POR GABRIELA COSTA
“Hoje o nosso desafio é o da reinvenção de Portugal e da nossa diáspora. Nada é impossível para os portugueses” – Marcelo Rebelo de Sousa
Envolver as mulheres pescadoras na protecção das pradarias marinhas do Sado e da população residente de golfinhos, implantar nas cidades “árvores” movidas a energia solar onde se pode carregar o telemóvel e aceder à internet e promover o jazz nacional através de residências artísticas e de um festival itinerante fora de Portugal. São estas as três ideias criativas distinguidas na edição de 2016 do concurso FAZ – Ideias de Origem Portuguesa, iniciativa conjunta da Fundação Calouste Gulbenkian e da COTEC Portugal que convoca a diáspora portuguesa a dar respostas aos desafios sociais que o País enfrenta, e que o VER vem acompanhando desde a 1ª edição, em 2011.
O anúncio dos três projectos vencedores – Guardiãs do Mar – Salvar o Ambiente, Preservar Empregos, em 1º lugar, VTREE Solar, em 2º, e JAZZ’aqui, em 3º, foi feito a 3 de Junho em mais uma edição do Encontro FAZ | Empreendedorismo Inovador na Diáspora Portuguesa, na presença do Presidente da República, que entregou o prémio às mentoras da ideia premiada. Recordando que, para além dos portugueses que residem em Portugal “somos muitos mais e em muitos casos mais influentes, lá fora”, Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou que há uma “novíssima geração, indo e vindo, que vai ser essencial para refazer o país”. Para o presidente, o FAZ-IOP “significa a capacidade de mobilização dos portugueses espalhados pelo mundo: temos aqui o que é melhor no ser português”.
Este ano, o Encontro integrou um debate que reuniu jovens talentos reconhecidos internacionalmente nas áreas das artes, ciência, arquitectura e desporto, numa conversa sobre o espírito empreendedor e de inovação dos portugueses na diáspora portuguesa, sob o mote ‘o que seria do mundo sem os portugueses?’. Foram ainda apresentados os dez projectos finalistas desta 5ª edição do FAZ-Ideias de Origem Portuguesa.
Ao concurso de ideias de empreendedorismo social promovido pela Gulbenkian foram submetidas 53 ideias, que envolveram participantes de 20 países, incluindo Portugal. Os projetos apresentados focaram-se em questões de sustentabilidade ambiental, preservação do património cultural, bem-estar das crianças e das famílias, educação e solidariedade comunitária, tendo em conta os estilos de vida contemporâneos. As equipas finalistas integram elementos de Espanha, Alemanha, França, Reino Unido, Estados Unidos, Brasil e Qatar, que receberam formação intensiva do IES-SBS até ao anúncio dos vencedores do concurso, cujos prémios são inteiramente destinados ao financiamento dos projectos.
Guardiãs do mar e dos golfinhos
A ideia distinguida com o 1º prémio, no valor de 25 mil euros, nasceu como resposta à degradação e destruição das pradarias marinhas e ao seu impacto no declínio da população de golfinhos do Sado, visando simultaneamente combater o desemprego e a desvalorização social e cultural das mulheres pescadoras neste estuário.
A história das Guardiãs do Mar nasceu em Outubro de 2014, fruto do encontro entre Sofia Jorge, gestora e portuguesa residente em Barcelona com um passado familiar com raízes piscatórias, e Raquel Gaspar, bióloga marinha que há mais de 20 anos trabalha no estuário do Sado a monitorizar a população residente de roazes.
Da simbiose dos sonhos da primeira – contribuir para a economia e valorização da comunidade piscatória em Portugal a partir de Barcelona, onde reside – e da segunda – evitar o declínio da população de golfinhos do estuário do Sado através da preservação do seu habitat, as pradarias marinhas – resultou o projecto Guardiãs do Mar – Salvar o Ambiente, Preservar Empregos, que visa proteger estas pradarias através da preservação e valorização de empregos na comunidade de mulheres pescadoras na região.
Levar a cabo este projecto “só tinha sentido com a inclusão na equipa de membros da própria comunidade de mulheres pescadoras do estuário do Sado”, dizem em entrevista ao VER as vencedoras do FAZ-IOP 2016. O primeiro passo foi assim juntar à equipa a pescadora mais jovem do estuário, Cláudia Martins, 38 anos (e que há 16 vai diariamente à pesca com o marido, “como é típico na sua comunidade”), e uma pescadora que estava desempregada, Rosa Ferreira, 42 anos, que “nasceu a bordo como muitas outras pescadoras”, e é mariscadora desde miúda. Como explicam Sofia e Raquel, “ambas já eram naturalmente guardiãs das pradarias marinhas, o seu bem mais precioso e que é de todos”.
