O trabalho deixou de ser, para muitos, um meio para atingir um fim. Já não se trabalha meramente por razões de subsistência, mas por um conjunto de razões que misturam a construção de identidade, o aumento da auto-estima, a noção de propósito e a vontade, própria da natureza humana, de querer mais e melhor. No século XXI, o trabalho árduo é praticado por um conjunto crescente de pessoas que o consideram não como parte da sua vida, mas como a própria vida. E se é bom saber que existem pessoas apaixonadas pelo que fazem, esta obsessão, como todas, pode ter consequências muito negativas
POR HELENA OLIVEIRA

Em 1930, em plena Grande Depressão, o economista John Maynard Keynes escreveu o ensaio “Economic Possibilities for Our Grandchilderen”, no qual previa que, num período de 100 anos, a sociedade teria progredido tanto que pouco teria de trabalhar. As contas feitas por Keynes indicavam que uma semana de 15 horas de trabalho seria o suficiente para provermos ao nosso sustento e que o principal desafio das economias mais desenvolvidas seria o de preencher o tempo de lazer, sob pena de se cair num gigantesco tédio.

Em termos gerais, a semana de trabalho diminuía a um bom ritmo – de cerca de 60 horas semanais na viragem do século para 40 na década de 1950, mantendo-se mais ou menos inalterada até aos anos de 1970. À medida que a produtividade crescia no mundo rico, os salários por hora dos trabalhadores continuaram a subir, ao mesmo tempo que as horas de trabalho semanal iam diminuindo. E esta combinação de tempo extra e de rendimentos suficientes daria origem a um lazer massificado, a férias em família e a longos jantares seguidos por umas boas horas a ver televisão. Entretanto, algo começou a mudar. Os trabalhadores menos qualificados foram forçados a aceitar salários cada vez mais baixos para se manterem a trabalhar e, graças a um conjunto de forças económicas e sociais, e em particular por causa da globalização e da tecnologia, o horário de trabalho diminuiu para os mais pobres – apesar de muitos serem obrigados a ter mais do que um trabalho para sobreviverem – e subiu para os mais ricos, enredados num mundo de competição extrema em que o trabalho se tornou garantia de padrões de vida mais elevados, de status e de um “workaholicismo” nem sempre fácil de explicar.

A verdade é que quase 90 anos após a previsão de Keynes, e apesar de um século de automação e avanços tecnológicos que nos retiraram das mãos muitas tarefas verdadeiramente consumidoras de tempo, a semana de 15 horas de trabalho transformou-se, para muitos, em 15 horas diárias de labuta, que chegam a “entrar” “pelos fins-de-semana e até pelas férias adentro. Afinal, precisaremos mesmo de trabalhar tantas horas? Fazemo-lo porque é “obrigatório”, porque nos falta organização ou porque é no trabalho que encontramos sentido para as nossas vidas?

De acordo com um interessante artigo publicado pela revista Fast Company, que chama a este tipo de fenómeno “workism”, o que os economistas do século XX não anteciparam (foram vários que previram a redução significativa do horário laboral) foi o facto de o trabalho ter evoluído de um meio de produção material para um meio de produção de identidade. Falharam em antever que, para os pobres e para a classe média, este continuaria a ser uma necessidade, mas que para as elites mais educadas, o mesmo se transformaria numa espécie de religião, com uma promessa de identidade, transcendência e comunidade. Daí que a definição de “workism” considere o trabalho não só como necessário à produção económica, mas também como a peça central para a identidade de cada um e para o seu propósito na vida.

Se o trabalho constituiu, e durante um longo período, um meio para atingir um fim – ou seja, trabalhávamos para ganhar dinheiro suficiente para prover as nossas necessidades – e a “vida” era o que acontecia fora dele, na actualidade o trabalho é mais um fim e, mais importante, a própria vida. De nada parece ter valido o progresso em termos de produtividade e de eficiência, em conjunto com a possibilidade de termos agora mais controlo sobre o tempo que dispomos, para desejarmos trabalhar menos horas. O sonho de termos mais tempo para nós, para os nossos filhos, para os nossos hobbies, que imaginamos sempre em alturas de maior exaustão, parece não ser suficientemente importante para que nos consigamos desligar dos nossos projectos, ambições e metas exigentes muitas vezes traçadas por nós mesmos, mesmo que nos queixemos do “busyness”, o que na verdade é mais uma forma de dizermos ao mundo que trabalhamos imenso e que, por isso mesmo, somos um mecanismo demasiado importante na roda laboral para o deixarmos de o fazer.

