POR PEDRO ANICETO
Gambozinos são seres míticos, animais que se descrevem a adultos e crianças no sentido imaginário de os ir caçar. Uma farsa montada em complot entre os que já caíram no conto, na intenção de arrastar para uma caçada imaginária. Uma vez cumprida a praxe, compete aos logrados perpetuar a fábula, descrevendo a falsa esperança da caçada imaginária por forma a entusiasmar mais pessoas que ainda não se deixaram convencer a alinharem em novas excursões venatórias a animais que não existem a não ser na imaginação dos intervenientes.
Olá, o meu nome é Pedro e já cacei gambozinos. Equipei-me com uma lanterna e um saco de plástico e fui levado com mais alguns “caçadores” para a clareira de uma floresta com a missão específica de guardar um carreiro onde era suposto passarem os gambozinos mais gordos. Em momento algum me lembrei de questionar se os gambozinos gordos caberiam todos no meu saco de plástico. Na minha mente cheia de aventuras inflamadas nem um se atreveria a escapar-me na boca daquele carreiro. Nem que tivesse de agarrar num pau para os convencer a entrar no saco. Palavra! Nem sabeis bem o que me está a custar desfazer este mito à paulada. Mas algum dia teria de acontecer…
Quando a realidade me telefonou e vermelho de raiva fui confrontado com o riso descontrolado dos organizadores da caçada a estes esquivos seres, restavam-me duas hipóteses: avisar todos os incautos que pudesse ou manter a encenação, contar a quem não participara na fantástica caçada na fabulosa aventura que perdera, relatar quantos bichos tinha conseguido meter no saco e passar de enganado a farsante. Todos os iniciados acabam por se tornar iniciadores, o mundo vai rodando e há uma sempre eterna conspiração de farsantes.
O mundo ganhou, desde há semanas, uma edição digital da caça ao Gambozino. Chama-se Pokemon Go e casa a ficção da Nintendo, mãe da marca e das criaturas Pokemon com um mundo real calcorreável. E repare o leitor que grafarei pela segunda vez na minha vida numa crónica digital a palavra ‘calcorreável’ para frisar bem que este jogo obriga as pessoas a deslocar-se pelo mundo (não no sentido de vou ali já volto, mas no sentido de ir fazer maratonas e querer repetir após a primeira).
[pull_quote_left]Caso o leitor tenha estado ausente de férias em Aldebaran nas últimas duas semanas, não saberá que há no mundo cerca de oitenta milhões de pessoas a jogar Pokemon Go. Oitenta milhões. Parece que estou a falar de sanções europeias mas, na verdade, são mesmo oitenta milhões de jogadores que estão aí pelas ruas a caçar monstros mais ou menos irrequietos[/pull_quote_left]
O jogador sai de casa munido de um smartphone ou tablet (o equivalente a sacos de plástico do tempo em que não era crime ter-se um…) e doses generosas de bateria (o sucedâneo de um pau). O pau figurado, obviamente. Todos nós sabemos que na vida podemos conseguir coisas maravilhosas com um belo discurso motivacional, mas se acrescentarmos um pau ameaçador, produzir-se-ão sortilégios.
Caso o leitor tenha estado ausente de férias em Aldebaran nas últimas duas semanas, não saberá que há no mundo cerca de oitenta milhões de pessoas a jogar Pokemon Go. Oitenta milhões. Parece que estou a falar de sanções europeias mas na verdade são mesmo oitenta milhões de jogadores que estão aí pelas ruas a caçar monstros mais ou menos irrequietos. Não se fala de outra coisa. Há relatos de locais que, em Lisboa, ficavam assustadores a partir de determinada hora e agora ficam repletos de gente e assustadores na mesma.
Chegam-me histórias de pais que durante anos quiseram saber como arrancar filhos do sofá e que agora me perguntam qual a melhor técnica para os amarrar ao mesmo. Cachorros que era um castigo levar à rua e que agora se recusam a sair de casa porque já urinaram todos os postes visitáveis num raio de vários quarteirões.
