O recém-empossado Patriarca de Lisboa foi o orador convidado para a abertura das actividades da ACEGE para 2023-2024. Perante uma plateia de gestores e empresários católicos, D. Rui Valério centrou o seu discurso na ausência de confiança que caracteriza toda a sociedade, a qual tem de ser restabelecida em “todos os níveis e direcções”para que seja possível executar o que é decisivo e determinante, “pois se não o fizermos, algo de grandioso se vai perder”
POR HELENA OLIVEIRA
Nascido em 1964, no concelho de Ourém, Rui Valério é o 18º Patriarca de Lisboa, tendo tomado posse da diocese no passado dia 2 de Setembro. Até então serviu como bispo das Forças Armadas e Segurança e é conhecido por gostar do contacto directo com as pessoas. Por exemplo e numa entrevista à RR, no programa “Aura convida”, afirmou que “guarda no coração as missões no Alentejo onde chegou a dar educação religiosa e católica, trabalhava com histórias, teatros e músicas para evangelizar de forma mais fácil junto dos mais novos que depois faziam chegar a mensagem aos pais”.
E foi já como Patriarca de Lisboa que recebeu o convite da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE) para a sua habitual “abertura de ano”, tendo como audiência cerca de 90 gestores e empresários católicos, a quem reconheceu e agradeceu a partilha dos mesmos valores e desejos que, enquanto capelão e bispo das Forças Armadas, entre “outras andanças”, viu presentes em todos os que serviu e que serviram Portugal com ele até então.
Recordando também as origens transmontanas do pai, e a pequena terra onde nasceu, Caxarias, D. Rui Valério diz ter sido ensinado, desde pequenino, a ter uma atitude de gratidão para com os empresários e gestores, gratidão essa que é extensível aos que continuam a perseguir essa missão na sociedade de hoje. Nos anos 60, recorda, Caxarias era considerada pelos seus habitantes como o centro do mundo, pois vinham pessoas de todos os lados ali trabalhar – graças aos empresários e ao seu labor – o que permitiu não só o desenvolvimento local, como a ausência da necessidade de os seus habitantes emigrarem – em particular o seu pai -, antes ali permanecendo. O novo Cardeal de Lisboa associou igualmente essa missão aos mais novos afirmando que “se hoje podemos apresentar a um jovem um projecto de futuro, é exactamente porque esse futuro, essa estrada, tem a possibilidade de ser percorrida”.
Tendo assim expressado a sua gratidão aos presentes na sala, D. Rui Valério fez um paralelismo entre os gestores e empresários de hoje – tendo em conta a determinação necessária para “fazer as coisas acontecer” – e algumas personagens bíblicas, começando por Noé, que não foi um mero carpinteiro, mas antes um grande construtor, tendo liderado uma enorme equipa de construtores para edificar a arca que permitiu que a salvação face ao dilúvio fosse possível. D. Rui Valério mencionou igualmente o papel de Abraão, que era também um “empresário” devido aos muitos rebanhos e outros bens que possuía, bens esses que foram úteis para cumprir o chamamento divino de partir em busca da Terra Prometida. Passando para o Novo Testamento, o cardeal de Lisboa fala ainda em Pedro, um “grande empresário de pesca”, tendo a seu cargo uma empresa de barcos e, naturalmente, responsável também por vários trabalhadores, o qual se tornaria igualmente um “pescador de homens”. Por fim, uma referência a S. Paulo, na medida em que este “falou e pregou com a Palavra, mas também com a sua vida, tendo sido graças aos conhecimentos e à imaginação e a criatividade que tinha que conseguiu ser um exemplo para as comunidades por onde passava”.
De acordo com o Patriarca de Lisboa, esta analogia tem como objectivo demonstrar que o que é comum entre estas personagens bíblicas e os gestores e empresários de hoje é a determinação e a proposta de um desafio: “o de sermos chamados a executar aquilo que é hoje decisivo e determinante, pois se não o fizermos, algo de grandioso se vai perder”. Como acrescentou ainda: “não estamos para os arredores, não estamos para as periferias, não estamos para a rua, não estamos para a rama. Estamos para a uva, para a essência”.
