A pobreza desafiou sempre os académicos, como mostra a multiplicação de representações: os pobres como alteridade, como o estrangeiro; a figura a implorar; a mitologia medieval da figura dos pobres e do discurso bíblico; a pobreza em massa no mundo do proletariado; a indigência e as suas representações em mudança proporcional à urbanização; a cultura dos pobres; os estudos comportamentais e de exclusão social na sociedade pós-industrial; a exclusão, a pobreza contemporânea e os trabalhadores pobres
POR PEDRO COTRIM

Na semana em que se assinalou o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, a Pordata fez as contas à inflação: o salário mínimo rectificado com os valores dos preços que sobem passa de 705 € para 639 €. A pensão mínima de velhice ou invalidez vale 278 € por mês, mas com a correcção da inflação encolhe para 252 €. O carácter nominal do numerário prega-nos uma vez mais a partida, transformando a mão cheia de nada em várias mãos cheias de nada. Estabelece-se o limiar de pobreza nos 554 € mensais, mas bem sabemos que este valor é utópico. E podemos começar mesmo pela dificuldade deste conceito.

Realmente, não existe uma definição universal de pobreza. Na União Europeia afirma-se que são pobres as pessoas cujos recursos materiais, culturais e sociais ocasionam a exclusão de um modo de vida ‘aceitável’ no país onde vivem. Embora genérica, esta abordagem sugere três questões importantes:

  • a definição de pobreza é convencional: a escolha de um determinado indicador reflecte orientações políticas resultantes de representações sociais e de várias considerações;
  • a pobreza é relativa: é definida em termos de estilos de vida ‘aceitáveis’, obviamente com variação espacial e temporal, e referem-se a uma abordagem em termos de desigualdade bastante heterogénea:
  • a pobreza é multidimensional e está longe de ficar reduzida à privação de recursos monetários, estendendo-se a todas as condições de vida dos agregados (habitação, saúde, educação, etc.). 

De um modo mais tradicional, têm sido utilizados três tipos de indicadores: rendimento, condições de vida e acesso a benefícios sociais. A atenção pública centra-se mais frequentemente no rendimento e na sua comparação com os valores tidos como essenciais para o país ou zona em questão.

O indicador relativo dos baixos rendimentos apresenta a grande vantagem de reflectir directamente as desigualdades na distribuição directa do dinheiro, permitindo assim indicar o nível de coesão social alcançado por um país numa qualquer altura. Na EU adoptam-se os 60% do valor de rendimento médio. Não é perfeito, e na sua primeira limitação, como tem em conta mudanças estruturais no rendimento, permanece estabilizado ao longo do tempo; também reage mais dificilmente a desenvolvimentos de curto prazo que, embora muitas vezes fracos, podem intervir em termos de desigualdade: portanto, pobreza.

Outra limitação importante: na comparação internacional, o indicador pode apresentar resultados relativamente contra-intuitivos. Assim, com os 60% do nível médio de rendimento, a pobreza parece ser maior nuns países que noutros, o que se explica pela circunstância de a taxa de pobreza ser muito fundamentada nas lacunas de rendimento existentes em cada país. Por exemplo, a comparação entre a Eslováquia e os Países Baixos é exemplar a este respeito. Ambos os países têm a mesma taxa de pobreza (ou seja, o mesmo nível de desigualdade), mas os Países Baixos têm uma linha de pobreza quase três vezes superior à da Eslováquia. De outro modo, o valor em euros que determina o limite é três vezes maior.

Por causa destas imperfeições, alguns observadores defendem a adopção de indicadores alternativos, como o que mede a pobreza absoluta ou o que assinala o percentil dos 10% das famílias mais pobres; outros serão tentados a favorecer a taxa de pobreza para não incorporar situações sociais muito diversas na aferição da pobreza. Estas propostas, que teriam a vantagem da simplicidade, são indicativas de uma deriva que deve ser rejeitada, pois também teriam o efeito de reservar o estatuto de «pobre» à periferia mais excluída da população e poderiam sugerir que outras situações não seriam associadas a situações de exclusão.