Para concretizar esta ideia, as duas empreendedoras fundaram em Março de 2015, juntamente com outros três sócios, a Ocean Alive, uma cooperativa cultural com a missão de transformar comportamentos para a protecção do Oceano, através da educação marinha e do envolvimento das comunidades costeiras locais.
Tendo em vista a sustentabilidade ambiental do estuário do Sado, a iniciativa trabalha numa “solução transformadora para boas práticas na sua comunidade, com impacto na valorização e inclusão social das mulheres pescadoras locais”. Na prática, o projecto propõe a protecção das pradarias marinhas da região através da eliminação de três causas da degradação daquele habitat marinho, com origem nas más práticas da comunidade pesqueira e recreativa do estuário do Sado: eliminar as âncoras sobre as pradarias marinhas ou o sistema de amarração, eliminar as práticas de pesca agressivas, e eliminar o lixo resultante da actividade de mariscar.
[pull_quote_left]O que distingue o projecto das Guardiãs do Mar é a envolvência da comunidade piscatória na eliminação de causas da degradação das pradarias marinhas[/pull_quote_left]
Os grandes desafios a enfrentar passam por encontrar um equilíbrio entre as necessidades da comunidade piscatória e recreativa e as necessidades das pradarias marinhas em estado saudável, e conseguir alavancar boas práticas noutras fontes de degradação das pradarias marinhas, como a perturbação química e sedimentar proveniente das indústrias, efluentes urbanos, arrozais e dragagens, explicam as Guardiãs do Mar.
Para tanto, é fundamental “envolver a comunidade piscatória local em actividades de sensibilização/educação que criam empregos para as pescadoras desempregadas, e na monitorização e protecção directa deste habitat”, razões pelas quais as mentoras do projecto criaram um programa educativo assente em acções científicas que integram as pescadoras como guias marinhas; e dois tours, um no mercado do peixe e outro a bordo numa visita ao estuário do Sado, como forma alternativa ao desemprego e à pesca (em cujo piloto, no ano passado, participaram cerca de 300 crianças e turistas).
Limpar, mapear e monitorizar para proteger
Na calha, ainda para 2016, está o lançamento de uma Summer school para jovens, o Ocean Alive Camp, que tem como parceiro a Unesco. Outra vertente a desenvolver será a criação de um sistema de certificação que incentive e recompense as boas práticas na comunidade costeira, como por exemplo acabar com o poluente hábito dos mariscadores de deixar as embalagens de plástico de sal fino usadas para apanhar lingueirão e casulo (estando a decorrer uma campanha de sensibilização e limpeza de praia). Através da ligação entre investigadores do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente e as pescadoras activas para a monitorização das pradarias, as Guardiãs do mar estão também a capacitar estas mulheres para colaborarem com os cientistas no mapeamento dos prados. Todas estas medidas visam melhorar, a médio prazo, “as condições de vida das pescadoras e da população residente de golfinhos”.
Como referem ao VER, os projectos em curso em Portugal para a protecção das pradarias marinhas têm por base a protecção ambiental conferida pela legislação europeia (sendo estas consideradas um habitat prioritário para a conservação da natureza na Europa), o restauro das pradarias que já existiram, como no parque marinho da Arrábida, ou a sensibilização e educação ambiental.
[pull_quote_left]A VTREE une a internet e a energia solar fotovoltaica a um design ímpar, para proporcionar um conjunto de serviços tecnológicos urbanos disponíveis para todos[/pull_quote_left]
O que distingue o projecto das Guardiãs do Mar é a envolvência da comunidade piscatória na eliminação de causas da degradação das pradarias marinhas, transformando-a em “agentes de mudança para boas práticas”. Seja através das campanhas de sensibilização, nas quais se envolvem as pescadoras, mas também mariscadores, voluntários, poder local, empresas, ONG e entidades como a Unesco; seja através da ligação entre a comunidade piscatória e os investigadores para trabalho de monitorização; seja ainda pela vertente educativa e de sensibilização, tendo em vista “encontrar novas profissões para as pescadoras desempregadas, valorizando a sua sabedoria experiencial através da sua capacitação como guias marinhas”.
