A empresa social alemã ‘discovering hands’ utiliza o sentido táctil aprimorado de mulheres invisuais para detectar, precocemente, o cancro da mama, assumindo-se como detentora de uma quádrupla bottom-line: aumenta as taxas de sobrevivência das pacientes, dá emprego a pessoas com incapacidade, muda as mentalidades – da pena para o respeito – e alivia sobremaneira os bolsos públicos. Razões mais do que suficientes para estar a ser implementado como projecto-piloto em vários locais e com “chegada” prevista a Portugal no próximo ano
POR STEFAN WILHELM

A ideia subjacente ao projecto “mãos que descobrem” é tão engenhosa quanto simples: utilizar o extraordinário sentido táctil de mulheres invisuais ou portadoras de deficiências visuais para melhorar a detecção precoce do cancro da mama. O modelo oferece uma profissão original e globalmente única para estas mulheres ao mesmo tempo que estimula uma alteração positiva das mentalidades

As mulheres invisuais ou portadoras de deficiências visuais são treinadas como Examinadoras Tácteis Clínicas (MTEs, na sigla em inglês, para Medical Tactile Examiners), num programa de formação com a duração de nove meses realizado por centros vocacionais especializados e por formadores certificados. Seguidamente, as MTEs qualificadas são colocadas no contexto do sistema de cuidados de saúde existente – não “apesar da sua incapacidade”, mas devido ao seu conjunto específico de competências.

Um primeiro estudo qualitativo realizado demonstrou que as MTEs detectam 28% a mais de alterações [nas mamas] comparativamente aos ginecologistas e mais 50% no que respeita a pequenas mutações nos tecidos mamários, o que faz toda a diferença. Em 2014, criámos um denominado Social Franchise Manual que nos permite replicar, globalmente, o modelo das “mãos que descobrem”sem necessidade de recorrer a um sistema organizacional alargado.

Mas comecemos pelo início. Em 2005, as mamografias foram introduzidas na Alemanha, sendo que era praticamente ilegal que os ginecologistas as prescrevessem a pacientes com idade inferior a 50 anos sem uma descoberta suspeita documentada.

Infelizmente, os médicos tinham apenas cerca de um minuto por paciente para conduzir um exame clínico táctil à mama de acordo com a estrutura do sistema de cuidados de saúde público. Não existiam, simplesmente, condições para investirem mais tempo no exame em causa, pois o sistema de saúde público não lhes pagava o suficiente para tal.

Por outro lado, o exame clínico à mama é obrigatório para todas as mulheres com mais de 30 anos e é o primeiro e um dos mais importantes passos para assegurar uma detecção precoce de problemas de natureza oncológica. Porque existem mais de sete mil mulheres diagnosticadas com cancro de mama por ano, o que resulta numa média de 18 mil mortes, a detecção precoce é extremamente importante. E as condições no sistema de cuidados de saúde público estão longe ser as ideais.

[quote_center]As possibilidades de geração de impacto social são, sem dúvida, ilimitadas, mas temos observado que, em particular nos países em desenvolvimento e na Europa do sul, existe uma necessidade urgente de soluções como a nossa[/quote_center]

O Dr. Frank Hoffman, um ginecologista residente em Duisberg, na Alemanha, há mais de duas décadas, tinha um verdadeiro problema com esta situação. Não queria enviar as suas pacientes para casa depois de um exame clínico à mama com a duração de um minuto, sem ser capaz de perceber se existia algum sintoma suspeito no peito ou não. Para complicar ainda mais as coisas, não existindo exames à mama padronizados na Alemanha, como poderia ele ter a certeza que estava a fazer o que era correcto? E começou a pensar numa solução para o problema que tinha em mãos.

No seu entender, precisaria de uma assistente que pudesse investir mais tempo num exame clínico, padronizado e de qualidade assegurada. E, numa manhã, mais exactamente às 5h30, enquanto estava no duche, a ideia surgiu: “é óbvio: as pessoas invisuais têm um sentido táctil muito mais apurado, o qual poderia ser utilizado”. E pensou também que, sendo uma solução tão simples, decerto que já existiria alguém que a tivesse inventado. Desta forma, iniciou uma pesquisa para concluir que não encontrava ninguém que tivesse tido uma ideia similar. Quando abordou as autoridades, a pessoa responsável pela agência de emprego, disse-lhe: “Dr. Hoffman, o senhor acabou de inventar uma nova profissão para as pessoas cegas”.