E porquê? A resposta a esta questão parece residir mais na natureza humana – e nas expectativas crescentes de uma “boa vida” – e, é claro, também na forma como o trabalho está estruturado na nossa sociedade. Um artigo na revista Aeon que defende a ideia de que temos as tecnologias e ferramentas necessárias para trabalharmos menos e vivermos melhor, arrisca em afirmar que parte da resposta reside numa espécie de “inflação do estilo de vida”. Ou seja, os humanos têm um apetite insaciável por “mais” e se Keynes falava em resolver o “problema económico, a luta pela subsistência”, a verdade é que são muito poucas as pessoas que escolhem viver apenas com o suficiente para a sua subsistência. Querem sempre mais. O que, na verdade, não é nenhum facto criticável. E também há que não esquecer que a persistente desigualdade social obriga a que sejam muitos os que têm de cumprir longas jornadas laborais apenas para subsistirem. Mas, e neste caso em particular, o que está em causa não são aqueles que se sentem miseráveis por trabalharem muitas horas, mas exactamente o contrário: os que não se sentem de todo mal por o fazerem, mas muito bem até.

Do “que fazemos” para “o que somos”

O livro “The Wealth of Humans: Work, Power and Status in the Twenty-first Century”, da autoria de Ryan Avent, editor da revista The Economist, tenta igualmente traçar os motivos devido ao quais trabalhamos tanto. E são várias as razões apontadas para tal. Uma delas está relacionada com o facto de vivermos numa era de “abundância laboral”, ou seja, a natureza cognitiva do trabalho que a maior parte de nós executa significa que muitas pessoas – e com diferentes backgrounds – possam fazer exactamente o mesmo que nós. Assim, trabalhamos arduamente porque temos a noção de que, por muito bons profissionais que sejamos, somos vulneráveis a ser substituídos e porque sabemos que existem muitas pessoas dispostas a trabalhar ainda mais horas que nós para serem bem-sucedidas naquele que é o “nosso” trabalho.

Todavia, este temor não explica tudo nem pouco mais ou menos. Uma outra razão defendida pelo autor – e que desenvolveremos mais à frente – reside exactamente no facto de realmente gostarmos do nosso trabalho e de ele nos dar um prazer significativo. O trabalho que fazemos é intrinsecamente interessante e já que passámos tanto tempo a desenvolver experiência e especialização numa área da nossa escolha, a ideia é que este mesmo trabalho seja reconhecido. Outra razão que explica o motivo do trabalho ser tão recompensador é o facto de as nossas redes profissionais e sociais estarem intimamente integradas: trabalhamos com pessoas que gostamos e gostamos das pessoas com quem trabalhamos. Ou seja, a divisão entre a nossa vida pessoal e profissional basicamente desapareceu, sendo que a nossa identidade está muito ligada ao trabalho que fazemos. E também trabalhamos muito porque, por um lado, sentimo-nos como parte de algo maior que nós mesmos. Acreditamos (pelo menos, em muitos casos) que a missão da organização para a qual trabalhamos se alinha com os valores e objectivos que defendemos e que o nosso trabalho constitui parte importante e integrante para se alcançar essa missão institucional mais alargada.