Na vez de nos concentramos num ou noutro indicador, talvez seja na intersecção dos baixos rendimentos e das condições de vida que podemos perceber a realidade do problema de forma mais dinâmica. É muito diferente qualificar os rendimentos e a qualidade da habitação.

As limitações deste método têm sido amplamente discutidas, e o indicador sugerido suscita a questão da validade do índice de preços habitualmente utilizado como base para a mudança da linha de pobreza em relação à cronologia. Um indicador que subestime o aumento dos preços, e, particularmente o dos produtos de consumo quotidianos que contribuem para uma parcela significativa das despesas das famílias, coloca em perspectiva a perda do poder de compra dos mais pobres.

Um segundo argumento respeita uma possível deriva da definição da pobreza para termos absolutos. O rendimento médio, usado para determinar a taxa de pobreza no que se ganha, varia anualmente com o ritmo de crescimento e o aumento dos preços. Em tais condições, as lacunas entre as famílias mais pobres e a população no seu todo terão aumentado, mas o indicador de pobreza terá ignorado a tendência. O método separa efectivamente a questão da pobreza e vira costas à ideia de que a pobreza implica uma visão mais ampla da integração do indivíduo na sociedade como um todo no nível de desenvolvimento que tem num qualquer instante.

Os problemas mencionados suscitam questões diferentes; para lhes responder, é importante que a medição da pobreza não se limite à observação de um único indicador. É pela combinação de perspectivas que se torna possível a aproximação da realidade da pobreza, que continua um fenómeno complexo.

Na UE, a pobreza é oficialmente de um agregado familiar é definida como os tais 60% do rendimento médio. Como qualquer convenção, apresenta falhas: mascara diferenças de rendimento entre diferentes países, agrega situações de relativa restrição e de privação absoluta sob um único indicador.

A medida da pobreza utilizada na Europa contrasta com a medida da pobreza noutros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a pobreza não é medida em relação à riqueza nacional, mas a um nível de pobreza federal que corresponde à pobreza absoluta. Se usarmos a definição europeia de pobreza, os Estados Unidos e a UE têm um nível de pobreza equivalente ao início dos anos 2000 (cerca de 15% da população), mas se relacionarmos os dados americanos com a definição europeia de pobreza, a taxa de pobreza nos Estados Unidos é duas vezes maior.

Estes indicadores permitem medir trajectórias de tendências de pobreza e tentar entender as suas causas. A primeira questão é a importância do estado de bem-estar social na redução da pobreza nas últimas décadas. A pobreza caiu para metade no sul da Europa entre o início da década de 1970 e o ano 2000. A redução deve-se, em grande parte, ao sistema de pensões, que possibilitou praticamente pôr de lado uma triste constante histórica: a pobreza entre os idosos. Não só o impacto do estado de bem-estar social é sentido ao longo do tempo sobre a pobreza, mas também ajuda a explicar, em parte, as diferenças entre os países.

A pobreza estabilizou-se a partir do ano 2000, mas tornou a subir nos últimos anos. Dentro da evolução quantitativa, aparece uma transformação qualitativa: afecta cada vez mais as populações em idade de trabalho e, em particular, os jovens. O impacto do desemprego na exposição à pobreza terá de ser enfatizado. Além da relação com o mercado de trabalho, a composição familiar também desempenha um papel importante: por exemplo, as famílias de pais solteiros são particularmente afectadas.

O indicador oficial de pobreza na Europa é portanto representativo da relação da sociedade com quem pouco tem e torna possível ler tendências, mas também apresenta limitações importantes. Entre elas, destacam-se que a relatividade do indicador nada diz sobre as desigualdades entre as populações pobres. Para medir estas desigualdades, calcula-se uma espécie de «gradação da pobreza», ou seja, a diferença entre o rendimento médio dos pobres e a linha da pobreza. Quanto maior o diferença, mais pobres os pobres.

