Depois de ter completado 5248 órbitas à Terra, uma viagem de cerca de 223 milhões de quilómetros – o equivalente a 291 viagens de ida e volta à Lua -, de ter assistido ao nascer e ao pôr-do-sol 16 vezes por dia, durante 328 dias, a astronauta norte-americana Christina Koch, de 41 anos, voltou a pisar terreno firme no passado dia 6 deixando para trás a Estação Espacial internacional. Na bagagem, traz o recorde feminino de permanência no espaço e o primeiro passeio espacial inteiramente feito por mulheres
POR HELENA OLIVEIRA

Feito a bordo da cápsula Soyuz MS-13, o regresso da astronauta da NASA foi acompanhado pelo cosmonauta russo Alexander Skvortsov, pertencente à Agência Espacial Russa Roscosmos, e pelo astronauta italiano Luca Parmitano, da Agência Espacial Europeia, com Koch a entrar na atmosfera com pelo menos dois feitos inigualáveis: a mais longa estadia no espaço protagonizada por uma mulher e o primeiro passeio espacial inteiramente feminino, na companhia da também norte-americana Jessica Meir.

Depois de ter chegado à Estação Espacial internacional a 14 de Março de 2019 para o que, supostamente, era uma missão com a duração de seis meses, Christina Koch acabaria por ali permanecer ao longo de 328 dias, ultrapassando assim o recorde de permanência no espaço da astronauta e concidadã Peggy Whitson, a qual foi também sua mentora. No que respeita aos astronautas americanos, apenas Scott Kelly completou uma viagem mais comprida, de 340 dias, pertencendo o recorde absoluto de permanência ao russo Valeri Polyakov, que esteve “fora de casa” ao longo de 14 meses. Koch posiciona-se agora em 7º lugar na lista de maior tempo acumulado no espaço por astronautas americanos com uma ou mais missões.

Na altura em que aterrou no Cazaquistão, Koch mostrou um sorriso rasgado aos jornalistas que a esperavam: não só tinha saudades da Terra mas, e como já tinha feito saber anteriormente, sentia muito a falta do vento a bater-lhe na cara. Enrolada num cobertor, seria depois transportada numa cadeira, para uma tenda médica, onde iniciaria uma das primeiras tarefas da sua readaptação ao ambiente terrestre: recuperar o equilíbrio.

Arranjar (o) espaço para as mulheres

Um dos objectivos desta missão espacial em concreto era a recolha de dados sobre como a ausência de gravidade e a radiação espacial afectam o corpo feminino em estadias espaciais de longa duração. Até à data e desde 1961, mais de 570 homens foram já ao espaço, com o número de mulheres a rondar os 70. E na medida em que a NASA planeia voltar à Lua em 2024, com o seu programa Artemis e começar os preparativos para a exploração humana de Marte, toda a informação é útil. Ao longo dos últimos 60 anos, a NASA recolheu vastas quantidades de dados sobre a saúde e a performance dos astronautas, tendo-se focado mais recentemente em durações extensas, até um ano, de que é exemplo a missão dedicada de Scott Kelly, as três missões de longa duração de Peggy Whitson que, no conjunto, totalizaram 665 dias, e agora as missões longas de Koch. Sabe-se que homens e mulheres têm uma adaptação diferente ao espaço, apesar de as razões para essa distinção não serem ainda completamente percebidas. Por exemplo, e de acordo com declarações à BBC o ano passado, a ginecologista especializada nesta matéria, Varsha Jain, da Universidade de Edimburgo e que trabalha actualmente com a NASA, afirmou que as mulheres “têm maiores probabilidades de sentirem doentes quando chegam ao espaço, comparativamente aos homens que sentem a ‘doença da reentrada’ quando regressam à Terra”.

Apesar dos feitos de Christina Koch serem por demais importantes independentemente do facto de ser mulher, também no espaço a questão da diversidade é tema. Depois de décadas a marginalizar as mulheres que contribuíram para os seus programas espaciais – Sally Kristen Ride foi primeira mulher norte-americana a ir ao espaço em 1983, após as soviéticas Valentina Tereshkova em 1963 e Svetlana Savitskaya em 1982 – a NASA tem tentado retratar-se, mostrando-se mais inclusiva. Na verdade, tanto Koch como a sua companheira de passeio espacial Jessica Meir pertencem à classe de 2013 da NASA, a qual e pela primeira vez, era composta por 50% de mulheres e 50% de homens. E também não é de surpreender que a própria Koch tenha afirmado que, apesar de serem muitos os momentos inesquecíveis da sua estadia, o mais especial foi o de ter participado, com Meir, no primeiro passeio espacial exclusivamente feminino. Como declarou ao site da NASA: “os nossos olhares cruzaram-se e ambas soubemos a honra que era esta oportunidade de inspirarmos tantas pessoas. E ao ouvirmos as nossas vozes a falar com o Controlo da Missão, sabendo que nunca duas vozes femininas tinham sido escutadas anteriormente nestas circunstâncias e que estávamos a resolver os problemas lá fora em conjunto, foi realmente um sentimento especial”.

