 mil milhões e assistiríamos a um aumento colossal de 22 mil milhões na produção portuguesa. E que são resultados que, sem serem desmesurados, são expressivos. São valores significativos.
E, para além das óbvias, quais são as principais e mais graves consequências decorrentes dos atrasos nos recebimentos para os agentes económicos?
A principal e mais grave consequência é a quebra de confiança. A economia precisa de confiança no sentido de que já basta a incerteza sobre os mercados, sobre as tecnologias, sobre os produtos. Podemos ter uma economia melhor se pudermos confiar uns nos outros e, portanto, o primeiro e grande capital das iniciativas que se podem vir a tomar é a do restabelecimento da confiança económica. Havendo confiança qualquer empresa encaixa um, dois ou três dias de atraso nos pagamentos, porque sabe que lhe vão pagar. O problema é a incerteza no cumprimento dos compromissos. Para além da sinistralidade, uma pessoa saber que existe uma forte probabilidade de não receber a totalidade das suas facturas, existe ainda um outro problema acrescido: que é o de não saber quando é que recebe as suas facturas.
Ou seja, pode gerar-se um círculo vicioso no qual uma empresa em boa situação económica acaba por ver a sua situação degradar-se por incumprimentos financeiros de outras empresas, isto é, acabam por ser vítimas da exportação da crise por parte de outras empresas. A lógica está aqui: haver uma auto-regulação, um compromisso de comportamento ético, no qual as empresas oferecem umas às outras um quadro estabilizado em que existe um risco moral reduzido no cumprimento dos prazos acordados. E a economia funciona com menos necessidades de financiamento, o que é um aspecto muito importante, especialmente numa época de racionamento de crédito em que vivemos. Ou seja, só tem vantagens.
Coloca então a tónica num compromisso que tem de ser honrado pelos empresários?
Basicamente. Para um país habituado a pedir tudo ao Estado e no qual o Estado tem um papel insubstituível em quase tudo, aqui o papel central é o dos próprios empresários e das estruturas empresariais que, se cumprirem acordos relativos a práticas, só terão benefícios. É uma lógica de eficiência colectiva: a redução do risco moral traduzida em redução de custos com base não em gastos de dinheiro público ou de dinheiro privado, mas sim com gastos de ética e de inteligência de quem honra compromissos.
E, caso contrário, poderemos correr o risco do desaparecimento de uma geração empresarial?
O que temos pela frente é uma situação que se degradou bastante, ou seja, temos riscos significativos de juntar uma estagnação económica com uma recessão, para além de uma possível disrupção de um conjunto de mercados e de um conjunto de actividades que realmente não voltam a reentrar no mercado tão depressa (ou desaparecerão para sempre). Ou seja, há aqui um problema que é o efeito de destruição que esta epidemia da crise financeira pode trazer para muitas empresas e, com base nesta perspectiva, há empresas que, por causa desta degradação financeira, podem vir a sair do mercado. E há portanto o risco, numa lógica de “salve-se quem puder” e é isso que é possível evitar. É como a metáfora do incêndio em que as pessoas podendo passar relativamente bem, acabam por se atropelar umas às outras e morrer queimadas. Na prática, convém ter a noção de que há jogos destrutivos como seja aquele de passar a crise para o parceiro do lado, atrasando o prazo de pagamento.
Um efeito sistémico, portanto.
Se todas as empresas tentarem passar a crise às outras, acabam por a transmitir a elas próprias. E sim, é sistémico. Há que ter a noção que não é solução exportar a crise através dos prazos de pagamento para os fornecedores. Com o Estado em crise e com necessidade de reduzir o peso do orçamento e com as empresas a degradar o prazo de pagamento, a única maneira de evitar coisas mais graves, de ambos os lados, é pôr ordem nas contas públicas e conseguir medidas como podem ser os acordos a estabelecer voluntariamente entre as empresas.
Mas face ao estado deplorável das contas do país, e mesmo sendo possível convencer os agentes económicos dos ganhos enormes que adviriam desta mudança, acredita que existam condições para as empresas se prepararem para a transposição da directiva [Março de 2013]?