Indicadores quase absolutos, que medem a pobreza nas condições de vida, podem também ser usados para corrigir o carácter relativo do primeiro. Uma questão interessante: enquanto as sociedades europeias procuram compreender os fenómenos da extrema pobreza ou da exclusão, fazendo maior uso de indicadores absolutos ou quase absolutos, os Estados Unidos começam a adoptar indicadores relacionados com a pobreza extrema.

Outra limitação inerente destes instrumentos é a introdução de distorções na medição de certos fenómenos. Hoje em dia há um grande interesse por um fenómeno que se julgava confinado aos países anglo-saxões «liberais»: os trabalhadores pobres e aqui regressamos aos 60% da UE: a maioria são homens, mas esta representação apenas pode ser explicada porque estatisticamente os homens vivem mais em solidão do que as mulheres em condições de baixos salários. No entanto, a medida da pobreza tem em conta o rendimento familiar, e, deste modo, também o do cônjuge, quando é o caso. A agregação em família do cálculo dos recursos pode esconder a exposição das mulheres aos empregos com baixos salários, empregos precários ou em part-time.

As medidas oficiais de pobreza não fornecem uma perspectiva completa das organizações sociais. O termo «exclusão» emergiu como referência e aponta para a importância do desemprego de longo prazo; por outro lado, e sobretudo nos países anglo-saxões, a principal preocupação é a «dependência» da assistência. Esta dimensão está gradualmente a ganhar terreno e talvez reflicta a aceitação pela responsabilidade na pobreza.

A definição da pobreza e os seus contornos difusos são uma das primeiras indicações da falta de clareza na sua designação e compreensão. A pobreza, no entanto, desafiou sempre o académico, como mostra a multiplicação de representações: os pobres como alteridade, o estrangeiro; a figura a implorar; a mitologia medieval da figura dos pobres e do discurso bíblico; a pobreza em massa no mundo nascente do proletariado; a indigência e as suas representações em mudança proporcionais à urbanização; a cultura dos pobres; estudos comportamentais e conexões sociais na sociedade pós-industrial; exclusão, pobreza contemporânea e os trabalhadores pobres. 

O senso comum estabeleceu barreiras na qualificação sobre o que é percebido ou observado, e as representações colectivas são fortes na sua designação de pobreza como evidência que pode ser vista e não precisa de ser especificada. A pobreza é por vezes é a designação de um grupo por características objectivas e universais (por exemplo, rendimentos ou dieta), recorrendo à economia para o rigor matemático da precisão e para a visão dicotómica: de um lado, os pobres; do outro, os não pobres.

A figura dos pobres na literatura, a percepção da sua condição por si próprio são teorizações incompletas de um fenómeno complexo, onde a abordagem do grupo e os seus valores não consideram a dimensão social. Por outro lado, a dicotomia do parágrafo anterior reduz a relação da sociedade com os pobres a uma abordagem relacional. Tem-se assim encontrado grande dificuldade em identificar um fenómeno que continua a ser um dos mais complexos na história contemporânea.

Existe portanto o direito de pedir à sociologia que restaure o que um facto social, que tem sido visto como essencial ao longo do tempo, deve às suas condições socio-históricas de aparência por causa da sua própria morfologia, mas também da perspectiva da percepção que existe desse facto social. É possível mostrar que a pobreza existe de forma diferenciada, de acordo com as percepções criadas pelas condições sociais e históricas. Por isso, está profundamente enraizada no social e é quase exclusivamente uma condição social – por oposição a natural.

Tornar a catalogar a abordagem da pobreza significa assim distinguir entre uma simples falta de recursos financeiros, e, de forma mais ampla, o que define a condição social da pobreza nos seus diferentes contextos. Mas, mais que tudo, importa absolutamente combatê-la e erradicá-la.