Quando Valência foi atingida pela tempestade da semana passada, o céu literalmente desabou. Em poucas horas, quase 500 mm de chuva inundaram ruas, submergiram carros e devastaram bairros inteiros. Esta quantidade de água – o equivalente a meio metro de água sobre cada metro quadrado de terreno – foi um golpe avassalador para uma cidade acostumada a verões secos e outonos imprevisíveis. Em contraste, cidades como Lisboa vivem sob a proteção de um clima atlântico, onde a regularidade da chuva, distribuída ao longo do ano, faz com que eventos extremos como o de Valência sejam praticamente impossíveis. Mas o que realmente diferencia o céu de Valência do de Lisboa? E por que a costa atlântica portuguesa permanece tão estável enquanto o Mediterrâneo se pode tornar numa força imprevisível?
POR PEDRO COTRIM
A recente tempestade que assolou Valência trouxe uma quantidade de precipitação impressionante à cidade. Em apenas algumas horas, registaram-se quase 500 mm de chuva, o que corresponde praticamente à precipitação média de um ano em Lisboa. A diferença entre o impacto de um evento como este em Valência e as condições meteorológicas regulares de Lisboa suscita uma questão importante: será improvável em Portugal um fenómeno desta magnitude? A resposta está na diferença fundamental entre o clima puramente mediterrâneo da costa leste de Espanha e o clima mediterrânico de feição mais atlântica predominante em Portugal. E a resposta é «sim, é muito improvável».
Para quem reside em Valência, as tempestades de grande intensidade não são uma novidade, mas a da semana passada ultrapassou qualquer previsão. Numa região onde as chuvas costumam ser concentradas em eventos esporádicos de elevada intensidade, é comum que, no outono, ocorra o fenómeno da «gota fria», ou Depressão Isolada em Níveis Altos (DANA). Como o nome indica, trata-se de um evento isolado, originado pelo encontro de ar quente e húmido do Mediterrâneo com uma frente de ar mais frio e seco, geralmente alojado em altitudes mais elevadas.
Durante este evento específico, algumas áreas da Comunidade Valenciana, como Chiva, registaram quase 500 mm de precipitação em apenas 8 horas. Esta quantidade de precipitação, concentrada num curto período, é uma das razões para o caos que se instalou em Valência, com inundações a causar destruição em áreas urbanas e rurais.
Lisboa e a Influência Atlântica: Um Clima de Precipitação Moderada e Regular
Para se compreender de como eventos como o de Valência são praticamente impossíveis em Lisboa, precisamos primeiro de entender a importância do Oceano Atlântico na regulação do clima português. Lisboa beneficia de um clima muito mais moderado do que Valência, cidade igualmente costeira e precisamente à mesma latitude. A capital portuguesa regista uma média de 600 mm de precipitação ao longo de todo o ano. Este valor, distribuído ao longo de várias semanas e meses, representa um abastecimento contínuo e mais suave de recursos hídricos, que sustenta os ecossistemas locais e mantém os níveis de água nas fontes naturais.
E em Lisboa a precipitação raramente ultrapassa os 80-100 mm num único dia, mesmo em tempestades severas, o que é consideravelmente menos quando comparado com os valores registados em Valência. Deve-se ao papel protetor do Oceano Atlântico, que impede variações bruscas de temperatura e evita a formação de fenómenos extremos de precipitação, como uma DANA. Além disso, o Anticiclone dos Açores – um sistema de alta pressão localizado sobre o Atlântico Norte – estabiliza o clima e frequentemente bloqueia a entrada de frentes, reduzindo a intensidade das tempestades em Portugal.
Portugal está sob a influência do Oceano Atlântico, com uma temperatura mais fria e constante. O Atlântico regula a quantidade de humidade na atmosfera e cria um clima menos propenso a tempestades explosivas. As frentes frias que chegam a Portugal trazem precipitação, que ocorre de forma mais contínua e com menor intensidade. Durante o inverno, por exemplo, Portugal pode ter semanas de chuva constante, mas sem grandes picos de intensidade como os registados em Valência, o que contribui para uma distribuição de precipitação mais uniforme e previsível.
A Corrente do Golfo e o Anticiclone dos Açores: Guardiães do Clima Português
Um dos elementos centrais para entender as diferenças entre os eventos meteorológicos em Valência e Lisboa é a influência da Corrente do Golfo e do Anticiclone dos Açores. A Corrente do Golfo é uma corrente marítima quente que provém do Golfo do México e segue em direção ao Atlântico Norte, passando ao largo de Portugal. Esta corrente aquece o ar sobre o Atlântico, mas de uma forma estável, sem criar picos de temperatura ou humidade. Este aquecimento moderado reduz o contraste térmico entre a atmosfera e o oceano, evitando que o ar húmido se eleve e crie tempestades explosivas.
O Anticiclone dos Açores funciona como uma espécie de barreira meteorológica. É um sistema de altas pressões que bloqueia muitas das frentes de vindas do Atlântico. Este sistema reduz a frequência e a intensidade das tempestades em Portugal, criando um clima mais estável e menos propenso a fenómenos extremos. Em Valência, a ausência de uma estrutura de alta pressão tão constante permite que tempestades de baixa pressão se formem e desenvolvam, o que contribui para eventos de precipitação intensa.
Inundações e o Impacto na Vida Urbana: Lisboa vs. Valência
As inundações em Valência foram dramáticas, com o nível da água a subir rapidamente e a afetar residências, estradas e infraestruturas. A cidade sofreu uma subida de água tão repentina que muitos locais ficaram submersos em poucas horas, devido à incapacidade dos sistemas de drenagem de escoarem o volume excessivo de água. Em Lisboa, situações de cheias ocorrem, mas a dinâmica é diferente. Os sistemas de drenagem portugueses são concebidos para lidar com chuvas mais prolongadas e menos intensas. Nas áreas urbanas de Lisboa, as inundações são geralmente o resultado de precipitação constante ao longo de dias ou até semanas, saturando o solo e os rios locais, mas raramente devido a uma tempestade explosiva.
Um exemplo foi o episódio de chuva intensa que afetou Lisboa em dezembro de 2022, quando a cidade registou 100 mm de chuva em apenas um dia. Embora este valor seja significativo e tenha causado alguns alagamentos, foi insuficiente para atingir o nível de destruição visto em Valência. Esta diferença deve-se à distribuição de água e à capacidade de absorção dos sistemas naturais e urbanos, que conseguem gerir melhor a precipitação menos intensa, mesmo quando ocorre durante períodos prolongados.
Esta diferença sublinha a importância dos fatores climáticos e geográficos na formação do clima e na forma como cada região reage a eventos meteorológicos. A tempestade de Valência pode ter sido um alerta para os perigos das alterações climáticas, mas para Portugal, a proximidade do Atlântico continua a ser um elemento de proteção que reduz a intensidade de fenómenos extremos, criando um clima mais seguro e previsível.
Imagem: Abhishek Tiwari/Unsplash.com
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