A directiva é uma orientação. Não se cria riqueza por decreto. Mas é possível ter boas regras e boas políticas. Ou escolher-se o caminho inverso. Não é por se adoptar a directiva que se resolve o problema, mas ao adoptá-la está-se a contribuir para a resolução do problema. Como se sabe, há em Portugal muito pouca preocupação com o cumprimento das leis. Mas neste caso nem se trata de cumprir a lei. Há um quadro objectivo, que é mais vasto, mas não se resolve este problema dos pagamentos e recebimentos por actuação da lei. A directiva cria um quadro absolutamente interessante que é desafiar a sociedade portuguesa a trabalhar com prazos de pagamento e recebimento a 60 dias. E, estando nós com 82, temos um caminho a fazer para chegarmos aos 60 dias. A primeira questão chave é: poderemos chegar aos 60 de um dia para o outro? Não. E portanto conviria que, ao adoptar a directiva, ficasse claro para os agentes económicos que há um período de convergência para baixar esse valor que se situa acima dos 60 dias. Todavia e para o baixar, não vamos lá por via legal. Mas sim por via real, pelos comportamentos das empresas, pelo seu melhor funcionamento e pelo dos mercados. Portanto e desse ponto de vista, a directiva funciona como um objectivo, como um compromisso nacional, como proposta de lei. Do ponto de vista do compromisso e não do ponto de vista dos processos.
Mas isso quer dizer que quando a directiva for transposta em 2013, não existem quaisquer mecanismos para o seu cumprimento?
Automáticos, não. Cria-se é um quadro muito mais favorável às actuações públicas e privadas, ou seja, a directiva vai permitir confortar aqueles que estão a batalhar para que os prazos se reduzam, mas não é ela que vai reduzir os prazos. Para quem estiver fora dos 60 dias, existe uma base legal para um conjunto de intervenções, mas também espero que não se escolha uma abordagem estratégica legalista. Ou seja, tem que ser um processo de convergência das empresas para uma maneira de funcionar em sintonia com a directiva. E, mais uma vez, salvaguardo que a directiva vai é ajudar aqueles que estão a trabalhar no bom sentido.
Porque uma empresa que não paga porque não pode, não o fará porque existe uma directiva. Mas uma empresa que não paga, podendo pagar, porque está a exportar a crise para os outros, fica com a vida mais difícil uma vez publicada a directiva, apesar de continuar a precisar de ser convencida para as vantagens de um quadro colectivo e não de um quadro individual. A directiva o que faz é sinalizar à sociedade portuguesa e aos empresários um objectivo, permitir um conjunto de intervenções suportados legalmente na própria directiva. Mas esta batalha ganha-se ou perde-se em função da capacidade que os empresários e os poderes políticos tenham de congeminar um processo para que haja uma efectiva convergência e de empenho para que a prazo – a ideia é dois anos, mas eventualmente podem ser necessários três – isso seja possível. Obviamente que estamos perante um prazo que reflecte uma crise económica e esperemos que, dentro de dois ou três anos, a crise comece a desagudizar-se: num horizonte de três anos é possível colocar essa perspectiva.
E o pior que poderíamos fazer era converter a transposição da directiva numa tarefa impossível, o que só nos daria descrédito. Portanto, temos de dar crédito à directiva e temos de o fazer através da criação de um conjunto de iniciativas do tipo da que a ACEGE está a tomar. E um conjunto de iniciativas que têm de ser tomadas pelos poderes públicos, que são convergentes e que, na prática traçam um caminho que é o da colaboração e não o do individualismo.
Mas se as empresas actualmente dão primazia à negociação antes de chegarem a situações limite de contencioso, especialmente devido à morosidade da justiça e ao temor de verem afectadas negativamente as suas relações comerciais, existirão condições eficientes para alterar estes comportamentos enraizados?
Mas essas situações poderão ser drasticamente reduzidas com a directiva, pois esta permite tomar um conjunto de iniciativas legais, a par de um conjunto de comportamentos que são penalizadores dos prevaricadores. A directiva tem também a lógica de ser um referencial europeu, de melhoria, e que se percebe que é possível ser alcançado pela economia portuguesa. Pois é um referencial que melhora a economia portuguesa do ponto de vista do seu funcionamento. E é nisso que vale a pena apostar. No fundo há uma colaboração entre a justiça, a economia, as finanças, o mundo empresarial… na medida em que existe um quadro legal muito mais claro e muito mais objectivo. Para além de ser um objectivo nacional para o qual devemos convergir. E penso que esse é o grande mérito da iniciativa que a ACEGE está a lançar, trazendo para cima da mesa esta questão e mostrar que é possível fazer coisas para que ela exista, independentemente dos poderes públicos, ou da justiça, ou das leis. Mas sim por iniciativa dos próprios empresários. Obviamente que se for realizado em sintonia com os poderes públicos, com a justiça e com as leis, melhor.
