Uma brincadeira para todas as idades foi sempre contar os carros diferentes que se vêem nas ruas – vamos apostar: encontramos mais carros amarelos ou verdes no caminho até à praia? Há agora um elemento novo em mudança contínua para quem está atento – os carros eléctricos que começam a abundar no nosso dia-a-dia. A transição energética está para ficar, e quanto mais rapidamente for efectuada, melhor. A partir de 2035, a venda de veículos novos a combustão, seja a gasolina ou gasóleo, será proibida pela regulamentação europeia. A transição já está em curso, com os automóveis eléctricos a representarem mais de 25% das vendas de automóveis em Portugal nos primeiros nove meses de 2023
POR PEDRO COTRIM

Este número deverá aumentar de ano para ano, uma vez que as regulamentações de Bruxelas obrigam os construtores a aumentarem a percentagem de carros eléctricos nas vendas. Esta transição será realmente cada vez mais visível nas estradas, mas permanecem muitas questões: os carros são realmente ecológicos? As baterias serão poluentes? Quem tem menos posses poderá comprar um eléctrico? Haverá construtores ou países mais beneficiados por esta transição obrigatória?

No que respeita ao aspecto ecológico, a resposta ainda é não: o carro eléctrico não é ecológico em si mesmo porque a sua produção é poluente. A extracção e a refinação dos metais que compõem a bateria (lítio, níquel e cobalto, entre outros) são processos que consomem muita energia e poluem o solo e a água. Fazendo as contas, a produção de um veículo eléctrico emite duas a três vezes mais gases com efeito de estufa do que a do seu equivalente de combustão interna. O que altera a situação dos veículos movidos por bateria é a sua fase de funcionamento, quando podem ser recarregados com electricidade proveniente de uma fonte pouco poluente. Neste caso, a substituição do petróleo pela electricidade reduz consideravelmente as emissões de carbono durante a utilização em cerca de dez vezes.

Ao longo de todo o seu ciclo de vida, da produção à utilização, o automóvel eléctrico tem um impacto carbónico duas a três vezes inferior ao do seu equivalente a combustão interna. É a grande vantagem. Todavia, ter carros eléctricos implica igualmente descarbonizar a electricidade. Em 2022, produziram-se em Portugal 48 808 Gwh, dos quais 29 910 provieram de fontes renováveis. Significa mais de 62%, com números cada vez maiores das energias eólica e solar, mas o cenário não se generaliza para o resto do mundo.

E nem todos os carros eléctricos são iguais. O peso do veículo e a potência da bateria têm um impacto importante no equilíbrio ecológico, com o óbvio aumento da bateria. Do mesmo modo, se se quiser uma autonomia prolongada, será necessária uma bateria mais potente e um veículo maior para a transportar. O resultado é o mesmo em ambos os casos: maior consumo de metal e uma maior pegada de carbono, que no caso de um SUV é cerca de três vezes maior que a de um citadino. Importa portanto privilegiar os automóveis pequenos concebidos para as deslocações diárias (a grande maioria das utilizações, efectivamente), não para as deslocações longas, que representam apenas uma utilização marginal.

É certo que os automóveis eléctricos reduzem a nossa pegada de carbono em comparação com os de combustão interna, mas como não são totalmente neutros em termos de carbono, a sua substituição pela combustão interna não é suficiente para cumprir os compromissos climáticos. Por conseguinte, há que questionar e alterar a forma como pensamos a nossa mobilidade, melhorando a eficácia energética e logística dos transportes colectivos.

A electricidade pode libertar os automóveis do petróleo, mas não resolve as outras críticas, como a quantidade de energia utilizada para transportar uma pessoa – uma tonelada, aproximadamente. Certamente que os automóveis eléctricos podem reduzir certos tipos de poluição, como a atmosférica. Uma vez que as partículas libertadas pela combustão do combustível são eliminadas, a contribuição do automóvel para a poluição do ar ficará reduzida, mas os poluentes gerados pela travagem ou pelo desgaste dos pneus não irão desaparecer. Por outro lado, a mobilidade eléctrica vai aumentar significativamente a procura de certos metais, como o cobalto e lítio, o que tornará ainda mais sensíveis todas as questões ecológicas e sociais associadas à sua extração e refinação, bem como a dependência dos países produtores.