Assim, prossegue, o que devemos perguntar a nós próprios é: “o que é que eu, na minha condição, considero que é decisivo para a sociedade?
“É necessário restabelecer a confiança em todos os níveis e direcções”
Para responder a esta questão, que pode ter múltiplas respostas, há algo em que estamos todos de acordo, afirma D. Valério: “hoje há uma crise de confiança, sem confiança não há vida, sem confiança ficamos paralisados”.
Afirmando que segue atentamente um filósofo e psicanalista italiano – Umberto Gallinberti – o qual considera como banalidades “a dicotomia crente-não crente ou a discussão entre fé e ciência, que são dois irmãos que de vez em quando decidem estar desavindos, mas que na maior parte do tempo falam a mesma linguagem”, este homem deu-se ao trabalho de ler todos os autos de crimes que envolvem adolescentes ou jovens em Itália, dizendo muitas vezes uma frase que é terrível: “Juventude. O que é o futuro para os jovens? Já não é uma promessa. Hoje o futuro para os jovens é uma ameaça”. Como esclarece, “tal significa que em vez de colocar toda uma geração assente na esperança, está a colocá-la na incerteza”.
Rui Valério referiu ainda ter tido acesso a dados [sobre o mesmo tema] que foram divulgados pela Polícia de Segurança Pública e relembrou o seguinte: “provavelmente, todos nós somos ainda do tempo em que saíamos de casa pelo nosso pé e em que íamos e vínhamos para a escola sozinhos. Depois houve aquela fase em que os pais ou as mães ou os avós pegavam em nós, iam-nos levar à escola. Mas recentemente nem isso basta. Actualmente, o adulto acompanha o filho à escola, sai com ele do automóvel, entra no parque da escola e leva-o até à sala. Não lhe vá acontecer algum mal”, diz, acrescentando que tudo isto são sintomas de uma ausência de confiança.
E afirma também, “todos nós sabemos que sem confiança não se vive” e que “talvez a condição essencial para a vida seja a confiança”. O Patriarca pediu ainda que se imaginasse os primatas, os primeiros omnívoros que apareceram, caso estes não confiassem que determinado fruto que recolhiam da árvore não os iria matar, começando a desconfiar e a não comerem por desconfiança. “Imaginem o que é que seria de nós se não confiássemos”, disse, reforçando mais uma vez que “sem confiança não há vida, não se faz nada, está-se paralisado, literalmente”.
Em suma, para D. Rui Valério existe hoje uma enorme necessidade de se restabelecer a confiança, em todos os níveis e em todas as direcções: “do eu em relação ao outro, do português em relação ao estrangeiro, do de cima em relação ao de baixo, do de baixo em relação ao de cima”
“ Para mim, este é um grande crédito que está nas nossas mãos e que devemos acalentar”, enfatizou.
A Palavra e a Família: duas histórias que impressionaram D. Rui Valério enquanto Bispo das Forças Armadas
A primeira teve lugar há um ano e passou-se na Roménia aquando da sua visita aos militares portugueses ali estabelecidos. Aconteceu há cerca de um ano, quando foi visitar os nossos militares que estão na Roménia, divididos entre a Brigada de Acção Rápida e os Rangers de Lamego [Forças Especiais do Exército], ambos próximos da Ucrânia. Normalmente e como conta o agora Cardeal de Lisboa, antes de se partir para uma destas visitas faz-se o trabalho de casa e estudam-se os dossiers. E foram vários os avisos de que os pedidos que provavelmente iria receber por parte dos militares estariam relacionados com a alimentação, nomeadamente com o bacalhau, as batatas e as couves [risos]. D. Rui Valério foi igualmente advertido que devido ao calor, receberia igualmente queixas sobre os ares condicionados e mais duas ou três coisas.