Em Portugal é costume dizer-se que “pagar e morrer, quanto mais tarde melhor”. Como também é evidenciado no estudo, estamos perante uma profunda questão cultural, nomeadamente de cultura organizacional, que é extremamente difícil de alterar. E o problema não é só de Portugal, mas dos demais países do sul da Europa. O Professor defende que a solução reside em implementar a ética e a confiança para que os agentes económicos adoptem uma cultura de compromisso de pagamento pontual o que constitui, aliás, um dos eixos principais de acção propostos pela ACEGE, a associação que encomendou o estudo.
Quão optimista está relativamente a esta alteração da cultura organizacional?
Eu estou bastante optimista. Porque um dos efeitos desta crise vai ser o de retirar do mercado empresas sem qualidade e práticas sem sustentação. O mundo vai evoluindo e esta crise representa, nomeadamente na Europa e em Portugal, fechar as portas a soluções de facilidade e vai implicar que as empresas e as pessoas percebam que o que é difícil é difícil e não pode ser fácil. E que certas coisas têm de ser feitas com mais capital próprio, e não com tanto apoio público ou com tanto risco dos clientes ou dos consumidores, e não da empresa que, no fundo, gere esse negócio. As famílias vão perceber que vão progredir na sua vida de uma forma que não pode ser sustentada no endividamento, mas na sua capacidade de obter rendimentos, que está ligada à sua própria qualidade, cultural, educacional, de competências.
Acho que poderemos esperar resultados positivos para os países do sul da Europa, e Portugal não tem razão nenhuma para não ser dos melhores nesse aspecto. Estes países terão de se tornar menos solistas do ponto de vista da sua história. Vão ter que se tornar mais ordenados, com regras mais estáveis, com empresas mais sólidas, com outros elementos de confiança. A crise tem-se agudizado nestes países por problemas de confiança, não da confiança da excitação dos mercados, mas da confiança que é baseada em regras, em coisas sólidas, duradouras e objectivas. E esse é o quadro para o qual estamos a evoluir e vamos continuar a fazê-lo e aí podemos ter confiança. E perceber que não é possível depender tanto de comportamentos individuais, mas sim da nossa capacidade de gerar “instituições” que orientam esses comportamentos. O individualismo vai deixar de ter lugar no jogo.
Acredita então que a crise levará a uma “limpeza” de empresas e práticas obsoletas?
É normal que, numa crise, as empresas mais sólidas resistam melhor que as menos sólidas. Tal como é normal que surjam novas iniciativas. Portanto temos de ter bastante confiança que, saídos da crise, por mais difícil que nos pareça o caminho para o fazer, iremos ter empresas melhores. Empresas que cresceram, que se reorganizaram e outras que surgiram de novo, com propostas que fazem muito mais sentido. E aceitar o desaparecimento de outras que estão esgotadas, que estão no limite do seu modelo de negócio, que não eram suficientemente limpas, nem atractivas ou competitivas. Neste sentido, a perspectiva é de optimismo. Sobretudo se ganharmos aquele que é talvez o principal desafio que temos e que é o da internacionalização. Se percebermos que o nosso futuro depende mais da capacidade que tenhamos de produzir e vender para mercados,pessoas e empresas a que não estamos habituados, isso alarga os nossos horizontes, permite-nos ser mais ambiciosos, criar mais emprego e empresas mais sólidas. Basicamente acredito que temos imensas dificuldades, mas que também temos um caminho em que podemos confiar. Nós seremos, no futuro, aquilo que quisermos ser neste quadro restrito de escolhas.
E isso passa também por uma reinvenção da própria empresa?
Exactamente. Vamos ter que ter formas de rendimento mais complexas, com componentes fixas e variáveis; e vamos ter que ter uma relação entre proprietários, gestores, quadros, trabalhadores e outros, muitíssimo mais complexa. Portanto, da reinvenção de tudo isto, penso que não vai sobrar muito do corporativismo ou individualismo que existe hoje na sociedade portuguesa. A lógica de um proprietário que não sabe muito do negócio, mas que é capitalista; um gestor que sabe muito do negócio, mas não tem capital e assalariados que não têm grande poder e apenas cumprem ordens é uma visão de empresa muito redutora e está muito ultrapassada. O mundo é feito de redes, de colaboração, é feito de comunidades. As pessoas têm percebido as vantagens das comunidades. E não creio que custe muito perceber as vantagens de uma comunidade económica.
Ou seja, defende também uma partilha de riscos e de oportunidades.
Exactamente. E de rendimentos também. |