A intersecção entre a saúde e as alterações climáticas está a subir significativamente no top dos maiores problemas relacionados com estas últimas. A título de exemplo e num relatório divulgado ontem, o qual envolveu 114 peritos de 52 instituições, estima-se que “no cenário de 2°C, as mortes relacionadas com o calor poderão aumentar 370% até meados do século, com agravamentos significativos da insegurança alimentar e das doenças infecciosas”. A menos de duas semanas para a realização da COP28, no Dubai, foi reservado, pela primeira vez, um dia exclusivamente dedicado à análise e discussão do impacto das alterações climáticas na saúde. Só esperemos que não tenha sido tarde de mais
POR HELENA OLIVEIRA

No relatório divulgado ontem pela revista The Lancet denominado Lancet Countdown, o qual assenta numa colaboração internacional de investigação que monitoriza de forma independente a evolução dos impactos das alterações climáticas na saúde, são apresentadas novas e alarmantes previsões que descrevem os riscos crescentes se o objectivo de 1,5°C não for atingido. Como se pode ler no relatório, no cenário de 2°C, “as mortes relacionadas com o calor poderão aumentar 370% até meados do século, com aumentos significativos da insegurança alimentar e das doenças infecciosas”.

Em resposta aos resultados do relatório, o secretário-geral das Nações Unidas sublinhou que “o colapso climático já começou” e que estamos em vias de caminhar para “um futuro intolerável”. Como refere também António Guterres, “já estamos a assistir ao desenrolar de uma catástrofe humana, com a saúde e os meios de subsistência de milhares de milhões de pessoas em todo o mundo ameaçados por um calor que bate recordes, secas que inviabilizam as colheitas, níveis crescentes de fome, surtos crescentes de doenças infecciosas e tempestades e inundações mortíferas”.

O responsável das Nações Unidas acrescentou ainda que “não há desculpa para a nossa inércia colectiva. Só uma acção forte e imediata limitará o aumento da temperatura global a 1,5°C e evitará o pior das alterações climáticas. As provas são inequívocas – uma transição justa e equitativa dos combustíveis fósseis para as energias renováveis, juntamente com um aumento global do investimento na adaptação, salvará milhões de vidas e ajudará a proteger a saúde de todos na Terra.”

A menos de duas semanas para a Cimeira das Nações Unidas sobre o Clima, os resultados inquietantes deste novo relatório, que envolveu 114 peritos de 52 instituições (OMS incluída), apresenta 47 indicadores, incluindo novas métricas, para avaliar a interacção entre a saúde e as alterações climáticas. E serve para reforçar o apelo que tem vindo a ser feito por vários especialistas e instituições sobre este tema cada vez mais preocupante.

Por exemplo, no passado dia 23 de Outubro, mais de 200 revistas médicas apelaram à Organização Mundial de Saúde (OMS) para que considerasse duas crises ambientais que se sobrepõem – as alterações climáticas e a perda de biodiversidade – como uma emergência de saúde global, alertando para o potencial de “danos catastróficos” para a saúde humana.

Num editorial co-assinado e intitulado” É altura de tratar a crise climática e natural como uma emergência de saúde global indivisível”, os signatários apontam para o facto de “esta crise planetária indivisível ter grandes efeitos na saúde como resultado da perturbação dos sistemas sociais e económicos – escassez de terra, abrigo, alimentos e água -, aumentando a pobreza, o que, por sua vez, conduzirá a migrações em massa e a conflitos. O aumento das temperaturas, os fenómenos meteorológicos extremos, a poluição atmosférica e a propagação de doenças infecciosas são algumas das principais ameaças para a saúde exacerbadas pelas alterações climáticas”.

Os desafios ambientais relacionados com a saúde no mundo são cada vez mais graves e visíveis, escreveu o grupo em causa, sublinhando a propagação de doenças infecciosas, o aumento de infecções transmitidas pela água ou os impactos da poluição atmosférica na saúde. As alterações na utilização dos solos, por exemplo, forçaram “dezenas de milhares de espécies a um contacto mais próximo”, aumentando o intercâmbio de agentes patogénicos e alimentando o aparecimento de novas doenças.

Os autores apelam agora à OMS para que declare ambas as questões como uma emergência de saúde global “única”na próxima Assembleia Mundial da Saúde, em Maio de 2024, ou preferencialmente antes dessa data, considerando um “erro perigoso” tratá-las como crises separadas.

A OMS, por seu turno, tem disposições claras sobre o que constitui uma emergência de saúde pública de importância internacional (PHEIC, na sigla em inglês). O regulamento internacional da organização descreve-a como “um acontecimento extraordinário que se considera constituir um risco para a saúde pública de outros Estados através da propagação internacional de uma doença e que exige potencialmente uma resposta internacional coordenada”.

