Com os olhos postos no crescente extremismo, a ideia de que a corrupção pode surgir como consequência da instabilidade global que se verifica em vários locais do mundo não é nova. Inovador é, ao invés, o argumento que reza que a mesma pode ser a sua principal causa. Sarah Cheyes, ex-jornalista e actual conselheira para as questões árabes da administração Obama, elege a corrupção governamental severa como o elo de ligação entre as diferentes e avassaladoras crises internacionais. E não deixa os Estados Unidos de fora…
POR
HELENA OLIVEIRA

Começa a não ser novidade o facto de, todos os dias, sermos inundados com imagens brutais que parecem confirmar que a humanidade está, de forma crescente, a desumanizar-se: seja pelos conflitos sanguinários no Iraque e na Síria, seja pelo impasse face à situação na Ucrânia, pelas raparigas raptadas no norte da Nigéria ou pelos ataques de extremistas na Europa. E a questão que se coloca é a seguinte: existe algum elo de ligação entre estas avassaladoras crises internacionais?

De acordo com Sarah Cheyes, ex-repórter premiada da National Public Radio e associada sénior do Democracy and Rule of Law Program no Carnegie Endowment for International Peace, a ligação, que pode ser inesperada, é clara: a corrupção.

De acordo com a autora do livro The Thieves of State: Why Corruption Threatens Global Security – e também da obra The Punishment of Virtue: Inside Afghanistan After the Taliban -, e em particular a partir da década de 1990, os níveis de corrupção atingiram uma proporção tal que “alguns governos se assemelham a gangues criminosos glorificados, preocupados apenas com o seu próprio enriquecimento. Estes cleptocratas conduzem as populações indignadas a extremos, seja através de revoluções ou a um tipo de religiosidade puritana militante”, escreve.

Detalhando a sua ampla experiência e vivência no Afeganistão (onde viveu, fez parte de uma ONG e construiu uma cooperativa), em conjunto com uma pesquisa pormenorizada sobre pensadores de várias épocas – de Maquiavel, a John Locke ou ao famoso chefe de Estado medieval islâmico, Nizam Al-Mulk e sobre vários dos conflitos actuais, Sarah Cheyes ilustra, de forma inovadora e surpreendente, de que forma a corrupção não só tem impacto na vida das “pessoas comuns”, como ameaça, perigosamente, a segurança e a estabilidade dos países.

A autora “mergulha” o leitor nas profundezas de alguns dos mais corruptos ambientes do planeta e analisa o que deste mar imenso vai emergindo: o regresso dos afegãos às fileiras dos Talibãs, os egípcios que derrotaram o governo de Mubarak – mas que estão também a redefinir a Al-Qaeda -, ou o terror infligido pelo grupo Boko Haram, entre outros capítulos sangrentos que estão, na actualidade, a ser inscritos num feio livro de(a) História. Apresentando uma forma nova para compreendermos o extremismo global, Sarah Cheyes apresenta argumentos fortes para olharmos para a corrupção como causa – e não como resultado – da instabilidade global. E não deixa os Estados Unidos – e outros países ocidentais – de fora.

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Corrupção governamental é rastilho para extremismo violento

Por que motivo é que quase metade da população iraquiana está a pactuar com o mais do que psicótico e autodenominado Estado Islâmico? O que ou quem permite que os militantes do Boko Haram cometam atrocidades desmedidas e estejam a ganhar terreno no norte da Nigéria? Se o Iémen está a ser atacado regularmente por drones, como é que as fileiras da Al-Qaeda continuam a engrossar na Península Arábica? De acordo com a autora, são cada vez mais os países – em especial os que, há quatro anos, se revoltaram na famosa Primavera Árabe – que estão a impulsionar códigos morais rígidos como o antídoto certo face ao colapso da integridade pública.

E tudo isto porque as populações, cansadas de viver num clima de corrupção diária e sentindo-se insultadas e injuriadas continuamente pelos seus próprios governos, eles mesmos os principais perpetradores desta “cultura”, começam a acumular raiva sobre raiva e a deixarem crescer o rastilho da violência. Sarah Cheyes ilustra bem a dimensão da corrupção em vários destes locais: pessoas que, para terem a certeza que os seus filhos são bem tratados na creche, têm de pagar às educadoras; as que precisam de ser atendidas num hospital público, têm de pagar aos médicos: as que pretendem que os seus filhos sejam aceites em universidades, são obrigadas a vender os seus bens para garantir a sua “inscrição” ou ainda um caso em específico, no qual é narrada a inacreditável história de um filho que, para conseguir uma certidão de óbito para o pai, morto por uma bomba, ter tido de pagar aos oficiais em causa para a obter, entre outras “actividades” similares.

São a estas mesmas pessoas, em especial aos homens – mas também a um número crescente de mulheres – “feridos no seu orgulho” e sem perspectivas positivas face ao futuro, que os grupos extremistas oferecem, em particular, duas coisas: em primeiro lugar, “os jihadistas, estão a aproveitar o significado ambíguo da palavra ‘corrupção’, argumentando que a razão devido à qual os oficiais governamentais são tão abusivos se deve ao facto de se estarem a afastar de uma obediência rigorosa às suas obrigações religiosas”, explica Cheyes, acrescentando que, para os extremistas, a única forma de produzir uma reforma eficaz na vida pública é “estes se manterem fiéis a um código restrito de moralidade privada”, imposto, se necessário, pela força. Em segundo lugar, o que estes grupos extremistas também oferecem a muitas destas vítimas de corrupção governamental severa é “um local onde podem libertar a sua raiva”. Oferecem-lhes uma arma e uma oportunidade para recuperarem a “honra perdida”, mesmo que o tenham de pagar com a própria vida, acrescenta a autora.