O passeio das duas astronautas que ficará na História teve lugar a 18 de Outubro de 2019, mas estava planeado para acontecer anteriormente, mais precisamente em Março, quando Koch e a colega Anne McClain deveriam ter feito um passeio em conjunto. Contudo, na altura, a Estação Espacial Internacional tinha apenas um fato espacial e demasiado pequeno para servir a cada uma delas. Este incidente chamou de imediato as atenções para as questões de igualdade de género na comunidade espacial, estendendo-se rapidamente a toda a imprensa. Numa entrevista concedida há cerca de um mês por Koch, a astronauta confirmou que tanto ela como Meir têm perfeita consciência do seu estatuto de “modelo a seguir”, em particular para as jovens mulheres. “A diversidade é importante e algo pelo qual vale a pena lutar”, acrescentou ainda. No total, Koch protagonizou seis passeios espaciais ao longo de 11 meses, incluindo os três “totalmente femininos” com Meir, e passou 42 horas e 15 minutos fora da estação, expressando o seu desejo de “inspirar a próxima geração de exploradores”. Koch falou igualmente dos progressos na indústria espacial no que respeita à aceitação de um número maior de mulheres: “no passado, as mulheres nem sempre se sentaram a esta mesa”, diz. “E é um enorme passo em frente estarmos agora a contribuir para o programa de voos espaciais numa altura em que todos os contributos são bem-vindos, onde todos têm o seu papel e o que, em contrapartida, leva a maiores hipóteses de sucesso”, acrescentou ainda.

A vida lá em cima

No site da NASA e dias antes de regressar à Terra, Koch partilhou alguns dos momentos mais memoráveis que passou enquanto viveu e trabalhou a bordo da Estação Espacial Internacional, bem como os desafios que sabe ter de enfrentar no regresso a solo firme. A astronauta adaptou-se tão bem à microgravidade, que um dos seus receios se prende, exactamente, com o reajustamento à gravidade terrestre.

Como afirmou e depois de pouco tempo na estação espacial, “quase que me esqueci que estava a flutuar”. E descreve o quão surpreendente foi perceber a capacidade da mente humana em “normalizar” o acto de flutuar e como trabalhar de cabeça para baixo se torna tão natural como trabalhar “com a cabeça para cima”. “Foi uma enorme surpresa compreender que a vida cá em cima se pode tornar normal graças à forma como os nossos corpos se conseguem adaptar”, sublinhou ainda. E, depois de 328 dias a viver num ambiente de microgravidade, Koch diz ter-se esquecido do peso das coisas e de qual o esforço que será necessário para mover os seus braços e pernas em oposição à gravidade. Todavia, e apesar dos treinos diários e intensos a que são submetidos os astronautas ao longo das suas missões, para Koch o reajustamento mais difícil que antecipa no seu regresso à Terra é mesmo o equilíbrio. “Na Terra, confiamos nos nossos olhos e no nosso ouvido interno para manter a estabilidade”, explica, “mas em órbita, sem a gravidade a puxar-nos para baixo, a mente pára rapidamente de ouvir o ouvido interno, sendo os olhos que tomam o controlo de tudo … e confiamos apenas nos sinais visuais”. A astronauta norte-americana afirmou ainda que, pelo que lhe dizem, irá demorar ainda um par de dias, depois de aterrar, para que “a mente comece a ouvir de novo”.

O sono é outra incógnita. Ao contrário da maioria dos seus colegas, que sentem dificuldades em dormir adequadamente durante as missões, para Koch o sono no espaço foi o mais reparador que já experimentou na sua vida. Bastou-lhe o seu saco-cama e flutuar na posição natural do corpo, sentindo agora dúvidas sobre como será voltar a dormir num colchão.