Sim, esta febre é transversal na sociedade. Não conhece idades, sexos, raças ou credo. E ‘Credo!’ é uma excelente palavra para definir o que pensei quando numa viagem curta de autocarro vejo 40% dos passageiros a viajar em mapas à procura de monstros mais ou menos irrequietos.
A geração Pokemon, aquela que há ainda poucos anos cresceu acompanhada de Pikachu e Cia não é obviamente a minha. Já não tinha idade para a apreciar, mas este fenómeno obrigou-me a revisitá-la. Gosto de conhecer a matéria sobre a qual escrevo (os únicos isentos desta obrigação são as pessoas que escrevem sobre Economia). Os personagens têm agora uma segunda vida sem necessitarem de make-up ou revamp. Quase se ouvem as registadoras da Nintendo e da Niantic a funcionar. O jogo permite compras de acessórios virtuais. Em caso de adição extrema o jogador pode adquirir as peças que lhe faltam para continuar. Ou pode conquistá-las palmilhando quilómetros de ponto em ponto.
[pull_quote_left]Em que momento da evolução computacional é que passámos de escandalizados com o que a rede e os seus actores sabem sobre nós e os nossos hábitos sociais e pessoais para que, de um momento para o outro, de mão beijada, passemos a fornecer localizações, percursos, IP, acesso a câmaras, microfones, imagens e muitos outros detalhes?[/pull_quote_left]
A ideia em si é impressionante. O jogador tem por missão capturar os monstros, à empresa produtora compete criá-los e distribuí-los. E é aqui que está (também) a magia do negócio (por acaso não se tinha esquecido de que estamos a falar de um grande negócio, pois não?). Os pontos de captura podem ser adquiridos. Posso negociar com a Niantic um determinado ponto. Imagine uma loja num ponto da cidade. Posso comprar à dona do jogo uma dada série de monstros a determinada hora. Basta que eu queira animar uma loja em horas mortas, comprar esse direito e hordas de caçadores invadirão o espaço que surgirá nos respectivos mapas. Colombo não teria um ovo mais simples de colocar em pé.
É claro que isto coloca problemas de segurança. Já vi bandos de miúdos atravessar ruas atrás de um Zubat (difíceis de apanhar, eu que o diga), como se corressem atrás de uma bola que se lhes escapa. Já há relatos de quem tenha caído, à noite, por não querer tirar os olhos do ecrã enquanto caminha.
Se eu fosse bandido compraria um ponto isolado e escuro e teria a certeza de que todas as pessoas que o fossem visitar trariam consigo um smartphone ou um tablet. Parece ficção mas é muito fácil…
E como ficamos nós, o rebanho, em matéria de segurança? Em que momento da evolução computacional é que passámos de escandalizados com o que a rede e os seus actores sabem sobre nós e os nossos hábitos sociais e pessoais para que, de um momento para o outro, de mão beijada, passemos a fornecer localizações, percursos, IP, acesso a câmaras, microfones, imagens e muitos outros detalhes? Que espécie de feitiçaria é esta?
A curva de atracção de Pokemon Go começou agora a subir. Dou-lhe dois anos. Dois anos em que o termo Realidade Aumentada vai entrar sub-repticiamente nas nossas vidas e mudar, ainda que temporariamente alguns hábitos. Falamos daqui a uns milhões de dólares e uma ou duas boas ideias.
Consultor de TI
Curiosamente, esta peça faz-me recordar a célebre resposta do Einstein a um jornalista quando questionado sobre como poderia ser a terceira guerra mundial…
“- A terceira não sei, mas todas as seguintes serão apenas com pedras e paus.”
Tal como a caça aos Gambuzinos… Sem bits nem bytes, pisando as pedras, e munidos com paus… :p
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