A compreensão aprofundada dos comportamentos dos nossos adolescentes “é essencial, mas não nos diz como podem escolher objectivos” estruturantes para o seu futuro ou estilos de vida saudáveis. Ao nível de políticas da saúde dirigidas a jovens, é “preciso reforçar esforços para não perder o rumo: avaliar as acções, divulgar boas práticas, criar uma agenda própria de carácter científico”, diz em entrevista a coordenadora do estudo HBSC, cujas conclusões de 2010 (animadoras, por sinal) foram agora divulgadas
POR GABRIELA COSTA

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O HBSC / OMS – Health Behaviour in School aged Children é um estudo colaborativo da Organização Mundial de Saúde que estuda, de quatro em quatro anos, o estilo de vida, problemas e contextos de vida dos adolescentes, em 44 países da Europa e da América do Norte.

Em Portugal, a investigação realizada pela equipa dos projectos Aventura Social, da Faculdade de Motricidade Humana (FMH) e do Centro da Malária e Doenças Tropicais, envolveu mais de cinco mil alunos inquiridos, com uma idade média de catorze anos, incluindo adolescentes de ambos os sexos, do 6º, 8º e 10º anos de escolaridade, do continente e da Madeira.

A avaliação dos estilos de vida dos adolescentes e dos seus comportamentos nos vários cenários das suas vidas registou uma evolução positiva, face aos estudos anteriores, realizados em 1998, 2002 e 2006, mas há um longo caminho a percorrer a muitos níveis, que requer um trabalho continuado e articulado, conclui a coordenadora do estudo, Margarida Gaspar de Matos.

Adolescentes mais obesos
A saúde dos adolescentes portugueses “reflecte as mudanças contemporâneas”, o que em números se traduz, por exemplo, numa redução do consumo do tabaco, confirmando a tendência crescente de adolescentes que não fumam, desde 2002. No ano passado essa percentagem subiu para 88%. O consumo regular de álcool diminuiu – o consumo diário de bebidas destiladas foi de 0,3% em 2010, o mais baixo de sempre -, mas o seu abuso episódico não. De reter ainda que em 2010 75,1% dos inquiridos afirma nunca se ter embriagado, contra os 73,7% registados em 2006.

Quanto ao consumo de drogas, a experimentação de haxixe aparenta uma tendência para aumento depois da “baixa histórica de 2006” (de 8,2% para 8,8%), diz Margarida Matos. A experimentação de outras drogas também subiu ligeiramente e o número de adolescentes que nunca consumiu substâncias ilícitas diminuiu bastante em 2002 (93,4%, face aos 97,5% registados em 1998), mantendo-se sem alterações significativas desde então. O consumo regular passou de 1,1% em 2006, para 1,4%, em 2010.
A provocação em meio escolar diminuiu, mas existem nichos residuais em termos de consumos e violência (provocadores), o que “reitera a importância das medidas de prevenção universal e remete para a necessidade urgente de medidas de prevenção selectiva”, aponta a coordenadora. Em 2010, 71,6% dos jovens inquiridos nunca se envolveu em lutas no último ano, e a maioria dos adolescentes não foram provocados nem provocaram os colegas na escola, dois indicadores que têm vindo a melhorar desde 2002.

Quanto a estilos de vida mais ou menos saudáveis, os jovens passam mais tempo sentados frente a um ecrã, principalmente em frente ao computador: 16,8% dos jovens utilizam o computador durante mais do que quatro horas/dia durante a semana, valor que em 2006 era 14,9%. Já a média dos que vêem televisão durante mais de quatro horas, durante a semana, diminuiu de 35,8% em 2006 para 25,2%, em 2010.

Embora cerca de metade dos adolescentes pratique actividade física três vezes ou mais por semana, e 80% mantenha o bom hábito de tomar o pequeno-almoço todos os dias, o aumento do excesso de peso, registado para a infância desde há uns anos, “parece ter chegado à adolescência”. Mantém-se o aumento do consumo de doces, iniciado em 2002, e 10% dos jovens fazem dieta.