Maria Neira, directora do Departamento de Ambiente, Alterações Climáticas e Saúde da OMS, afirmou que a organização tem vindo a alertar há anos, “de forma muito veemente e muito clara”, que a crise climática é uma crise de saúde.

A responsável também referiu que a OMS está a exercer pressão para que a saúde seja um ponto fulcral na 28ª Conferência das Partes das Nações Unidas (COP), com o dia 3 de Dezembro a marcar o primeiro “Dia da Saúde” do evento, centrado na intersecção entre a saúde e as alterações climáticas. Todavia, e no que respeita à OMS declarar as questões climáticas e ambientais do mundo como uma PHEIC, Maria Neira sublinhou que essa decisão exige ainda uma análise muito cuidadosa, uma vez que o problema é crónico e não agudo, tendo que existir um planeamento de longo prazo. Contudo, e com as previsões perturbadoras dos mais recentes relatórios sobre este problema gigantesco [têm sido publicados vários nos últimos tempos], talvez já seja possível afirmar que o mesmo caminha para um cenário tão crónico quanto agudo.

Estreia do Dia da Saúde na COP 28

Como refere o Centre for Health and Healthcare do Fórum Económico Mundial (FEM) e pela primeira vez em 28 anos, a Cimeira das Nações Unidas sobre o Clima, que terá lugar no Dubai de 30 de Novembro a 12 de Dezembro e que contará, caso lhe seja possível, com a presença do Papa Francisco, incluirá um dia reservado ao impacto das alterações climáticas na saúde. Como acima mencionado, esta “inovação” não é de surpreender, tendo em conta os fenómenos meteorológicos recordistas relacionados com as alterações climáticas nos últimos dois anos que, e de acordo com o FEM, “mataram dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo e custaram à economia global milhares de milhões, se não biliões de dólares”.

No que respeita a este dia em concreto (3 de Dezembro) – e tendo em conta que nem toda a gente associa ainda as alterações climáticas a danos na saúde – a OMS enfatiza que estatísticas alarmantes revelaram que uma em cada quatro mortes pode ser atribuída a causas ambientais evitáveis. Como refere Tedros Adhanom Ghebreyesus, Diretor-Geral da OMS, “as razões mais convincentes para a acção climática não estão no futuro – estão aqui e agora”, não existindo dúvidas que as alterações climáticas representam uma ameaça iminente e grave para a saúde humana, afectando quase metade da população mundial hoje e não num futuro distante.

Por outro lado, as suas consequências para a saúde têm ramificações económicas significativas. A título de exemplo, o Banco Mundial estima que, até 2030, 132 milhões de pessoas cairão na pobreza devido aos impactos directos das alterações climáticas na saúde e que cerca de 1,2 mil milhões de pessoas serão deslocadas até 2050 pelo mesmo motivo.

Países mais pobres sofrem mais, mas a saúde está a ser afectada em todo o mundo

Como também refere o FEM, a distribuição das mortes e das perdas económicas recai mais fortemente sobre as populações mais pobres e vulneráveis, o que constitui um facto particularmente trágico e irónico, dado que esta população é a que menos contribui para as emissões de gases com efeito de estufa. As listas oficiais dos países mais afectados pelas alterações climáticas são dominadas pelas nações africanas, que têm sofrido anos de aumento das temperaturas e de fraca precipitação, ao mesmo tempo que registam chuvas torrenciais que provocam inundações. No entanto, o continente é responsável por apenas 4% das emissões globais.

Contudo, e como todos nós temos vindo a observar – e a sentir na pele -, o sofrimento causado pelas alterações climáticas não se limita a uma região. As comunidades de todo o mundo estão a enfrentar uma série de ameaças, que incluem secas a inundações, tempestades tropicais graves e subida do nível do mar, ondas de calor prolongadas e incêndios florestais.

A OMS estima igualmente que, entre 2030 e 2050, as alterações climáticas provoquem cerca de 250 000 mortes adicionais por ano devido a desnutrição, malária, diarreia e stress térmico, E, até 2030, augura que os custos directos para a saúde causados pelas alterações climáticas se situem entre os dois e os quatro mil milhões de dólares por ano. As alterações climáticas agravam igualmente muitos factores de risco social e ambiental, com repercussões para a saúde mental, tendo em conta a exposição a fenómenos meteorológicos extremos, a deslocações, a fome, a subnutrição, a ansiedade e a angústia associadas às mesmas. Como também realça o relatório do Banco Mundial, as alterações climáticas são um multiplicador de riscos que afecta a saúde humana de várias formas. Os seus impactos têm vindo a aumentar de forma constante ao longo do tempo:

Os impactos directos podem ocorrer devido ao aumento das temperaturas, às ondas de calor e à poluição atmosférica, que contribuem para as doenças relacionadas com o calor e agravam as doenças crónicas, ou devido a fenómenos meteorológicos extremos que aumentam a incidência de lesões traumáticas.