Só a história pessoal de Sarah Cheyes seria suficientemente interessante para ser narrada em livro. A autora chegou ao Afeganistão em 2001, enquanto correspondente da National Public Radio, para cobrir a queda dos Talibãs. Acabou por desistir da sua vida de jornalista e juntou-se a uma organização sem fins lucrativos denominada Afghans for Civil Society, na qual conheceu Qayum Karzai, um homem de negócios afegão, que vivia em Baltimore antes da invasão norte-americana e que, por acaso, era o irmão mais velho de Hamid Karzai, o homem cujas forças de coligação instalaram como presidente interino do Afeganistão em 2002. E grande parte deste argumento inovador sobre a corrupção enquanto principal “gatilho” para a violência extremista deve-se, exactamente, às várias experiências e vivências da autora nos quase oito anos ininterruptos que viveu no Afeganistão.

Ao contrário da maioria dos ocidentais que chegaram ao Afeganistão em meados da década passada, e que viviam isolados e em residências fortificadas, Cheyes tornou-se uma perfeita “nativa”. Como escreve a revista New Yorker numa extensa peça sobre Corrupção e Violência, Cheyes viveu em conjunto com uma enorme família afegã e começou a ser conhecida em Kandahar como uma espécie de “curiosidade”: “uma mulher alta americana, que se vestia como um homem afegão e que dormia com uma Kalashnikov ao lado da cama”. Depois da decepção com a ONG onde começou a trabalhar – e com o próprio Karzai e família -, lançou uma cooperativa de produtos para a pele: com o objectivo de encorajar os agricultores locais a produzirem frutos e flores, em vez de cultivarem as papoilas de onde se extrai o ópio, a sua ideia era promover o desenvolvimento sustentável e aumentar as alternativas relativamente à economia do ópio.

Desde 2009 que Cheyes tem ocupado vários cargos de conselheira governamental para as questões do Afeganistão, contribuindo para uma abordagem integrada da cleptocracia afegã e para a política estratégica não só no país que a acolheu mas também no Paquistão, e restantes “combatentes” da Primavera Árabe, tendo sempre como pano de fundo a luta contra a corrupção.

With a little help from (American) friends

26022015_OmaisEficazRastilhoParaAviolenciaExtrema2Se Sarah Cheyes sentiu, na pele, os embaraçados meandros da corrupção, as suas várias viagens pelo mundo – em especial, pelo árabe – acabaram por revelar uma realidade ainda mais perturbadora, uma teoria por ela elucidada através do regresso no tempo a velhas leituras europeias sobre corrupção e que deram origem à Reforma Protestante, por exemplo, comparando-as de seguida à selecção, bem dissecada, dos movimentos de protesto e resistência em vários cantos do mundo muçulmano.

Assim, a sua premissa central é a de que a corrupção estrutural provoca ressentimento, o qual leva às revoltas, aos protestos e, em alguns casos e crescentemente, serve como combustível para a violência extremista. No Afeganistão, onde os Estados Unidos travaram uma guerra, e no Egipto, onde a América “patrocinou a tirania governamental”, a qual culminou, em 2011, com a derrota não violenta do há muito aliado dos norte-americanos, Hosni Mubarak, Chayes argumenta que “ao tolerar a corrupção e, até de forma tácita e activa, ao permiti-la, os Estados Unidos acabam por frustrar os seus próprios objectivos estratégicos, ajudando até os extremistas islâmicos a recrutar legiões de carne para canhão para as suas fileiras”. E, apesar de não ser a primeira pessoa a alertar para esta realidade, fá-lo de uma forma inteiramente nova.

Traçando o perfil da corrupção no Afeganistão, Egipto, Tunísia, Uzbequistão e Nigéria – o exemplo detalhado que conduz ao surgimento do movimento Boko Haram no norte da Nigéria é particularmente bem explicado no livro – este manifesto anticorrupção põe a nu não só as teias bem enrodilhadas desta prática comum no mundo árabe, mas também não esquece o pactuar com estas situações por parte de muitos governos ocidentais.

Neste manifesto, enriquecido com a ideia de “a corrupção governamental grave e abusiva promove respostas extremas, as quais representam uma ameaça mortal à segurança”, Cheyes confessa a sua própria ingenuidade: ao ter tido como mentor o irmão mais velho de Karzai e de, ao longo de algum tempo ter acreditado nas suas “boas intenções”, antes de perceber que este “perdoava” repetidamente todos os seus subordinados envolvidos em esquemas complicados de corrupção, – acabou por aprender novas e valiosas lições e por ter visto “a fotografia” a partir de um novo ângulo. “Eu contribuí para o desenvolvimento de um sistema corrupto que estava bem à frente dos meus olhos”, confessa.

Esse novo momento de “iluminação” aconteceu quando Cheyes percebeu que a CIA estava profundamente envolvida nestes mesmos esquemas de corrupção, e que as detenções dos senhores da droga e de outros “prevaricadores” similares eram facilmente anuladas não só pelos afegãos, mas também pelas redes de corrupção mais do que consolidadas norte-americanas.

A posição actual de Cheyes não é, de todo, fácil. Apesar de ser conselheira de altas patentes da administração Obama – e de continuar a lutar contra a corrupção instalada – é, também e obviamente, vista de lado, por muitos dos seus conterrâneos, espalhados pelos vários corredores do poder em Washington.

Mas de uma coisa está certa: “os governos [nos países árabes] que são vistos como fracos ou como Estados falhados são, na verdade, poderosos e extremamente organizados”. Claro que para o crime, e não para os serviços sociais que deveriam prestar aos seus povos.

Editora Executiva