Segundo a especialista, a saúde dos jovens adolescentes reflecte uma situação favorável, “associável a políticas sectoriais e intersectoriais eficazes mas que, de algum modo, reflecte também uma grande dificuldade de sustentação dessas medidas assim que começam a ter resultados positivos. O excesso de peso, tal como o aumento na experimentação de haxixe revelam isso mesmo, conclui.

Consumos aditivos e novas formas de violência sob escuta
Finalmente e em relação à sexualidade, destaca-se um maior uso de preservativo (que vem aumentando desde 2002, de 71,8% para 82,5%), e um menor conhecimento sobre as temáticas da sexualidade e da educação sexual. 21,8% dos alunos do 8º e 10º anos e 16,9% dos alunos do 6º ano referem já ter tido relações sexuais. O maior risco verifica-se nos mais novos, alerta Margarida Matos, uma vez que o menor uso do preservativo ocorre nos jovens mais novos que já iniciaram a sua vida sexual. Estes dados ”remetem para a necessidade de uma intervenção precoce e para a necessidade de prevenção da inconsistência educativa e de promoção do diálogo família – escola”, diz.

“A entropia que se está a gerar à volta da crise torna difícil que os jovens tenham expectativas. Se não sonharem com o futuro, investem menos no presente” .
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Os jovens declaram-se mais à vontade para falar de sexualidade com os colegas e menos com pais e professores (tanto em 2006 como em 2010), o que implica “uma reflexão aprofundada sobre o papel dos pais e a formação de professores”.

Sobre os primeiros, o Health Behaviour in School aged Children conclui que houve uma valorização sociocultural e escolar da geração dos pais, associada potencialmente a uma maior valorização da escola e a comportamentos de saúde ou de valorização da saúde.

Para a coordenadora do projecto da equipa do Aventura Social & Saúde, é necessário continuar atento “às questões do consumo de drogas, álcool e tabaco e da educação sexual, para garantir mudanças sustentáveis e evitar surpresas com problemas emergentes”. Atento também é necessário estar em relação “à história contemporânea: a violência diminuiu mas novas formas surgem, como a violência auto-dirigida e a violência via novas tecnologias de informação e comunicação, alerta.

Por último, e como explica em entrevista ao VER, para Margarida Gaspar de Matos, ao nível de políticas da saúde dirigidas a jovens em idade escolar, é “preciso reforçar esforços para não perder o rumo: “por muitas boas práticas que se tenham iniciado e concretizado, e por muito trabalho que tenha sido feito com jovens, nas escolas e nas comunidades, salientam-se dois efeitos perversos: o primeiro é a falta de continuidade e sustentabilidade das acções, o segundo é a carência de uma agenda própria, robusta e consistente, de carácter científico, que impeça a política do sector de andar sempre (atrasada e intermitente) atrás dos problemas.

Como comenta as principais conclusões da edição de 2010 do estudo Health Behaviour in School-aged Children, que revelam uma evolução positiva na maioria dos indicadores analisados?
Desde 2005 muita acção tem decorrido nas escolas, nomeadamente após a criação do grupo de trabalho GTES do Ministério da educação. Revitalizou-se a transversalidade nas várias disciplinas da escola a volta da saúde, criou-se a figura do coordenador para a saúde na escola, criou-se a área da saúde nas áreas curriculares não disciplinares, impulsionaram-se os gabinetes de saúde na escola, o Ministério disponibilizou uma colectânea de textos de apoio aos professores em três áreas fundamentais (alimentação, violência, consumo de substâncias), disponibilizou-se a avaliação FITness Gram para a actividade física em todas as escolas, criou-se uma comissão de avaliação de manuais na área da educação para a saúde. Por outro lado, muitas universidades (incluindo a FMH) incluíram a disciplina de educação para a saúde na formação de professores (eu tenho anualmente sessenta estudantes-professores que já vão concluir os seus estudos com essa especialidade) e, muito importante, iniciou-se um edital para financiamento de projectos na área da saúde para escolas, e desenvolveram-se vários concursos nas áreas da alimentação, violência, VIH Sida e estilos de vida saudáveis para alunos.