Todavia, a ideia “discovering hands®” é muito mais do que isso, na medida em que produz impacto em quatro níveis distintos:

  1. A detecção precoce do cancro na mama, aumentando as taxas de sobrevivência das pacientes;
  2. As mulheres invisuais ou com deficiência visual arranjam um trabalho não “porque têm uma incapacidade”, mas por causa do seu conjunto específico de competências, alterando a mentalidade da sociedade da pena relativamente aos que têm alguma incapacidade para o respeito:
  3. Os custos dos tratamentos para os pacientes são reduzidos devido ao diagnóstico precoce. O sistema de saúde público poderá poupar até 56 mil euros por paciente se um tumor maligno for detectado no estádio 1 em vez de o ser no estádio 2 (de acordo com a Cancer Reasearch UK);
  4. Os bolsos públicos são aliviados de gastos consideráveis pois uma população marginalizada a e desempregada deixa de ser dependente dos dinheiros do Estado, antes ganhando o seu próprio salário (e pagando impostos).

Caminhando 10 anos para a frente, Frank, em cooperação com centros de formação vocacional para adultos cegos, com um conjunto alargado de médicos, escolas de medicina e associações de empreendimentos sociais, desenvolveu um currículo para as Examinadoras Tácteis Clínicas (MTE), criando a base para o curso de nove meses acima descrito. Existem cerca de 40 MTEs a trabalhar na Alemanha neste momento, sendo que o número está a aumentar regularmente todos os anos. Na verdade, mais um curso foi esta semana finalizado, adicionando mais quatro mulheres à família MTE. Citando o próprio Frank, “o nosso desejo é que as MTE sejam uma presença tão normal nos cuidados de saúde da mama como são as parteiras nos partos”.

Para tornar esta ideia numa realidade, optámos por um modelo de franchising social enquanto veículo para o crescimento internacional. Em 2015, o primeiro franchising foi estabelecido na Áustria onde Frank ganhou, na verdade, o investimento necessário por parte de um conselho de investidores depois de ter participado na versão austríaca do programa de televisão “Shark Tank”, sendo o único empreendedor social a participar no mesmo. Mas essa é uma outra história…

Já em 2014 tínhamos sido abordados pelo Departamento de Inovação da CAF (Corporación Andina de Fomento) do Banco de Desenvolvimento da América Latina. A sua directora, Ana Mercedes Botero, perguntou se estaríamos interessados em estabelecer um projecto-piloto em Cali, na Colômbia. Não deixámos fugir a oportunidade e temos agora as cinco primeiras MTEs a trabalhar na América Latina: quatro em Cali e uma em Xalapa, no México, onde iremos dar início, no próximo mês, a outro projecto-piloto.

Adicionalmente, já nos expandimos para a Índia com um forte apoio da Bayer Cares Foundation e pretendemos chegar a Portugal e a Espanha no próximo ano, com o apoio do programa ACSI [v. artigo Trazer para Lisboa inovações sociais] e da Câmara Municipal de Lisboa e de fortes parcerias em Espanha. As possibilidades de geração de impacto social são, sem dúvida, ilimitadas, mas temos observado que, em particular nos países em desenvolvimento e na Europa do sul, existe uma necessidade urgente de soluções como a nossa.

Assim, e em resumo: o cancro da mama, bem como a marginalização dos cegos e das pessoas com incapacidades visuais, em conjunto com o desemprego de que sofrem, é um fenómeno global. E tudo o que é preciso para lidar com este problema resume-se a uma boa ideia e a gigantescas doses de dedicação. Assim, a nossa proposta é cortar o “in” das “incapacidades”.

Responsável de Fundraising, Director para a América Latina, Portugal e Espanha e membro fundador da equipa da empresa social alemã Discovering Hands®

1 COMENTÁRIO

  1. Ideia tão simples e tão extraordinaria. Quando todos vêem limitações há alguem que pode salvar uma vida.

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