Mas e depois da celebração com os militares em campo aberto – não o deixando paramentar nem de padre nem de bispo, pois o branco é um alvo fácil – veio o momento de chegar à fala com eles. Esperando pelos pedidos ou queixas dos militares acima referidos, que pudessem ser transmitidos em Lisboa, a surpresa veio da boca do comandante da Força, que o desarma completamente com a seguinte conversa: “ Senhor Bispo, nós somos aqui cerca de 300. E todos os domingos 100, 110, 120, 70, 80, conforme, reunimo-nos e vamos aqui a uma cidade próxima para participar da missa. Somos cristãos e apesar de na Roménia a maioria das pessoas serem ortodoxas, há aqui uma igreja católica. O senhor padre é uma simpatia de pessoa, mas só sabe romeno e arranha um pouco de russo e apesar de a missa ser igual à nossa, nós não compreendemos o que diz. E fica-nos a faltar ‘aquela palavra’ para a semana”. Então e afinal, “o que ele queria era um capelão e em poucos dias lá foi um capelão para a Roménia”.
Como também sublinhou, o facto de ter contado esta história está relacionado com o “onde é que vamos buscar forças para o nosso dia-a-dia, para o desempenho da nossa vida e para o nosso propósito no mundo.”. E “é da palavra de Deus que vem a força. A palavra que faltava para a semana. E a partir daquela palavra é possível realizar uma outra história”, finalizou.
A segunda história narrada passa-se em São Tomé e Príncipe. As Forças Armadas continuam a ter lá uma embarcação, que não só serve para salvaguardar a defesa contra a pirataria naquela zona de África, como vai prestando ajuda às necessidades que se vão sentindo, seja um temporal ou um naufrágio. E muitas vezes, a embarcação entra mar adentro para fazer as suas missões. Como explica, o que está a acontecer é que em São Tomé e Príncipe as pessoas para sobreviverem, para se alimentarem, dependem muito daquilo que dá à floresta, mas depois compensam, em termos de nutrientes ou de proteínas, com o peixe que vão pescar no mar. Têm umas pequenas pirogas, que são construídas para serem usadas perto da costa.
Mas o que tem acontecido nos últimos anos é que por ali passam embarcações de grande porte, de países como o Japão, China, Espanha, entre outros, que navegam perto da costa e apanham tudo o que há para apanhar. Consequentemente, os pobres dos pescadores, cada vez mais e frequentemente, têm necessidade de se afastar da costa sem tecnologia nenhuma, guiando-se apenas pelo sol e pelas estrelas e com conhecimentos rudimentares. Assim, o que tem acontecido nos últimos anos é que estas embarcações ficam perdidas no meio do mar. E, como contaram os militares, encontraram uma destas embarcações, a 125 milhas da costa, o, que é uma distância bastante considerável.
Andavam perdidos, não sabiam há quantos dias ou noites. Mas aquilo que os intrigou, literalmente, foi que quando se aproximaram estavam quatro homens, que em situações como aquela deveriam estar em stress e em agitação, mas o que encontraram foi calma e paz. Ao lhes perguntarem os motivos para aquele sossego e pacificação, a resposta foi: “Não, nós não temos problemas, porque em terra as nossas famílias estão na Igreja a rezar por nós”.
E D. Rui Valério contou esta história em particular para evocar dois instrumentos fundamentais que “são vitais em qualquer tempo, em qualquer lugar, para a nossa missão”
Em primeiro lugar, “a força, a necessidade da Palavra de Deus. E depois “a família”, mesmo que esteja longe. Ou seja,” aquelas quatro almas, no meio do oceano, conseguiam desfrutar de todo o elã que brotava da certeza de que a família estava a falar a Nossa Senhora e, portanto, a rezar por eles, a estar junto deles”.
Foto: © Agência Ecclesia
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