A oportunidade de concorrerem ao FAZ-IOP surgiu do aconselhamento de Nathalie Ballan, fundadora da Sair da Casca, a Raquel Gaspar, co-fundadora da Ocean Alive, ambas fellows da Ariane de Rothschild Fellowship. Percebendo que o trabalho da Ocean Alive se enquadrava nos critérios de selecção do concurso, quer pelo âmbito de actuação das Guardiãs do Mar (sustentabilidade ambiental, inovação, empreendedorismo e inclusão social), quer pelo facto de a Sofia Jorge, também fundadora desta cooperativa, fazer parte da diáspora portuguesa em Barcelona, a equipa preparou-se para se candidatar ao prémio, também com o apoio do IES, que na altura propôs um plano de estruturação sobre a ideia. As mentoras exploraram a fundo as soluções que propunham, avaliando de que modo se destacavam ou reforçavam o que já está a ser feito em Portugal e lá fora, e consultaram outras equipas vencedoras, “o que foi muito inspirador”. Paralelamente, a participação no BootCamp “foi um excelente acelerador para a consolidação e comunicação da ideia”, e “uniu a paixão individual de cada uma de nós pelo mar e pelo que fazemos”. No final do processo, “esse foi um ponto forte que nos levou à vitória”, concluem.
O prémio agora conquistado será aplicado na promoção do programa educativo do projecto (os tours com as pescadoras, dirigidos a turistas e a escolas, e o Ocean Alive Camp Summer School, dirigido a estudantes), em Portugal e na diáspora em Barcelona, “o que gera receitas próprias e permite aumentar a empregabilidade das pescadoras”, planeiam as Guardiãs do Mar.
Democratizar o acesso (sustentável) à rede
Nesta 5ª edição do FAZ-IOP a 2ª posição do concurso, no valor de 15 mil euros, foi atribuída ao projecto VTREE Solar, que desenvolve ‘árvores’ com wifi alimentadas por painéis de energia solar fotovoltaica em jardins e espaços públicos urbanos de grande circulação, onde qualquer pessoa pode carregar o seu telemóvel e outros gadgets (e até scooters elétricas). Este produto inovador, que associa design e tecnologia e que pretende democratizar o acesso à rede, surgiu dos destinos cruzados de quatro amigos e colegas de longa data, que tinham em comum “uma história, formação em engenharia, conhecimentos na área de energia solar, redes de telecomunicações e produção industrial, a vontade de fazer algo inovador e sustentável, e alguma dose de loucura”. A partir daqui, estavam criadas as bases para tentar resolver algumas tendências e problemas do quotidiano, através de “um projecto independente com impacto no dia-a-dia das pessoas” na área das energias renováveis e tecnologia.
Espalhada pelo Brasil, Roménia e entre Portugal e Inglaterra, a equipa identificou “a necessidade crescente das populações se manterem conectadas à rede e a falta de infraestrutura das cidades que se faz sentir” a nível, por exemplo, de disponibilização de internet gratuita, de acessibilidade a terminais de carregamento de telemóveis e demais aparelhos, ou de mobiliário urbano tecnológico com design inovador, capaz de dinamizar “a interacção social e o comércio local”.
[pull_quote_left]O JAZZ’aqui quer internacionalizar e levar o jazz de origem portuguesa ao maior número de pessoas, em especial fora dos grandes centros urbanos[/pull_quote_left]
Face à lacuna em termos de agregação das várias tecnologias já disponíveis, a VTREE propõe “unir duas das tecnologias mais disruptivas (a internet e energia solar fotovoltaica) a um design ímpar”, com o objectivo de “atrair empresas privadas e o sector público para integrar estes novos equipamentos nas cidades”, de forma “auto-sustentável e proporcionando um conjunto de serviços e experiências disponíveis para todos”.
Focando-se “nas necessidades do utilizador final” (ao contrário da tendência de valorização da própria tecnologia, comum neste tipo de projectos), a iniciativa foi desenhada com vista a “atrair um player do privado/público para patrocinar ou pagar por um serviço cujo consumidor final obtém gratuitamente (ou a custo muito reduzido) e de uma forma sustentável”, como explica ao VER a equipa do VTREE. Para tanto,” integrámos um conjunto de tecnologias com designs diferenciados, com vista à sua disponibilização em diferentes espaços urbanos e espaços verdes”.
O design actual da VTREE tornou-se no produto de arranque deste negócio empreendedor, mas já desenvolvidos estão mais produtos destinados às zonas públicas das cidades, adiantam, sublinhando que o que distingue verdadeiramente o projecto das demais empresas deste mercado é a aposta “em mobiliário urbano com forte impacto tecnológico e visual, invertendo a tendência commodity do mobiliário actual”. Perante esta visão inovadora, “o grande desafio consiste em mostrar que este tipo de equipamentos aumenta exponencialmente o ‘brand awareness’ dos privados” e que “as iniciativas públicas terão muito maior impacto”, face aos benefícios para os utilizadores destes equipamentos.