Nas pesquisas sobre este tema, o “trabalhar muito e por paixão” está principalmente relacionado com as elites mais educadas – e, no caso dos Estados Unidos e de outros países ricos em particular, com as mais endinheiradas também – o que explica a já falada natureza humana que “quer sempre mais”, mas também com o significado crescente do trabalho enquanto propósito da vida. Numa recente pesquisa realizada pelo Pew Research sobre a ansiedade que consome muitos jovens na actualidade, 95% dos inquiridos afirmaram que ter “um trabalho ou uma carreira de que gostem” seria “muito ou extremamente importante” para eles enquanto adultos. E esta resposta teve maior pontuação do que qualquer outra, incluindo “ajudar outras pessoas que precisem” (81%) ou contrair matrimónio (47%). Ou seja, encontrar significado no trabalho assume-se, para estes jovens, como a sua principal prioridade, tal como está a acontecer com a geração dos millennials, para quem o propósito é tão ou mais importante que o cheque ao final do mês e também para a dos mais velhos Xers, que não têm vontade de ser substituídos pelos jovens nativos digitais, mesmo que não partilhem inteiramente as suas opções. Os que pertencem à geração X também se esforçam para aumentar os seus rendimentos com vista a padrões de vida mais elevados, imprescindíveis para manter a conta do Netflix, para comprar o telemóvel de última geração, as viagens de férias ao estrangeiro ou para iniciarem os filhos, desde cedo, nas actividades extracurriculares, nos bons colégios, que também lhes abrirão portas para a tão desejável bem-sucedida carreira. No fundo, é perpetuar a ideia de que o trabalho continuará a servir como o grande propósito da vida.

O trabalho passou a ser emocional e até “espiritual”

Mas existe algo de errado em se trabalhar árdua e obsessivamente? Em qualquer economia avançada, as pessoas em idade activa que podem trabalhar, trabalham. Sem trabalho, a maioria das pessoas sente-se miserável. Existem até algumas evidências que sugerem que o desemprego de longo prazo é ainda mais doloroso do que perder uma pessoa próxima. E não existe nada de errado com o trabalho, quando o trabalho tem de ser feito. O problema – se é que assim possa ser chamado – coloca-se mais quando o móbil é uma corrida desenfreada pelo status e pelo rendimento, em particular nas já denominadas elites mais educadas e com mais dinheiro, na medida em que lógica deixa de ser apenas económica, mas também emocional e até espiritual.

No artigo já mencionado cobre o “workism” e que tem como protagonistas os americanos mais educados e de elevados rendimentos, o autor afirma que estes, que podem ter tudo quanto desejam, escolhem o escritório como o seu “altar” pela mesma razão que os católicos vão à missa aos Domingos, na medida em que este é o local onde se sentem mais “eles próprios”. E construir mais riqueza surge como um processo criativo, para além de ser um bom substituto para a sua noção de divertimento. Mesmo que este culto e esta cultura de trabalho obsessiva redunde, muitas vezes, numa ansiedade colectiva, num desapontamento massificado e em burnout, outro fenómeno dos nossos dias.

Outro fenómeno em evolução é o próprio conceito de trabalho. Ao longo das últimas décadas, o trabalho deixou de ser um emprego, para passar a ser uma carreira, e mais recentemente ainda, um chamamento, sendo que a necessidade [para trabalhar] foi substituída pelo tal significado ou propósito. E quando não se encontra a “alma vocacional”, a vida parece perder todo o seu encanto. Como afirma o autor do livro “The Once and Future Worker”, Oren Cass, “criámos esta ideia de que o significado da vida deverá ser encontrado no trabalho”. E a verdade é que assim é. Quantas vezes não dizemos aos mais jovens que devem procurar um trabalho que possa ser a sua paixão? Que não desistam até que encontrem um trabalho que adorem? O tema não é só proferido em discursos inspiradores como tratado inúmeras vezes pelos meios de comunicação social ou na literatura.

Por outro lado, e como também defende o já mencionado Ryan Avent, as nossas redes sociais deixaram de ser constituídas apenas por vizinhos e amigos, incluindo agora também clientes e colegas. Este mundo entrelaçado de trabalho e vida social enriquece-nos, expõe-nos a pessoas que fazem coisas que admiramos e mantém-nos informados sobre o que se passa no nosso universo profissional, algo que não queremos deixar passar. E se esta mistura entre social e profissional não é propriamente nova, a forma como esta rede “engole” os demais mundos é cada vez mais notória.

