“A forma como uma sociedade trata as suas crianças é a revelação mais intensa da sua alma”. A frase de Mandela lê-se nesta década com algum optimismo, já que, à redução da mortalidade infantil, se juntam importantes progressos em áreas como a escolarização, a igualdade de géneros, as políticas públicas ou a alocação orçamental à educação e cuidados na primeira infância. Mas “esta tem sido a meta mais negligenciada nos esforços realizados pelos governos, ao nível nacional e internacional” acusa, num relatório da CGE, o ex-Relator das Nações Unidas sobre o Direito à Educação. Na semana em que o mundo dedica um Dia às suas crianças, recordemo-nos que a primeira infância é crucial para o desenvolvimento e os mais pequenos “não podem esperar”, como diz a directora da UNESCO
“Direitos desde o Princípio – Educação e Cuidados na Primeira Infância para todos e todas, agora!”. Foi com este mote que a Campanha Global pela Educação (CGE) realizou, em Abril, mais uma Semana de Acção Global, em 2012 dedicada ao tema “Educação e Cuidados na Primeira Infância”, período definido entre os zero e os oito anos. Em Portugal, mais de oito mil crianças, jovens e adultos aderiram à iniciativa, juntando-se a muitos outros milhares de activistas pelo direito à educação, do mundo inteiro. A mensagem transmitida é muito simples: o desrespeito pelos direitos das mil milhões de crianças menores de oito anos que existem actualmente, bem como “o consequente impacto nos seus outros direitos, oportunidades e sociedades, é demasiado devastador para continuar”. O relatório “Direitos desde o Princípio – Educação e Cuidados na Primeira Infância”, lançado por ocasião desta Semana de Acção pela Global Campaign for Education, reflecte os progressos e desafios em matéria de políticas públicas, alocação orçamental, escolarização, pessoal docente, igualdade de género, saúde e outras áreas relevantes para a primeira infância. Embora se tenham registado importantes progressos nestas áreas, algumas mudanças “têm sido excessivamente lentas ou inconsistentes”, gerando “atrasos adicionais no reconhecimento da titularidade das crianças aos direitos humanos e, portanto, ao seu direito a uma cidadania plena durante a primeira infância”. A Educação e os Cuidados na Primeira Infância (ECPI), enquanto uma das Metas de Educação para Todos, tem, pois, “sido a mais negligenciada nos esforços realizados pelos governos, ao nível nacional e internacional”, conclui o ex-Relator Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Educação, Vernor Muñoz, autor do relatório. Visão redutora alimenta assimetrias Irina Bokova, directora geral da UNESCO, acredita mesmo que “a educação e os cuidados na primeira infância são a força mais poderosa para mitigar a privação do agregado familiar e preparar as crianças para a escola, constituindo “uma estratégia inovadora para alcançar os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio”. Mas a educação “deve começar cedo e ser o mais inclusiva possível”, aponta, pois “nenhuma sociedade se pode dar ao luxo de deixar uma criança para trás”. Reforçando os avanços que no século XXI têm dado origem a “muitas experiências positivas para partilhar, Irina Bokova defende que a própria realidade “tem demonstrado que precisamos de políticas públicas firmes, que estabeleçam objectivos específicos para alcançar os mais vulneráveis e potenciar ao máximo todas a formas de diversidade, conclui a directora da UNESCO. Reconhecendo o “potencial de uma abordagem inovadora de base comunitária”, Bokova lamenta que o investimento na educação e cuidados na primeira infância seja ainda “demasiado fracos para os países conseguirem fazer progressos” em direcção ao primeiro objectivo da Educação para Todos. Na sua Conferência Mundial de 2010, a UNESCO lançou um processo inter-agências para desenvolver um Índice Holístico sobre o Desenvolvimento na primeira infância. Porque “as crianças pequenas não podem esperar, e são um motor indispensável”, conclui na sua mensagem integrada no relatório “Direitos desde o Princípio” a responsável da UNESCO.