O prémio que resulta da candidatura ao concurso FAZ-IOP será investido na finalização de mais um protótipo que o VTREE quer instalar em Lisboa e, possivelmente, no desenvolvimento de novos produtos relacionados com mobilidade eléctrica, concluem os quatro elementos da equipa, cientes de que para garantir a sustentabilidade do projecto será necessário “materializar alguns dos trabalhos nos quais estamos envolvidos com entidades públicas e privadas em Portugal, no Brasil e na Roménia”.
Reduzir a distância entre a diáspora ‘jazzística’ e Portugal
No valor de 10 mil euros, o 3º lugar do prémio da Gulbenkian que distingue iniciativas empreendedoras na diáspora portuguesa coube ao JAZZ’aqui, projecto que visa promover a cultura e o património português, através, entre outras iniciativas, de residências artísticas e da criação de um festival de jazz itinerante fora de Portugal, exclusivamente com músicos nacionais.
A ideia original passa precisamente por criar essa mostra itinerante, que permita “uma maior projecção do jazz português além-fronteiras”. O mote foi abraçado pelos quatro elementos da equipa, unidos por uma relação de amizade desde a infância e pela ligação profissional e artística em relação à música, a qual “nos permitiu uma identificação com as problemáticas que o projecto aborda”, como sublinham ao VER.
Para os quatro jovens, a realidade no panorama musical português “encerra em si mesma dois desafios”: por um lado “em Portugal, apesar de o jazz ser uma expressão musical em franco crescimento, ainda não tem grande expressão fora dos centros urbanos da faixa litoral do país”. Na sua opinião, apesar de “fruto do trabalho de escolas, universidades e festivais de jazz”, existirem actualmente “uma quantidade de músicos com uma qualidade sem antecedentes no panorama musical português”, certo é que num mercado de trabalho “reduzido, muito fragmentado e com falta de oportunidades”, muitos músicos tomam a opção de emigrar (por vontade própria ou por necessidade), “perdendo ligações com o nosso país”.
Por outro lado, a nível internacional “o jazz português é bastante desconhecido e existem poucas possibilidades para que os músicos no início de carreira consigam tocar de forma regular e em palcos de grande dimensão e boa visibilidade”, defendem, lamentando a reduzida taxa de penetração dos músicos de jazz nacionais “lá fora”. Pelo contrário, em muitos outros países existem vários exemplos de projectos que visam a promoção coordenada da música e dos músicos além-fronteiras.
Neste contexto, a ambição do JAZZ’aqui é desenvolver um projecto amplificado à internacionalização e com “interacção com escolas, comunidades locais e também fora dos grandes centros urbanos”. O objectivo é, quer ”através de parcerias e coordenação com entidades já existentes, quer através da criação de novas redes e iniciativas”, alargar não só o número de concertos – tanto em locais onde já aconteçam de forma regular, mas principalmente em zonas onde o jazz ainda não seja uma realidade frequente -, como o número de ouvintes e base de praticantes, e ainda a acessibilidade a este género musical, “aumentando assim o mercado”, conclui a equipa.
O projecto JAZZ’aqui visa também contribuir para aproximar “os inúmeros estudantes de jazz que neste momento se encontram a prosseguir os seus estudos fora do país” com a comunidade estudantil da área do jazz a nível nacional, reduzindo “a distância entre a diáspora ‘jazzística’ e Portugal”, através da criação de pontes que permitam, num futuro próximo, que estes músicos tenham a oportunidade de desenvolver a sua carreira no seu próprio país, e a partir daí “projectar a sua música para o mundo”.
Neste momento, e com o apoio da Gulbenkian e do IES, o grupo está em fase de preparação para a implementação do projecto no terreno, e planeia, numa primeira fase, investir o prémio agora conquistado na realização de um projecto piloto, que integre workshops, conferências e residências artísticas. O mesmo deverá permitir “encontrar o modelo ideal que numa segunda fase irá ser aplicado, num âmbito mais alargado”.
A acção prevista para o território nacional, com o apoio de autarquias e outras entidades já instaladas no terreno, “pretende levar o jazz de origem portuguesa ao maior número de pessoas possível, em especial fora dos grandes centros urbanos”, expandindo a rede de salas e público interessado neste género musical. A nível internacional, e “tirando partido de associações, entidades e músicos portugueses já presentes em diversos países”, o JAZZ’aqui quer levar a uma maior internacionalização do jazz português, estando já a estabelecer parcerias para viabilizar a obtenção de apoios que permitam a realização do festival de jazz itinerante de forma sustentável e autónoma a nível financeiro.
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Jornalista