Existe um valor quase espiritual, para além do económico, nesta interligação estreita entre vida e trabalho. Aqueles que gostam de nós reforçam a nossa crença naquilo que fazemos. Trabalhar eficazmente num “bom trabalho” reforça também a nossa identidade e estima aos olhos dos outros. Congratulamo-nos uns aos outros, partilhamos os sucessos dos nossos amigos (muitas vezes com uma pontinha de inveja) e perdemos contacto com quem não pertence à nossa rede. E passar o nosso tempo de suposto lazer com outros profissionais empenhados suporta a ideia de que o trabalho árduo faz parte da “vida boa” e que o sacrifício que tal implica só aumenta a nossa dignidade. E é isto que uma classe com um forte sentido de identidade faz, mesmo que a vida no interior de uma comunidade profissional tenha as suas próprias imposições, como por exemplo o facto de o erro ou o fracasso se transformarem em experiências particularmente humilhantes, como também escreve Ryan Avent no seu livro.

Este universo de “quem corre por gosto não cansa” integra também, e como não poderia deixar de ser, a interferência dos media sociais, os quais ampliam a pressão para se criar uma imagem de sucesso, seja para nós mesmos, seja para amigos e colegas. É que os trabalhadores da actualidade viram-se para as redes sociais para manifestarem os seus feitos, partilhando “estados” de “muito ocupados”, misturados com citações profundas (ou nem por isso) sobre o valor do trabalho ou sobre o quanto adoram aquilo que fazem. Qualquer conta do Twitter, do Facebook ou do LinkedIn está profundamente marcada com as métricas das conquistas profissionais – contam-se os seguidores, os amigos, os que “viram” as publicações, os que as partilharam – numa espécie de competição desenfreada. À qual dificilmente conseguimos resistir.

As promessas do trabalho árduo

Para muitos observadores, o trabalho na actualidade serve a função outrora preenchida pela religião, pois é nele que muitos encontram resposta para as eternas questões como “quem sou eu?”, “o que faço aqui?” e “para o quê que tudo isto serve?”. Por outro lado, servem também as funções da família, conferindo respostas para “quem são as minhas pessoas” ou “onde é que pertenço”. Um artigo publicado pela BigThink faz uma analogia engraçada entre o trabalho na actualidade e a procura do Príncipe Encantado. É esperar que ele exista e que preencha todas as nossas necessidades, inspirando-nos a alcançar grandes conquistas. E passámos a acreditar que, através do trabalho, teremos a oportunidade de ver todos os nossos desejos realizados: status, significado, aventura, viagens, luxos, respeito, poder, desafios complexos e recompensas fantásticas. Tudo o que precisamos é encontrar o(a) Senhor(a) Certo(a).

Mas, e num nível mais profundo, parece que foi esquecido um objectivo supostamente antiquado do trabalho: o facto de nos poder comprar tempo livre. E mesmo com todas as evidências já demonstradas, são muitos os estudos que comprovam que a maioria dos trabalhadores é também mais feliz quando passa mais tempo com a família e com os amigos. É preciso não esquecer que, nas tendências do mundo trabalho, a flexibilidade e a possibilidade de se conciliar a vida profissional com a pessoal surgem como as grandes exigências dos trabalhadores. Logo, tal parece demonstrar que nem todas as promessas de uma vida preenchida pelo trabalho são atingíveis.

Talvez a solução resida no facto de deixarmos de considerar o trabalho como “a vida”, mas apenas como parte integrante desta, sem uma centralidade tão notória. E como defende o artigo da Aeon, é verdade que temos as tecnologias e as ferramentas necessárias para trabalharmos menos e, ainda assim, termos uma vida próspera, bastando para isso que consigamos estruturar o trabalho e a sociedade no sentido de se alcançar esse objectivo.

Grande parte das conversas na actualidade no que respeita ao futuro do trabalho apontam para a sua automação crescente e para o facto de os humanos virem, forçosamente, a trabalhar muto menos horas. Mas o que é mais provável, e tal como aconteceu com outras revoluções, é que novas actividades surjam e que a humanidade mantenha a sua inércia colectiva de nunca vir a estar preparada para assumir as 15 horas semanais propostas por Keynes. E que, e pelos vistos, o trabalho continuará a misturar-se com a vida e a ser o seu propósito principal. Pelo menos para os que correm por gosto. Mesmo que se cansem.

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