O problema é que quando se começou a falar de “crise” muitas destas acções foram descontinuadas e a grande melhoria de indicadores verificada  entre 2002 e 2006 não permaneceu assim tanto até 2010. Refiro-me, Nomeadamente, às questões da alimentação, excesso de peso, tempo de ecrã associado a baixo índice de actividade física e ao aumento de experimentação de haxixe.

Quais são os factores que destaca pela positiva? E pela negativa?
Relativamente a hábitos de alimentação, saúde e higiene e prática de desporto, muito há ainda a fazer: é necessário, sobretudo, retirar a aura de “fundamentalismo” das intervenções a este nível.
Alguns técnicos são muito prescritivos e exigentes à volta da alimentação saudável e dos benefícios do exercício e os adolescentes não conseguem acompanhar, ficam frustrados e desistem. Temos que manter o “gosto” e o “prazer” associado aos temas da saúde. Disciplina draconiana de exercício e alimentação saudável não conjuga com adolescência. Para os jovens, esse discurso é uma ” seca”. A alimentação tem de saudável, mas também saborosa e consumida num convívio agradável.

O mesmo sucede com o desporto. A actividade física não pode ser só competição e boas marcas…ou sacrifício. Tem de ser um prazer e um espaço de convívio diversificado. Após tanta acção nas escolas, o fracasso das medidas que estão no terreno tem de nos fazer pensar em alternativas que incluam o prazer e sejam culturalmente relevantes.

Agora que passam mais horas no computador, os jovens passam menos tempo a ver televisão. Mas em qualquer dos casos, o excesso de tempo que passam sentados frente ao ecrã, associado à ingestão de doces e refrigerantes, estará sem dúvida a apontar uma explicação para o aumento do excesso de peso entre os adolescentes.

Já no que concerne consumos aditivos, o consumo de tabaco tende a baixar, bem como a ingestão de álcool com regularidade. Já o abuso de álcool, concentrado ao fim de semana, tende a aumentar e regista-se um aumento no consumo de drogas muito ligeiro mas também muito sistemático e em praticamente todos os produtos.

Quanto ao recurso a tecnologias (Internet, redes socais, televisão), todos os miúdos têm computador e ligação à Internet e isso parece-me bom: acesso a informação. Por outro lado, cerca de quinze por cento destes jovens já foram molestados online, mas a grande maioria sabe lidar com as situações.

Contudo, e apesar da tinta toda que corre a respeito de bullying, as provocações e as lutas em meio escolar estão a diminuir desde 2002. As situações de violência continuam a ser preocupantes, nomeadamente os casos de vitimização, mas os resultados a este nível têm sido um sucesso, tal como os do consumo de tabaco.

O ciberbulling, que não é um fenómeno novo, está muito localizado. Os miúdos são mesmo “digital native” e, alem disso, existem programas escolares que os ensinam a defender-se.

Finalmente, ao nível de comportamentos sexuais há uma necessidade de intervenção precoce junto dos adolescentes mais novos, que tipicamente não têm ainda uma actividade sexual genital, e são os que estão potencialmente mais em risco de virem a ter relações desprotegidas.

A informação não gera doenças sexualmente transmissíveis, nem gravidez indesejada. A ignorância sim. Por isso a hipocrisia a este nível prefigura um crime de saúde pública, qualquer que seja o partido ou o grupo religioso a subscrevê-lo. Mas a informação por si só não basta, deve servir para construir competências que permitam negociar, recusar, conversar, tornando-se útil na altura certa.