A reciclagem das baterias é frequentemente apresentada como uma forma de reduzir a procura de metais. Será apenas mais uma promessa baseada num progresso técnico ilusório ou será uma verdadeira alavanca para a economia circular? Existem locais de reciclagem em Portugal, mas, de momento, tratam volumes muito pequenos, dado o reduzido número de veículos eléctricos em fim de vida. A legislação europeia exige uma taxa de reciclagem crescente e a incorporação de metais reciclados. A questão também é de custos, pois há que tornar a reciclagem competitiva em relação à extracção, com óbvios limites financeiros e energéticos. Adiciona-se ainda a questão dos postos carregamento. Em Portugal são quase 5500, um número sobretudo distribuído pelo litoral. O número terá de acompanhar o crescimento do número de veículos em circulação, com uma taxa de aproximadamente oito pontos de carregamento por cada 100 veículos eléctricos em circulação.

A outra questão que tem de ser abordada para que os automóveis eléctricos se generalizem é a do preço. Actualmente, um carro eléctrico é alguns milhares de euros mais caro do que um com motor de combustão interna, mesmo contando com as ajudas do governo. Estará esta transição reservada aos mais ricos? É verdade que recarregar a bateria é cerca de três vezes mais barato do que abastecer-se de gasolina para percorrer a mesma distância, mas não se cobre necessariamente o custo do investimento adicional aquando da compra do automóvel. Este facto é suficiente para desencorajar muitas famílias modestas. Os fabricantes prometem equiparar os preços dos veículos eléctricos aos dos modelos a combustão dentro de uma década. A receita para baixar os preços é antiga como a própria indústria: o progresso tecnológico e as economias de escala tornadas possíveis pelo aumento das vendas.

Os construtores previam a paridade de preços entre os veículos a combustão e os eléctricos para 2027 ou 2028, mas é provável que suceda um pouco mais tarde. Acima de tudo, e ao mesmo tempo, o mercado dos automóveis de combustão interna está a subir de gama e, por conseguinte, a tornar-se mais caro. Se esta tendência se mantiver, o preço dos automóveis eléctricos será alinhado com o dos automóveis de combustão interna a um nível de gama mais elevada.

Esta subida de gama é, em parte, o resultado da moda dos SUV, com os 4×4 urbanos a representarem actualmente cerca de um terço de todas as vendas. É uma tendência que afecta todo o sector e, por enquanto, sobretudo os veículos de combustão interna, que continuam a representar a maioria das vendas. Em termos práticos, significa que estes veículos, mais pesados e menos aerodinâmicos, necessitam de um motor ou de uma bateria mais potentes. E quanto mais maciços e potentes forem os veículos, mais caros serão. Os construtores estão a aumentar a sua gama para veículos mais sofisticados, com mais opções e mais conforto, porque é aí que as suas margens são mais elevadas. E a regulamentação não os incentiva a produzir carros mais pequenos e mais económicos em termos de consumo de combustível.

Segundo a legislação ambiental europeia, um Tesla Model X e um Renaul Zoe são equivalentes em termos fiscais porque são ambos eléctricos, embora o primeiro emita o triplo das emissões de carbono do segundo – pesa quase o dobro. Entre as soluções que estão a ser estudadas para mitigar esta situação, há regulamentações que têm em conta a potência da bateria, o teor de carbono do seu fabrico e a energia consumida por quilómetro, a fim de reorientar o mercado para uma maior sobriedade. A pegada de carbono das baterias depende em grande parte do local onde são fabricadas e do cabaz de electricidade do local onde se situa a fábrica. A China, que tem um mix energético muito intensivo em carbono, domina o sector, com 75% da capacidade de produção mundial. O carro eléctrico de amanhã será chinês? Há fortes probabilidades de que seja o caso.

Na Europa, as gigafábricas continuam a ser maioritariamente controladas por asiáticos e localizam-se sobretudo no leste do continente: Polónia e Hungria, países cuja produção eléctrica é altamente dependente do carvão, o que nos conduz novamente à mesma pergunta: o carro eléctrico de amanhã será chinês? Há fortes probabilidades de que assim seja, dada a liderança de Pequim em todos os sectores da indústria.

Acima de tudo, a China sabe agora como fabricar pequenos automóveis eléctricos a preços mais acessíveis, enquanto os fabricantes europeus se concentram em veículos de topo de gama e muito mais caros. Seja por razões ecológicas, sociais ou industriais, a transição para os veículos eléctricos exige uma reorientação da concepção do automóvel, correndo o risco de se constatar, dentro de uma década, que as promessas desta tecnologia não foram cumpridas. E, sobretudo, não queremos que os nossos filhos e netos continuem a contar muitos carros a gasolina nos seus passeios em família.

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