Investir na primeira infância é aposta ganha As conclusões do estudo ditam que os Estados devem criar ou fortalecer as redes públicas para a promoção efectiva de cuidados na primeira infância, tanto para as crianças como suas famílias, e que devem criar políticas públicas e linhas directivas de implementação específicas para a primeira infância. As políticas nacionais devem centrar-se também na redução da pobreza infantil e as famílias com baixos rendimentos devem poder contar com a possibilidade de receber apoio monetário, acesso à saúde e educação, lê-se ainda. É “absolutamente importante” que os planos para a educação e cuidados na primeira infância sejam concretizados, o que requer “a adopção de indicadores para medir as mudanças que ocorrem na população-alvo”, que sejam monitorizados, avaliados e reportados à comunidade. As coligações da sociedade civil “têm o papel de observadoras e devem ser apoiadas pelos doadores”, diz a CGE. Por outro lado, os sistemas utilizados para registo da informação devem desenvolver estratégias para incluir dados que indicam o risco de discriminação no acesso à educação com base, por exemplo, no género, etnia ou deficiência. É também necessário desenvolver estudos partindo da diversidade e estimular o debate e a participação no desenvolvimento de políticas capazes de abordar questões estruturais urgentes. A formação de professores deve equipar os docentes para criar e fortalecer o respeito por todas as identidades diferentes, conclui ainda o relatório. A Global Campaign for Education deixa, contudo, um alerta: o direito à educação e a cuidados na primeira infância “não está ligado exclusivamente a um melhor desenvolvimento económico ou à teoria do capital humano, nem a qualquer outra abordagem que possa levar à mercantilização do direito humano à educação”. Ter direito ao futuro
No que respeita à Educação, e apesar de se terem registado avanços e progressos consideráveis que acompanharam o crescimento demográfico das últimas décadas, existem ainda disparidades geográficas, continuando a África Subsariana e o Sul da Ásia a estar muito longe de algumas metas previstas pelos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio e nas Metas de Educação para Todos e Todas, definidos em 2000, sublinha a Coligação, num manifesto da SAGE. Existem também disparidades sociais, diz. Dito isto, os progressos e direitos adquiridos nos últimos anos “estão sob ameaça de regressão no contexto actual de crise financeira internacional”. E o desinvestimento na Educação, “mais do que uma falha nos compromissos assumidos, põe em causa o próprio direito à educação e o futuro das próximas gerações”, aponta a CGE. Reconhecendo que os primeiros anos de vida constituem um período fundamental para o desenvolvimento da criança, sendo cruciais para o sucesso que terão na escola e ao longo da vida, em todo o seu percurso profissional, pessoal e familiar, a Campanha Global pela Educação dedicou este ano a sua Semana de Acção Global (SAGE) às questões mais prementes que se colocam actualmente aos progressos educativos na primeira infância. Do evento resultaram vários contributos – em forma de desenhos, fotografias e mensagens – , que fazem parte de um “Grande Retrato” que a CGE desenvolveu, com a participação de várias escolas, para chamar a atenção dos líderes políticos e da opinião pública para esta problemática. A SAGE realiza-se anualmente por iniciativa da Global Campaign for Education, da qual fazem parte coligações nacionais de cerca de cem países, constituídas por organizações da sociedade civil, sindicatos do sector educativo e diversas entidades públicas e privadas comprometidos com o direito à educação. A Campanha Global pela Educação, presente em Portugal desde 2003, formalizou uma coligação em 2007, actualmente constituída pelas seguintes organizações e entidades: AIDGLOBAL, Associação Par, Confederação Nacional de Acção sobre o Trabalho Infantil, Comité Português para a UNICEF, Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto, Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Fundação Gonçalo da Silveira, e Instituto de Solidariedade e Cooperação Universitária – Núcleo de Viseu.
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Jornalista