Quase no final da sua estadia, e de acordo com as suas palavras, o vento, as gotas da chuva, a sensação de ter os pés na areia e o som das ondas a bater na praia eram aquilo de que mais sentia falta, depois de quase um ano exposta ao constante zumbido do sistema de ventilação da estação espacial. E, fora esse barulho, que em alguns sítios da estação é parecido com o de um cortador de relva, o silêncio do vácuo do espaço impera.

No que respeita aos demais sentidos, o cheiro no espaço também é “único”, como afirma, fazendo lembrar metal enferrujado – um “cheiro que evocará memórias vívidas nos anos que se seguirem”, garante. Tomar duche e sentir a água escorrer pelos dedos – algo que afirma ter caído no esquecimento – é também um dos grandes momentos pelo qual Koch anseia no seu regresso a casa. O mesmo acontece com a comida. Depois de 328 dias a comer sempre com uma única colher – “a minha talvez mais valiosa possessão em órbita” – e de tudo ser empacotado, seja um bife, massa ou café, com o menu a ser exactamente o mesmo ao longo das 47 semanas que ali esteve, a astronauta afirmou também sentir falta de comer de faca e garfo.

Koch falou ainda sobre a perspectiva que se tem da Terra quando se vive numa estação espacial. “A Terra está viva e eu testemunhei o seu poder e beleza (…), não existindo fronteiras ou limites – todos fazemos parte de um organismo gigante que respira e se adapta. E, já agora, a Lua é igual vista de lá de cima ou vista da Terra, constituindo um ponto de referência comum para todos nós, bem como um interesse comum enquanto nos preparamos para regressar à sua superfície”.

No geral, e tendo em conta o rigoroso processo de formação e treino que a NASA tem para preparar os seus astronautas para as missões, desde um estilo de vida e um regime de trabalho cuidadosamente planeados para a estadia no espaço, a um programa de reabilitação e recondicionamento excelente para quando os astronautas regressam à Terra, o corpo humano mantém-se robusto e resiliente mesmo depois de quase um ano “fora”. E, como já anteriormente mencionado, os dados resultantes das pesquisas sobre estadias de longa duração no espaço são de crucial importância para a NASA e para os seus planos futuros de conquista do espaço. E Koch foi simultaneamente uma investigadora e uma investigada nesta sua longa estadia, contribuindo para os estudos sobre a saúde humana no espaço e trabalhando com cientistas na Terra para testar as suas experiências.

Missão 59, 60 e 61 ou o que se pode estudar no espaço

O baptismo espacial de Christina Koch – para além do recorde de permanência que agora detém, esta foi a sua primeira viagem – incluiu três missões, as quais, entre vários objectivos, serviram para a astronauta participar num conjunto alargado de estudos que servirão para apoiar missões futuras de exploração, incluindo a pesquisa sobre como o corpo humano se ajusta à ausência de gravidade, ao isolamento, à radiação ou ao stress durante as estadias de longa duração. Mas não só.

A ausência de gravidade no espaço causa perda de osso e músculos nos astronautas, o que explica a multitude de estudos, passados e presentes, que se têm vindo a concentrar na forma de reduzir e/ou evitar esta condição. Koch fez parte da investigação Força Vertebral, a qual define até que ponto as viagens espaciais induzem a degradação dos ossos e músculos da coluna vertebral e os riscos associados a vértebras partidas. É expectável que esta pesquisa produza um conjunto de conhecimentos importantes para o desenvolvimento de contramedidas futuras, tais como medicina preventiva ou exercício, bem como recomendações para limitar a quantidade de força a que os astronautas são submetidos na altura do lançamento.

Uma outra experiência apelidada como “memorável” pela astronauta norte-americana durante a sua estadia na estação espacial foi a investigação sobre o crescimento de cristais em microgravidade, a qual tinha como objectivo cristalizar uma proteína de uma membrana que é essencial para o crescimento dos tumores e para a sobrevivência do cancro. Embora a cristalização dessa mesma proteína tenha produzido resultados insatisfatórios na Terra, esta mesma investigação utiliza um extenso trabalho de cristalização de proteínas na estação espacial, aumentando significativamente a probabilidade de um crescimento bem-sucedido de cristais. Os resultados servem, assim, para apoiar o desenvolvimento de tratamentos contra o cancro mais eficazes e com menos efeitos colaterais.

A investigação sobre as Células Renais foi outra pesquisa na qual Koch esteve envolvida, a qual visa procurar tratamentos inovadores para a pedra nos rins, para a osteoporose e para a exposição a químicos tóxicos, ao mesmo tempo que se concentra nos efeitos da dieta, da conservação da água, das viagens espaciais e da microgravidade na saúde dos rins.