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Os adolescentes portugueses estão demasiado preocupados com a sua imagem? Que leitura faz da percepção que muitos têm do excesso de peso, referindo problemas de obesidade?
Constata-se realmente que há muito mais jovens que se referem a si mesmos como gordos do que aqueles que realmente têm excesso de peso. Essa penalização da sua auto-estima corporal “não faz bem à saúde”, por isso acho que os profissionais de saúde ligados à actividade física têm de rever a sua actuação para não serem tão “exigentes” e “castigadores” e conseguirem perceber as “tentações”  a que os jovens ficam sujeitos com todo o marketing. É necessário que estes técnicos compreendam que não é só informar e depois recriminar, e que é difícil para um adolescente manter-se activo, ser desportista e fazer uma alimentação saudável no meio de todas as solicitações e contratempos que têm no dia-a-dia. Temos que os ajudar com “pistas para a acção”  que aceitem que “não é fácil” mas que lhes mostrem formas de ultrapassar essas dificuldades. Neste momento estamos envolvidos num projecto europeu, o TEMPEST, que visa exactamente promover a auto-regulação no confronto com as ” tentações”.

Qual é a sua percepção sobre o modo como os adolescentes encaram a escola? Valorizam suficientemente a aprendizagem?
Entendemos que a escola existe para se aprender e não para os alunos se divertirem. Mas aprender não tem que ser um aborrecimento. Alguns professores focam demais a sua atenção nas aprendizagens e os alunos reflectem que nem os ” ouvem” nem se interessam por eles como pessoas. Eu gostaria que a grande maioria dos professores aumentasse consideravelmente a sua capacidade de ouvir e se interessar pelo aluno globalmente. Os professores em geral aparecem aos alunos como uma classe profissional desmotivada e descrente no futuro, o que não ajuda.

É incompreensível como a questão do sucesso académico dos alunos em relação à Europa não nos deixa muito bem colocados. Claro que tivemos há 35 anos vários anos de obscurantismo cultural e de uma educação de elite, e o país ainda está a ajustar-se a uma educação de massas, como tem e deve ser… mas até quando?

Como podem os políticos de educação e saúde, os técnicos de saúde e os professores e pais trabalhar melhor em conjunto?
Com muita dificuldade. Mas é preciso realmente  juntar sinergias, lutar contra o desperdício, criar uma agenda própria que não tenha a ver com as alternâncias governamentais nem com os “fogos” da comunicação social. Avaliar o que foi feito e não começar sempre do zero. Divulgar as boas práticas (que já vão sendo bastantes) e acabar com esta nossa crónica baixa auto-estima nacional: basta atravessar a fronteira para percebermos que não estamos  na cauda da Europa.

Em que medida a compreensão aprofundada dos estilos de vida e comportamento dos nossos adolescentes permite melhorar os seus comportamentos de saúde, reduzir comportamentos de risco e promover a sua integração em ambiente escolar?
A compreensão é absolutamente necessária, mas depois é preciso ir mais longe, porque só compreender diz-nos quando estamos a ” fazer mal” ou a ” fazer bem”. Mas não nos diz o que os jovens hão-de fazer para conseguir chegar aos seus objectivos. Para isso é preciso adquirir competências de relacionamento interpessoal, de resolução (pacífica) de conflitos e problemas, de auto-regulação emocional, de resiliência face a problemas. E é preciso conseguir captar e manter um capital social (grupo de amigos, família, adultos de referência). A este nível, a interacção entre a escola e a família pode e deve ter um papel da maior importância.

Essa percepção é ainda mais importante no actual contexto de crise socioeconómica?
Mais do que a crise, aos miúdos importa a entropia que se está a gerar à volta da crise, e que lhes dificulta ter expectativas no futuro. Se não sonhamos com o futuro, o nosso investimento no presente torna-se mais difícil.

“A mensagem é clara”
Para Margarida Gaspar de Matos, a saúde constrói-se e mantém-se:na família, através de uma boa comunicação interpessoal, de um interesse dos pais pela vida dos filhos e de um apoio dos pais na autonomia e na tomada responsável de decisões;

no grupo social, através da construção e da partilha de uma literacia emocional e afectiva no espaço interpessoal;

na escola, através do gosto pela escola e da valorização do “aluno-pessoa”;

em cada um de nós, através da promoção de competências pessoais e interpessoais que permitam uma eficaz auto-regulação emocional, no confronto com os riscos, com  os desafios , com as ameaças e com os problemas do dia-a-dia.

 

Jornalista