Os impactos mediados pelos ecossistemas causados pelas alterações das temperaturas ou dos padrões de precipitação incluem o aumento do risco de doenças como a malária ou a dengue, transmitidas por mosquitos e outros vectores. As doenças transmitidas pela água, como a malária, podem aumentar na sequência de inundações, enquanto as mudanças nas práticas agrícolas e na segurança alimentar exacerbam as ameaças de doenças relacionadas com a alimentação e a subnutrição. A crise climática está também a triplicar a probabilidade do surgimento de outro grande evento relacionado com vírus, similar ao da pandemia de COVID-19.

Os impactos indirectos incluem problemas de saúde mental resultantes de dificuldades relacionadas com o clima, a pobreza ou a deslocação, bem como perturbações nos sistemas alimentares e na agricultura que amplificam a insegurança alimentar e provocam o aumento da fome e da subnutrição. As alterações climáticas também representam ameaças para a saúde ao comprometerem outras necessidades humanas básicas, como o acesso à água potável e ao saneamento.

Fenómenos climáticos extremos: o pior ano de que há memória

Decerto que o ano de 2023 ficará na memória de todos nós como o mais atípico de sempre (e muito provavelmente diremos o mesmo nos anos seguintes). Foi raro o dia em que cheias, incêndios, tempestades tropicais, zonas de seca extrema, entre outros eventos climáticos extremos, não foram noticiados pelos meios de comunicação. E tudo indica que 2023 tenha sido o ano mais quente desde que há registos.

Mas a verdade é que ainda não se associa facilmente – para o comum dos mortais – os efeitos destes fenómenos aos riscos de saúde, directos e indirectos.

Por exemplo, um impacto importante das alterações climáticas tem sido o aumento da ferocidade das tempestades em todo o mundo. Prevê-se que a frequência, a duração e a gravidade das tempestades tropicais se intensifiquem com o aumento da temperatura dos oceanos. Em 2023, registaram-se três furacões de categoria 3 ou superior, o que faz com que este seja oficialmente o pior ano de que há registo para eventos meteorológicos com custos superiores a mil milhões de dólares.

Os incêndios florestais são outro fenómeno crescente, uma vez que as temperaturas elevadas secam a folhagem e criam condições propícias à ocorrência de incêndios. Para além da imensa destruição de bens e da perda de vidas e de animais, os incêndios florestais em todo o mundo estão a agravar a poluição atmosférica o que, por sua vez, exacerba as doenças respiratórias e as doenças cardiovasculares. A investigação sugere que a poluição atmosférica provocará 6 a 9 milhões de mortes prematuras por ano até 2060 e que poderá haver um aumento de 50% na mortalidade por doenças cardiovasculares relacionadas com o calor.

Por seu turno, a seca é um dos fenómenos meteorológicos relacionados com o clima que mais ameaça a vida das pessoas, mesmo que progrida lentamente em comparação com as inundações, os furacões e os incêndios florestais. No entanto, continua a provocar níveis elevados de subnutrição, causando atrasos no crescimento e no desenvolvimento das crianças, e uma série de doenças infecciosas generalizadas.

Cerca de 55 milhões de pessoas enfrentam anualmente condições de seca e 40% do mundo debate-se com a escassez de água, de acordo com a OMS. Estima-se que 700 milhões de pessoas correm o risco de serem deslocadas em consequência da seca até 2030.

Como elenca o FEM, e embora as secas envolvam pouca água e as cheias demasiada, o seu impacto na saúde pública não é, infelizmente, muito diferente. Ambas destroem as fontes de alimentos e de água, bem como as colheitas, o gado e os meios de subsistência de uma região. Em 2022, o Paquistão foi inundado por uma estação de monções extrema, que provocou cheias que afectaram 33 milhões de pessoas, metade das quais eram crianças. Mais de 5 milhões de pessoas foram obrigadas a utilizar água contaminada de poços e riachos. Um ano depois, o país ainda tem quase 15 milhões de pessoas a sofrer de fome severa.

As doenças transmitidas por vectores – transportadas por organismos como os mosquitos e as carraças – representam mais de 17% de todas as doenças infecciosas e matam mais de 700 000 pessoas por ano, segundo a OMS. Os padrões climáticos e meteorológicos extremos, como as secas, as ondas de calor, as inundações e a precipitação, prolongam as épocas de reprodução e o território dos mosquitos, carraças e outros vectores. Isto significa que as alterações climáticas podem ajudar a espalhar vírus como a malária, o dengue e o Zika para latitudes mais elevadas e expor um maior número significativo de pessoas. Um estudo publicado em 2019 concluiu que, até 2050, os dois principais mosquitos transmissores de doenças irão expandir significativamente a sua área de distribuição, representando uma ameaça para 49% da população mundial.

Com todos estes dados, irá a inércia continuar, como tem acontecido até aqui?

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