Estas expedições contribuíram ainda para centenas de experiências em biologia, ciências da Terra, ciências físicas e desenvolvimento de tecnologias, incluindo melhorias no Espectrómetro Magnético Alfa, numa tentativa de estender o seu ciclo de vida e apoiar a sua missão de procurar evidências de matéria negra e ainda testes em impressoras biológicas 3D para a impressão de tecidos semelhantes a órgãos, estes últimos e, tendo igualmente em vista futuras missões, no âmbito da instalação de uma unidade de “biofabrico” que, eventualmente, poderá levar à produção de órgãos humanos na sua totalidade. Sendo muito difícil imprimir estruturas como os capilares sanguíneos na Terra, na ausência de gravidade, torna-se muito mais fácil.

Koch esteve ainda envolvida em experiências com plantas – a tripulação provou mesmo uma espécie de mostarda que cresceu no espaço -, fogo e átomos. No que respeita ao fogo, são já múltiplas as investigações sobre a forma como este reage e se comporta no espaço, com os resultados a servirem não só para ajudarem a prevenir incêndios nos veículos espaciais, mas também para uma utilização mais eficiente do combustível e para a redução de poluentes na Terra. Estas experiências tiveram lugar numa câmara de combustão avançada, com os átomos, e pelo contrário, a serem testados num laboratório de temperaturas extremamente baixas, as quais evitam que os átomos se movam e que permitem que sejam analisados aspectos que, de outra forma, seriam impossíveis.

Ou e em suma, Christina Koch não esteve 328 dias no espaço limitando-se a flutuar.


O que o espaço faz ao corpo humano

© NASA

Desde problemas de sono até à fraqueza muscular, viver a bordo da Estação Espacial Internacional tem efeitos surpreendentes no corpo humano. Vejamos alguns.

  • Ao longo dos habituais seis meses que os astronautas passam na Estação Espacial Internacional, estes podem aumentar em cerca de três por cento a sua altura. Sem gravidade, a coluna vertebral “sente-se” livre para se expandir, tornando os viajantes espaciais mais altos, mesmo quando regressam à Terra. Depois de alguns meses a viver com a gravidade normal do planeta, voltam seguidamente “ao lugar”.
  • Quando estamos na Terra, os fluidos do corpo humano são distribuídos desigualmente devido à gravidade. A vida em órbita muda esta distribuição. Nas primeiras semanas, a maioria dos astronautas aparenta ter a cabeça “inchada” e as pernas demasiado magras. Os fluidos redistribuem-se igualmente quando a gravidade não tem um papel especial nos seus sistemas biológicos. Depois de algum tempo em órbita, o corpo adapta-se à nova distribuição de fluidos e os astronautas voltam ao normal.
  • Depois de regressarem de um período no espaço, muitos astronautas reportam dificuldade em reajustarem-se à gravidade, deixando cair coisas, na medida em que seis meses a viverem num ambiente de microgravidade torna fácil “esquecerem-se” de como se devem ajustar à vida num local onde os materiais caem se os deitarmos ao chão.
  • Por seu turno, e no ambiente sem gravidade do espaço, os músculos não são necessários para suportar o peso do corpo. E os músculos dos astronautas começam a adaptar-se a essa mudança quase de imediato. Em vez de manterem a massa muscular normal necessária para a vida na Terra, os seus corpos começam rapidamente a ver-se livres de “tecidos desnecessários”. O que é ideal no espaço, torna-se num problema na Terra quando estes regressam. E é por isso que os astronautas seguem um plano intensivo de treino, de pelo menos duas horas diárias na estação espacial, para manterem a massa muscular que será necessária quando voltarem a terreno firme.
  • Esse mesmo exercício ajuda igualmente a evitar a perda de densidade óssea, outro dos efeitos sentidos. Por cada mês, os astronautas podem perder cerca de um por cento da sua densidade óssea caso não se exercitem adequadamente. E é por isso que a Estação Espacial Internacional tem duas passadeiras e duas bicicletas fixas para que os seus residentes se mantenham em forma durante o tempo em que estão em órbita.
  • Por último, e ao contrário do que aconteceu com Kristina Koch, dormir no espaço não é tarefa fácil. Para além da ausência de gravidade, os astronautas reportam a visualização de flashes de luz “através” dos olhos, o que os impede de descansar. Estes feixes de luz derivam, na verdade, de raios cósmicos – ou de partículas de elevada energia que são transmitidas através do sistema solar – e são descritos como “fogos de artifício” ou faixas de luz.

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